Começou a escrever porque tinha quinze anos, porque ninguém parecia querê-lo por perto e porque o que ele mais desejava na vida era reencenar para o mundo o velho número do patinho que se revela cisne no final. Cinqüenta e cinco anos depois, pegando com a faca uma pasta rosada extraordinariamente suspeita, espalhando-a numa torrada quadrada de pacote e jogando tudo na boca de poucos dentes verdadeiros remanescentes, o escritor se lembrou de sua juventude, do princípio daquela ciranda maluca de ler, escrever, ser lido, ler, escrever de novo…
Vinham chamá-lo para cantar parabéns, uma das três coisas que mais abominava no mundo; as outras eram dentista e – o quê mesmo? Tentou não parecer um perfeito débil-mental enquanto entoavam aquelas palavras hediondas, às quais sua idade acrescentava agora o pecado do cinismo: muitos anos de vida, essa era muito boa.
Aos quinze anos, não era ainda sequer um escritor: ridículo ter saudade daquilo. E, no entanto, havia alguma coisa ali, no fundo do papel em branco, na relação da palavra com a coisa ou dele mesmo com a coisa, sabia lá ele, mas alguma coisa havia ali, sim, de belo e bom que se perdera por inteiro e que, voltando-lhe à lembrança sem mais nem menos, enquanto lhe cantavam parabéns-pra-você, fez o escritor sentir um calafrio.
Como sempre gostara de uma metáfora, rebuscou: feito o arrepio na alma sentido por quem, caminhando às cegas na noite fechada, descobre de repente ter tangenciado um abismo.
Agora pediam discurso, dis-cur-so – aquele corinho ritmado. Ele sabia ser impossível escapar. Setenta anos era uma marca grandiosa demais. Tinha oito romances nas costas, dos quais pelo menos cinco eram bastante dignos e dois, isso era (quase) consenso, autênticos clássicos contemporâneos. O que fazia dele, por qualquer critério crítico que se empregasse, um dos cachorros grandes. Despejou sobre a pequena multidão um discurso desinspirado, soltou dois palavrões, arrancou risadas, agradeceu e foi se refugiar num canto do sofá, só ele e seu copo de uísque. Ninguém tentou impedi-lo. Escritores, socialites, editores, cantoras, atrizes, bicões de colorações variadas, jornalistas, prostitutas, traficantes e parlamentares entretinham-se uns aos outros no salão repleto de vozes e música.
O escritor fez girar no copo os cubos de gelo. Parecia-lhe tão distante aquele desejo inicial, a fagulha do anseio adolescente até hoje insatisfeito; tão distante, e mesmo assim tão dolorido. Olhando para a multidão matraqueante o escritor pensou, ainda não me querem por perto. Nunca quererão.
Deu um gole largo. Largo demais: um pouco de uísque lhe escorreu pelo queixo. Nem eu tampouco os quero, pensou, e foi afundando no sofá. Suava frio. Foi quando lhe ocorreu, com nitidez tipográfica, o seguinte pensamento:
ESCREVER É TENTAR IMPRESSIONAR QUEM NÃO MERECE.
Depois disso, não soube de mais nada até que o calor o acordou em sua cama ao meio-dia, ressaqueado como há muito não se sentia, e até morrer, um ano e meio depois, de ataque cardíaco, o escritor nunca mais pensou em seus quinze anos.
13 Comentários
“ESCREVER É TENTAR IMPRESSIONAR QUEM NÃO MERECE” como nova epígrafe já!
“o que ele mais desejava na vida era reencenar para o mundo o velho número do patinho que se revela cisne no final”.
Maravilha, Sérgio.
Impressionante! Muito bom seu texto.
Abraços
Sérgio, (mais uma) tentativa de explicar o famoso “por que escreve, escreve porque…
Mas, olha, textinho duca, esse…
Este gostei!
As reminiscências do passado na festa dos setenta. “a questao do por que comecou a escrever” incógnita que permanece. “…traficantes e parlamentares entretinham-se uns aos outros no salão…” aqui meteu o dedo na ferida e escancarou as portas da percepção! alinhando duas “catigurias” de pessoas (…seria classes?). Essa crítica velada aos costumes da sociedade e sua respectiva hipocrisia evoca (a prosa rodrigueana de “bonitinha mais ordinária”).
…E por fim o patinho se tornou cisne.
Que posso dizer mais? Parabéns pra você!
entre os opostos(? ) querer vejam o cisne e impressionar os que nem cisne vêem, escreve-se.
leio. belo.
Muito bom mesmo… Quem ama o patinho cisne lhe parece…
Parabéns Sérgio. E como sempre, aquela boa dose de ironia dos textos que aparecem no Sobrescritos.
Frase excelente, perfeita e sintética.
Parabéns, Sergio!
“Depois disso, não soube de mais nada até que o calor o acordou em sua cama ao meio-dia”.
Me deu até esperança de dormir melhor com os cabelos brancos formando franja.
Imaginava o Sérgio Rodrigues um respeitável Sr. de cabelos brancos, é um guri (respeitável também, mas guri)…li tua entrevista, e vi tua foto, feita há tempos no Digestivo. Gostei do que falaste, assim como do que tu escreves…vou começar a ler As Sementes…compramos “à meia”, uma amiga e eu.
Sérgio, e tem algo que se faça na adolescência (só nela?) que não seja motivado pelo pequeno patinho feio que tem dentro da gente?
Muito bom