Se é um romance ou uma coleção de contos o livro “Entre as mulheres‘’ (Record, 256 páginas, R$ 35), de Rafael Cardoso, caberá ao leitor decidir. (Quem quiser pode aproveitar o momento interativo e decidir também se é de bom ou mau gosto essa capa que explica a piada, por assim dizer, praticamente abolindo a ambigüidade do título.) Aqui no meu canto, não acredito que seja importante chegar a uma definição sobre o gênero para ter prazer na leitura desses 16 perfis femininos traçados com sensibilidade – mas sem frescura – e uma sobriedade narrativa que evita toda pirotecnia, toda reinvenção da roda, para confiar apenas no poder das histórias que estão sendo contadas sob rubricas que mantêm o mesmo padrão: um nome de mulher, uma idade, um bairro carioca. Sim, além de uma declaração de amor às mulheres, Cardoso – que lançou pela mesma editora “A maneira negra” e “Controle remoto” – faz uma declaração de amor ao Rio de Janeiro. Os contos ameaçam se tornar um romance por meio de cruzamentos ocasionais entre as histórias, principalmente aqueles promovidos pelo personagem Rafael, homônimo do autor. Não me parece que isso seja o bastante para caracterizar um romance, mas não importa. Continuam valendo histórias como a de “Jamilly, Copacabana, 25”, da qual foi tirado o trecho abaixo:
O guichê da Pluma era o de número 64, e a passagem para Santo Ângelo saía a R$146,68. Isso, fazendo o roteiro Rio de Janeiro-Uruguaiana, passando antes por União da Vitória, Concórdia, Erechim, Passo Fundo, Carazinho e Ijuí. Talvez fosse até mais rápido um semileito direto para Porto Alegre, mas aí teria que pegar outro ônibus lá. Além do mais, só o trecho Rio-Porto Alegre sairia quase cinqüenta reais mais caro pela Penha. Cinqüenta reais era um boquete avulso. De jeito nenhum ela ia dar um boquete, assim de graça, para uma companhia de ônibus qualquer. Dinheiro suado, aquele! Não que ela precisasse fazer economia. Não mais. Graças a Deus. Mas não dava para ficar gastando à toa. O dinheiro guardado tinha destino certo: a casa que ela ia comprar. Própria. Sua casinha, onde havia passado a primeira infância em Santo Ângelo, antes do exílio. Antes da morte dos pais biológicos.
Na hora de preencher a ficha de embarque, por pouco não principiou a escrever “Jamilly” na linha nome do passageiro. Que engraçado, logo agora que finalmente se habituara àquele nome ridículo, não iria usá-lo mais. Era que nem horário de verão, ela pensou: quando a gente acostuma, acaba. O nome havia sido herança de uma outra Jamilly, que a antecedera no apartamento. Agora, tinha ficado para trás, em Copacabana, para a próxima que tomasse seu lugar. Seria para sempre o nome secreto de sua porção carioca, ponderou. Maria Eduarda Rossi de Araújo, escreveu, com a letra meticulosa e firme de quem só pega em caneta para anotar recado. Achou estranho ver seu nome escrito assim. Há muito tempo não se pensava como Maria Eduarda. Duda, para os amigos e familiares, que em breve reencontraria na fria madrugada gaúcha, entre as lágrimas culposas da mãe adotiva e o abraço seco do canalha que se fingia de pai. De quem ela continuava querendo distância, mesmo depois de tanto tempo. Em breve, estariam todos juntos, celebrando o Natal. Sim, os estupradores também comemoram as datas festivas.
Passou um homem junto dela e esbarrou com força no seu braço. Virou-se desequilibrada, esperando um pedido de desculpas, mas só encontrou um sorriso de deboche e um olhar velhaco, os quais sumiram rapidamente em seguida na multidão. Quem teria sido? Ele, pelo menos, a reconhecera. O rosto não lhe era totalmente estranho, mas ela costumava evitar olhar muito para o rosto deles. Era uma estratégia de sobrevivência que aprendera logo de início. Quanto menos se encarava o bicho nos olhos, menos se sofria com o resto. Pensando bem, não era verdade que a Jamilly tivesse ficado em Copacabana. Continuava ali, junto dela, naquela luminosidade fluorescente da Rodoviária Novo Rio, como uma alma penada que se recusava a desencarnar. Não via a hora de subir no ônibus e se livrar de vez desse visgo. Ainda faltavam vinte e cinco minutos até à hora da partida. Tudo bem, ela continuaria a ser Jamilly por mais vinte e cinco minutos. Não ia morrer por causa disso. Depois, se daria ao luxo simbólico de sacudir a poeira dos tênis antes de embarcar no carro que a levaria de volta ao futuro perdido.
Fazia cinco anos que pisara pela primeira vez nessa mesma Rodoviária, no tempo em que ainda era apenas Duda, antes de descobrir sua porção Jamilly. Cinco longos anos que iriam recuar, aos poucos, para a insignificância, ela esperava, à medida que a passagem do tempo apagasse seus vestígios. Daqui a um ano, os primeiros detalhes ficariam borrados, começariam a perder sua textura e nitidez. Ela já teria dificuldade de recordar o rosto de uma menina com quem trabalhara ou o nome de qualquer barman de boate da Princesa Isabel. Daqui a cinco anos, o costume suave das coisas boas abriria uma distância tranqüilizadora entre ela e as lembranças amargas do Rio. Mergulhada plenamente em sua vida nova, levaria um susto no dia em que percebesse que fazia apenas cinco anos que regressara. Só? Parece outra vida! Essa constatação da relatividade do tempo a encheria de uma satisfação íntima. Daqui a dez anos, tudo seria uma memória distante, um segredo guardado para sempre, uma ferida finalmente cicatrizada. Ansiosa para saborear logo um antegosto desse doce futuro, dirigiu-se à loja Ponto de Bala em busca de gratificação oral.
— Tem Bib’s?
— Só tem esse.
O menino apontou o dedo franzino para uma pilha mingüada de três pacotinhos azuis perdidos em meio ao estardalhaço colorido de confeitos. Chocolate branco. Ela odiava.
— Não tem o vermelho?
— Acabou.
— Nem o branco?
— Tem não, gata, só sobrou esse daí.
O menino acentuou a pronúncia da frase com um sorriso lascivo e um olhar de quero-te-comer. “Gata”. Será que ele chamava todas as mulheres assim? Ou era só ela? Será que ainda havia algo nela que suscitasse esse tom desrespeitoso de um empregadinho de depósito de balas de rodoviária? Pensou por um momento em dar-lhe um passa-fora, em queixar-se com o gerente se fosse necessário. Afinal, estava normal: simples e despojada em seu modelito calça jeans, camiseta e agasalho de moletom, sem maquiagem nenhuma e com o cabelo preso num rabo-de-cavalo comportado. Pensando melhor, desistiu de criar caso. Seria perda de tempo, desgaste por nada. No fundo, também, sabia que Jamilly ainda estava presente, que seu corpo exalava algum misterioso perfume de disponibilidade sexual. Não havia recato no mundo que disfarçasse esse cheiro de sedução oferecida e nem bicho macho que ficasse imune a ele, fosse príncipe herdeiro ou boy de escritório. Foi-se embora resignada, sem responder nada, mas sentindo a cada passo o olhar do garoto a queimar-lhe a bunda.
20 Comentários
só este trecho já é melhor do que o Elas e outros contos do Rubem Fonseca. Agridoce, perceber a mudança dos tempos, a decadência de uns, ascensão de outros…
muito bom, em primeira mão “Entre as mulheres”. conheço o autor pelos ótimos livros sobre design que escreve. quanto à capa, um tanto direta e sem imaginação embora, talvez, tenha um certo “apelo/graça” para o público geral.
Maravilhoso! Nunca li esse cara, já vi que estou marcando bobeira. Ele é muito bom! Prosa limpa, com ritmo, gostosa de ler. A personagem está muito bem delineada e a situação muitíssimo bem-descrita.
Delicioso o texto. Valeu a dica. Isso me traz à mente As Cariocas do Pontepreta. Como nossas mulheres mudam, assim muda a literatura que elas inspiram. Esse cara é bom. Quanto à capa, acho que as chamadas grandes editoras brasileiras, em geral, são tristemente influenciadas pela indústria editorial americana, que faz livro pra vender em supermercados e portanto precisam disputar nas cores aberrantes e motivos óbvios com caixas de sabão em pó e sucrilhos Kellogs. A Record às vezes exagera, me levando a pensar que seja o departamento financeiro que escolhe a capa. A Rocco então, melhor nem falar. Felizmente algumas outras conseguem imprimir a elegância sóbria das capas francesas, italianas. Isso é bem sintomático, quero dizer, dar ênfase ao embrulho, se esquecendo que o que importa num livro é o conteúdo.
Gostei muito e achei muito lindo e triste o texto. Bem poético e algo trágico. Fiquei muito chateado com o estupro, mas são coisas da vida, né?
A capa então a-do-rei. Muito significativa e mais sutil impossível. As cores então…
Enfim tudo de bom!
esta capa é a prova definitiva do fracasso do ensino de design no brasil … se o autor escreve sobre o assunto, me perdoe o comentarista que o elogiou : eu vou tentar acreditar, mas não vou lá conferir … para mim esta capa – que parece uma vulva gay – sugere uma história sobre transexuais … mas não é isso é?
esta capa é a prova definitiva do fracasso do ensino de design no brasil … se o autor escreve sobre o assunto, me perdoe o comentarista que o elogiou : eu vou tentar acreditar, mas não vou lá conferir … para mim esta capa – que parece uma vulva gay – sugere uma história sobre transexuais … mas não é isso é?
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O texto soa artificial, mulher não pensa assim. Principalmente uma mulher vivida.
Não vi nada de artificial nesse texto e, au contraire, acho que a mulher pensa e-xa-ta-men-te assim. Como é que sei? Bom, não sou mulher (não somos) mas tenho uma percepção muito boa do universo feminino. Todas as pessoas… ahn… “como eu” têm. Sabe, aquelas? Que têm menos direitos que outras, que o Papa diz que vão morrer ardendo no Inferno? Isso, essas mesmas. Toda família tem uma ou duas pessoas como eu, mas a gente finge que só na família dos outros é que tem.
Também não gostei. A capa está de acordo com o texto, explicadinho demais.
Estou lendo – e gostando. Até pq, nq literatura contemporânea, é rara essa ambientação no Rio. Qto à capa, realmente.;..
Saint-Clair, será que é assim mesmo? Ou será que é uma outra forma de percepção masculina, exterior ao universo hetero-masculino, mas da mesma forma distanciada do universo feminino? Tá bom, tá bom, isso não vai levar a lugar algum, mas que a discussão é interessante, é.
Gostei, vou dar uma lida na livraria. A capa tem a ver com o livro, mas não é nem um pouco original: tiveram a mesma idéia para o livro do Ruy Castro Amestrando orgasmos.
Capinha chinfrim, mas o texto do Rafael é arretado.
Um dos bons autores contemporâneos, né não?
Concordo com o Djalma e o João…
O texto respinga artificialidade por todos os poros…não é por ser um conto que ele precisa condensar mil fatos em três parágrafos…
Realmente, desnecessário ser tão explicativo…subestima a inteligência do leitor.
Não gostei.
Obrigado pela atenção, Sérgio. O maior gargalo da ficção brasileira é encontrar seus leitores, e a divulgação é a chave para isso. Fico feliz com os comentários, e aproveito para lançar um apelo, principalmente para os que gostaram do trecho: leiam o resto, por favor. O autor nacional agradece! Quanto à capa, achei bacana. Uma coisa é certa: pelo menos, ela não passa despercebida! Já é uma virtude e tanto.
Obrigado pela atenção, Sérgio. O maior gargalo da ficção brasileira é encontrar seus leitores, e a divulgação é a chave para isso. Fico feliz com os comentários, e aproveito para lançar um apelo, principalmente para os que gostaram do trecho: leiam o resto, por favor. O autor nacional agradece! Quanto à capa, achei bacana. Uma coisa é certa: pelo menos, ela não passa despercebida! Já é uma virtude e tanto.
Valeu, Rafael. Boa sorte com o livro. Abraço.
Muito bom, mesmo! Lerei com grande prazer. A capa?… A capa… Não sei, sinceramente. Mas, se atrair atenção dos (possíveis) leitores, funciona, e é o que interessa.
Gostei muito. O livro INTEIRO é muito bom. Sugiro que, antes de emitir qualquer opinião ‘curta’ (por não terem lido todo), as pessoas o leiam… E então falem!
Quanto à capa… neste caso, o conteúdo é o que mais tem valor… Não entendo para que “imprimir a elegância sóbria das capas francesas, italianas” se as histórias deste livro têm como palco a cidade do Rio de Janeiro?!
Cada um com a sua opinião…