A profusão de recordes batidos nos Jogos Olímpicos de Pequim e sua extensa cobertura põem em evidência uma dúvida de pronúncia que sempre acompanhou esse termo importado do inglês record. Afinal, devemos falar récorde, palavra proparoxítona, como a maioria dos locutores e comentaristas da TV? Ou, seguindo a recomendação de dez entre dez sábios, recórde, paroxítona?
Trata-se de um caso clássico em que a língua da vida real vai para um lado e a dos estudiosos para o outro. “Recorde”, estrangeirismo consagrado há décadas em todos os dicionários, pode ser substantivo – com o sentido de marca esportiva, desempenho a ser superado – ou adjetivo: tempo recorde, velocidade recorde. Até aí ninguém briga. A divergência começa na hora de definir a prosódia.
Em seu Dicionário de palavras e expressões estrangeiras, Luís Augusto Fischer observa com bom humor que há “duas pronúncias: a que os gramáticos preferem, rre-CÓR-dji, ou a do resto da humanidade, RRÉ-cor-dji”. É mais ou menos isso. Basta substituir, na frase de Fischer, “o resto da humanidade” por “a maioria dos brasileiros” que ela fica perfeita. Em Portugal, os falantes se inclinam por recórde. Uma possível explicação para o descompasso: os portugueses manteriam a pronúncia que record ganhou na França, de onde importaram o anglicismo por tabela; aqui, haveria uma ligação direta com o idioma de origem.
Como a língua falada sempre tem precedência sobre a escrita, é possível que um dia tal desacordo entre grafia e pronúncia seja resolvido com o acréscimo de um acento agudo. Mas também não é impossível que se eternize como idiossincrasia, algo comum na zona de fronteira das palavras que migram de um idioma a outro. Se show virou um vocábulo corriqueiro sem que sua estrangeiríssima grafia fosse – como provavelmente jamais será – adaptada, tudo pode acontecer.
Publicado na “Revista da Semana”.
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Acredito que estas divergências entre estudiosos e, vá lá,o resto da humanidade, como bricou o Fischer, se deva ao fato de que os últimos estarão sempre simplificando o idioma, impiedosamente, enquanto os primeiros lutarão para preservar o que acham correto, em detrimento da simplicidade.
Embora eu ache que muitas vezes é preciso sim reagir a algumas “novidades” (lembra do “a nivel de”?), e que coisas como “menas” e “uma telefonema” cheguem a soar dolorosas, às vezes acho que este pessoal quer que a língua seja mais ou menos como um prédio do Niemeyer, tão bonito e tão inabitável para seres humanos.
Sérgio: o assunto é interessante, e noto uma terceira pronúncia. Muita gente diz “Recor,” quando se refere à emissora de televisão.
Outra curiosidade: o futurista paulista OSWALD de Andrade pronunciava seu nome (como o faziam todos seus contemporâneos) com o acento agudo sobre o A. Hoje em dia, é muito comum ouvi-lo pronunciado com o acento sobre o O, à maneira americana (embora o nome seja alemão). Antônio Cândido, tempos atrás, escreveu uma nota sobre o assunto, mostrando como o nome do futurista vinha de uma novela francesa, de Madame de Stael, nome que foi muito popular no Brasil em fins do século XIX…
Apenas complementando, vale lembrar que, em inglês, as duas pronúncias são válidas. Na pronúncia “proparoxítona”, é um substativo ou adjetivo. Na forma equivalente à nossa “paroxítona”, é um verbo. Acho que, em vez de ajudar, essa ressalva aumenta mais a discussão.
Caro Sérgio,
Parabéns por ter tocado num assunto tão espinhoso para os jornalistas. Frise-se que a pronúncia na Rede Globo é “récorde”, nos outros canais, “recórde”. Uma jornalista da Globo que se passou para o SBT, depois da mudança, passou a pronunciar a palavra corretamente. Naturalmente ela era castrada na emissora do Jardim Botânico. A Globo é a mesma emissora que pronuncia “aids”, sigla inglesa cuja pronúncia é “eids”. Por que não “sida”, sigla em português e francês? Lembra-se daquele mafioso, Buscetta? Na Globo, virou “Busqueta”. Qualquer um com noção elementar de italiano sabe que “sc” tem a pronúncia de “x”, como em “xadrez”. Então, é “Buxeta”, embora a pronúncia lembre certa parte anatômica feminina. Ah, embora “record” tenha sido importado da língua inglesa, vem do latim. Do verbo “recordare”. Se vem do latim, é paroxítona e pronto. E tem mais: uma correspondente em Paris da Rede Globo, teve a cara de pau de pronunciar “Torre Êiffel”, quando a pronúncia é “Eiffel”, oxítona. Ela não errou, só obedeceu a ordens de algum idiota que quer impor suas boçalidades ao distinto público.
Mais uma teoria conspiratória… Palavras pegam ou não pegam. O povo fala como quer falar. Você vê alguém por aí falando RECÓRDE? OBÉSO? ALGÔZ? Pois essa é a pronúncia correta, aceita pelos gramáticos. E daí? A língua é dinâmica, a fala não se curva aos patrulhadores. As duas pronúncias já estão consagradas e a gramaticalmente incorreta é a mais difundida. Se a Globo não quer fazer propaganda gratuita da concorrente, pelo menos não está inventando nada, pois já se falava RECÓRDE antes da Globo existir. Se a outra quiser vingança, passe a falar ESFERA terrestre, ou GLÓBO. Se o povão gostar, fica.
ERRATA: “… pois já se falava RÉCORDE antes da Globo existir.”
Como não sou gramatiqueiro, uso “rÉcordji”. Tanto por ser a mais usada como também porque diferencia do verbo. E concordo com Harpia em relação em relação a Niemeyer.
Como sou do resto da humanidade e só sei ler e escrever, para mim tanto faz. O importante é a comunicação. Se o ouvinte consegue entender a mensagem, não interessa se é récord, recórd, recor. Estamos na era da globalização onde muitas palavras são abreviadas e escritas sem acentos, portanto, já está na hora desses ultrapassados se atualizarem.
Gostaria de chamar a atenção para o uso e abuso do conceito de correto que habitualmente se encontra neste tipo de discussão. Ora, o que é o correto?, neste contexto. É simplesmente aquilo que está de acordo com uma norma. Em todo o uso linguístico, menos ou mais disseminado, existe sempre uma norma. Ninguém escreve ou fala sem normas, sob pena de não ser entendido. Isso significa que todos os usos coletivos mais ou menos extensos são implicitamente corretos, isto é, estão de acordo com suas normas implícitas.
A discussão, na realidade, é sobre a valoração diversa que cada um faz das normas a aplicar em cada situação de fala ou de escrita. Quando eu digo, sem mais, que isto ou aquilo é incorreto, na verdade o que eu estou dizendo (ou posso estar querendo dizer) é que isto ou aquilo não está de acordo com a MINHA NORMA. Resta saber se 1. essa minha norma é superior por qualquer razão à NORMA DO OUTRO e, mesmo sendo esse o caso, se 2. justifica o ostracismo implícito em juízos (valorativos, não esqueçamos) do tipo: ela fala/escreve mal.
No caso em tela, no sistema de ortografia vigente está bem tanto RÉCORDE como RECORDE, tudo dependendo do uso prosódico que se queira reproduzir. Não entendo (ou até entendo muito bem) esse temor reverencial da parte de alguns ( a maioria dos brasileiros, no dizer do Sérgio) que falam RÉCORDE, mas que no momento de escreverem não ousam seguir sua prosódia porque… não consta do dicionário.
Aproveito para informar que, em Portugal, uma prosódia amplamente disseminada é a correspondente a RECOR, ou seja, oxítona e sem -d-.
Clayton, realmente existem as duas pronúncias em inglês, mas não se trata de ambivalência. O verbo é sempre “recór”, o substantivo é sempre “récor”. Como, aliás, ocorre em outros casos: “ímpact” e “impáct”, por exemplo. Mas foi o substantivo que importamos, não o verbo.
Alvaro: a história de a Globo evitar “recórde” para não citar a concorrente é boa… como piada. E o fato de record ter raiz latina não o torna menos anglicismo. Como a raiz latina de delete não torna menos anglicismo o nosso deletar. A influência que isso tem sobre a prosódia é nula.
Carlos: seu comentário faz sentido lingüístico; é por levar essa visão em conta que eu tomei muito cuidado, repare, para não emitir juízos de valor. Daí a negar que a língua seja palco de uma tensão, de um conflito, e jogar toda a culpa (“temor reverencial”) no pobre do falante vai uma distância descomunal… Infelizmente (eis por que, a meu ver, o discurso puramente lingüístico tem penetração social tão pífia), esse relaxa-e-goza não significa nada para quem quer passar na prova, ganhar aumento no trabalho, evitar gozação dos colegas, não levar puxão de orelha do revisor – tudo isso que, gostemos ou não, e tendo a língua uma óbvia dimensão político-social, é uma aspiração legítima de qualquer falante.
Abraços.
Oi, Sérgio.
Ó eu aqui de novo.
Imagino que você chame de “discurso puramente lingüístico” a alegação de que ambas as formas são lingüisticamente bem formadas, e ponto final. De um determinado ponto-de-vista, isso de fato faz tanto sentido quanto dizer que preconceito racial não existe porque não existe raça – como se a discriminação se baseasse no genótipo, e não no fenótipo (deixa sair o resultado do DNA pra eu decidir se salto do ônibus).Mas esse mesmo discurso nonsense – equivalente a dizer que uma forma está certa porque estruturalmente ela se justifica – pode ocupar um lugar importante: o de desmontar, invalidar o raciocínio preconceituoso, mostrando que ele não tem qualquer fundamentação científica. O mesmo papel pode ser desempenhado pelo tal discurso puramente lingüístico. E, quando isso acontece, o advérbio “puramente” pára de fazer sentido.
Concordo inteiramente, Diogo. Negar fundamento científico ao preconceito é preciso. Imaginar que o preconceito desapareça por causa disso, a ponto de se acusar de “temor reverencial” quem se vê constrangido por um sistema ortográfico, como ocorreu aqui, é que me parece um equívoco. O “puramente lingüístico” não se refere ao saber lingüístico em si, mas a um certo uso meio fundamentalista que se faz dele como resposta para tudo.
Sérgio: desculpe eu voltar à questão, mas eu não nego que a língua seja palco de tensão, daí o preconceito linguístico, forma particular do preconceito social. Mas o que eu tinha em vista era o uso que me pareceu ambíguo dos conceitos de correto/incorreto. E é sabido que uma discussão com ambiguidades dá sempre numa bagunça.
Outra coisa Sérgio: eu não fazia a mínima que você estava querendo fazer deste site uma escolinha por correspondência para quem quer passar na prova, ganhar aumento no trabalho, evitar gozação de colegas e outros quejandos. Desculpe o engano!
Só uma pergunta, Sérgio: se você (como a maioria dos brasileiros) também fala RÉCORDE e, além do mais, provadamente, domina a ortografia brasileira, por que diabo você não se atreve a seguir a norma ortográfica dos proparaxítonos? Ou será que você também quer passar na prova, ganhar aumento no trabalho etc. e, por isso, vai esperar mansamente o tal dia em que alguém sem tais constrangimentos possa resolver o desacordo?
Um abraço
Carlos:
Em primeiro lugar, desafio você a me mostrar onde, em meu texto, eu uso os “conceitos” de correto e incorreto.
Em segundo, sim, esta coluna, publicada na “Revista da Semana” e reproduzida neste blog, tem entre seus objetivos tirar dúvidas sobre a língua de quem tenha dúvidas sobre a língua. Há muitos anos desempenho esse papel na imprensa. Procuro fazer isso de forma lúdica e, até onde me permite minha competência, esclarecida – o que significa incorporar saberes que vão bem além da gramática normativa normalmente empregada pelos colunistas. No entanto, ficar restrito ao laissez-faire lingüístico trivial seria uma traição aos leitores, sem dúvida alguma. (O desprezo que você revela pelas aspirações dessas pessoas, aliás, me parece dizer muito sobre a razão de o discurso lingüístico ainda não ter conseguido sair da academia.)
Em terceiro lugar, já tendo passado nas provas e ganhado aumentos no trabalho, escrevo dentro da ortografia em vigor – como jornalista, é apenas minha responsabilidade. Engraçado, reparei que você também.
Um abraço.
Sérgio: mesmo correndo o risco de ser trichato, não resisto a ripostar.
Primeiro, desafio você a me mostrar onde, em meu comentário, eu disse que VOCÊ usava em seu texto os conceitos de correto/incorreto. Só se você for o autor de todos os comentários.
Segundo: uma coisa é a sua COLUNA na Revista da Semana, com os objetivos certamente louváveis que você refere, outra (julgava eu) seria o TODOPROSA, vocacionado para uma reflexão linguística e literária (e não só) que iria além das costumeiras apostilas escolares.
Mas voltando à vaca-fria: se você escreve dentro da ortografia em vigor, se essa mesma ortografia prescreve o diacrítico adequado, agudo ou circunflexo, em todas as proparoxítonas, se (como se atreve o Houaiss a dizer) “pelo menos no Brasil, ocorre tb. como palavra proparoxítona: RÉCORDE”, não vejo como possa se justificar esse apego exclusivo à grafia. RECORDE.
Carlos: se não era comigo, se você estava respondendo a comentaristas do blog, então acho que essa discussão já foi longe demais, concorda? Pelo menos agora você sabe que esta coluna sobre língua, republicada dentro do “Todoprosa”, é parte – e não todo – de um blog sobre literatura.
Quanto ao acento que o tira do sério, registro em meu texto que provavelmente entrará em uso corrente (ainda não entrou, e mesmo o Houaiss não se atreve a registrá-lo como verbete, só como nota de rodapé), dada a precedência da prosódia sobre a ortografia.
Mais do que isso seria mandar o leitor desarmado para uma frente de batalha que não é menos feroz só porque nós, sabichões, decidimos que falta legitimidade científica às balas. A revolução não começará por aqui (mas vou ter prazer em noticiá-la).
Mais interessante que “récord” ou record é o uso de pego ou pegado
Com os verbos Ter e haver, devemos dizer: pegado. Já com os verbos Ser e estar, devemos dizer: pego. Ora, a rede Globo nunca acerta isso, em qualquer situação sempre diz pego. Essa é outra questão que devia ser resolvida, porque quem fala corretamente, às vezes é corrigido por quem não sabe porque acha feio se dizer pegado e mais ainda, matado ao invés de morto, que segue a mesma regra.