Meus alunos relativistas se sentem valorizados por uma teoria niveladora que põe sua banda de rock favorita em pé de igualdade com Bach e Mozart; mas repare como uma hierarquia qualitativa lhes volta correndo quando, em nome da coerência, você sugere que sua banda de rock favorita também não pode ser melhor que os Backstreet Boys (…). As velhas dicotomias entre o que é elitista e o que é popular, entre alta e baixa cultura, podem estar mesmo corrompidas por privilégios injustificáveis, mas sem uma nova linguagem de mérito para as artes os pós-modernistas são forçados a viver numa paisagem achatada onde Barry Manilow e Beethoven são iguais.
A certa altura de sua reflexão sobre a tendência editorial manifesta em títulos de sucesso como “Os Simpsons e a filosofia”, esse artigo publicado pelo professor de filosofia Stephen T. Asma na revista americana The Chronicle of Higher Education (dica do Arts & Letters Daily) acende uma lâmpada no trevoso beco sem saída em que boa parte da crítica de arte – com a literária em posição de destaque – se meteu nas últimas décadas, ao jogar pela janela o bebê (a análise qualitativa, a avaliação de mérito) junto com a água suja do banho (o preconceito contra estéticas marginais ou de consumo popular).
O texto tem uma vantagem adicional: expõe seu argumento numa linguagem que os fãs de Barry Manilow conseguem acompanhar.
29 Comentários
É, relativismo é um câncer que tem corroído cada vez mais a crítica. Lembro do Saul Bellow perguntando (um tanto politicamente incorreto, é verdade) onde está o Proust e o Tolstói dos africanos. Puxando o gancho do Nobel, muitas vezes o laureado é uma sumidade da poesia senegalesa sob a alegação do multiculturalismo, da chance de autores de outros países ganharem destaque. Isso é absurdo.
“Poxa, mas você está comparando o brasileiro contemporâneo com um clássico”. Estou. Não vou comparar Daniel Galera ao Daniel Pellizari. Relativismo nada mais é do que nivelar por baixo.
Parabéns, Sérgio! Acertou em cheio na escolha temática: o dedo na ferida aberta. Só não concordo que o relativismo – ético, estético ou epistemológico – seja fruto apenas de um certo ethos contemporâneo (alguns diriam “pós-modernismo francês”!) de submeter qualquer objeto à gloriosa “abertura do signo”, à idolatrada “crise do fundamentos” e blá-blá-blá blá-blá-blá…
Sob este aspecto vale lembrar que, ao menos do ponto de vista filosófico, essa é uma discussão que remonta no mínimo até a velha querela entre os Sofistas e Platão (séc. V a. C.). Que não deixou, digamos, de sofrer uma espécie de “atualização”, sobretudo quando tomada do ponto de vista da chamada “virada linguística”; e cuja melhor expressão, veja só que curioso, tavez seja a do badalado nome de Richard Rorty, ilustre representante da atual filosofia neopragmatista americana.
Ei, o relativismo não foi um conceito antropológico importante no processo de descoberta e aceitação do outro (nós cá do Sul do mundo, até) por parte do europeu??? Por que isso quer dizer “nivelar por baixo”? O termo é muito mal utilizado, acho…
Como um relativista cada vez mais radical, acho que o argumento central do trecho traduzido pelo Sérgio não se sustenta. Pretensos relativistas que abandonam o barco quando o gosto deles é posto em questão são, de fato, autocratas enrustidos, mas Asma não deveria considerar alguns alunos volúveis como representantes legítimos de uma corrente de pensamento.
Ser relativista, para mim, não é declarar que Shakespeare e Paulo Coelho são igulamente bons (ou igualmente ruins). É entender que os fãs de Paulo Coelho podem defender seu gosto tão bem quanto os fãs de Shakespeare. Tudo depende da visão que cada um tem da literatura, da formação literária de cada um, e dessa coisa indefinível e, diz o ditado, indiscutível que é o gosto.
E aí está o caminho para a crítica literária: entender que o papel do crítico não é definir se uma obra é boa ou ruim mas explicar por que ele gosta ou não de uma obra. É um caminho mais pessoal e, na minha opinião, mais honesto.
Abraços,
Lucas
A questão é a seguinte: os relativistas são muito relativistas até a hora que têm que relativizar o relativismo.
Agora, falando sério ( se bem que eu estava falando sério). Existe uma tendência até a se relativizar a educação mais básica, e disso eu de fato tenho medo. Tenho uma amiga que trabalha com pedagogia e sempre discute isso comigo. Quando falo da importância da leitura, ela me acha um ditador dos livros. Eu uso como argumento final, quase sempre, uma anedota que ouvi de um professor de filosofia sobre o maio de 68 na Alemanha:
Havia num muro a pixação:
” Deus morreu, assinado: Nietzsche”
e aí colocaram embaixo:
Nietzsche morreu. Assinado: Deus
Hoje está imperando a ditadura do gosto médio. Há muito mais preconceito contra quem gosta de algumas “velharias” e não gosta do que está “bombando” do que o contrário. Se você ousar dizer que não gosta de funk e dizer que admira Bossa Nova, já chega um politicamente correto colocando o dedo na sua cara falando que você é das elite (falando assim mesmo, sem a “redundância” do s no substantivo se já acompanha o artigo anteposto).
É igual o homossexualismo e a piada do sujeito que fugiu da Inglaterra porque antes era proibido, depois passou a ser normal e ele resolveu dar no pé antes que se torne obrigatório.
Aceitar que tudo possui o direito de existir é extremamente válido. Mas o que está havendo é uma destruição contumaz de tudo que não é de fácil assimilação, não é popular explicitamente, exige mais de dois neurônios para ser apreciado. O império da ignorância… e não é coisa do “povão” não. Já li notícias de teorias acadêmicas que jogam no lixo Shakespeare porque, segundo elas, ele é o representante maior do branco ocidental burguês e colocam nas alturas livros mediocres só porque tratam da temática deste ou daquele grupo considerado “excluído”.
Mas se a própria intelectualha fica bajulando um Ferres da vida? Se qualquer zé oreia que aparece e tem um nome exdrúxulo ou provem dos tais “excluídos” é logo paparicado, elevado aos píncaros?
O problema é que os intelectuais profissionais vivem doidinhos para descobrirem novos Tolstois, Prousts, Bethovens e Mozarts e estabelecer clássicos novos. É aí que tudo vira relativo…
Mande um exemplo, Zebra, ao menos um, do que você está afirmando. Adoraria ler “notícias de teorias acadêmicas que jogam no lixo Shakespeare porque, segundo elas, ele é o representante maior do branco ocidental burguês”. Custa-me crer, o autor de Otelo…
Por favor, prove o ridículo destas teorias, não fique só no “ouvir dizer”.
Conhece algo chamado Estudos Culturais?
Embora julgo o trabalho de W.Irving interessante ao utilizar ícones da cultura popular para levar as massas a entender ou aprender um pouco de filosofia o nó górdio do assunto em minha opiniao é o que se encontra escrito nos seguintes parágrafos:
“”In the end, I suspect that, despite these excellent new efforts, philosophy will remain intractable and estranged from popular culture. It will remain so not because it is biased or willfully elite, but because it is in an extremely self-reflexive relationship with its own history, and it requires highly disciplined, systematic, abstract conceptualization, a skill that does not come easily to most people.
One can barely make a move within the oldest academic discipline without understanding its past. People who don’t know its vast literature feel excluded from the import of any particular philosopher or problem. That kind of exclusion can be remedied by doing the requisite study — by catching up, so to speak, on a body of knowledge. But philosophy is more than just a body of knowledge; it is an ability to examine the structures of thought itself. Simon Blackburn calls that “conceptual engineering,” in order to distinguish it from regular empirical investigation. The requirement makes philosophy unpopular in the same sense that higher mathematics is unpopular.””
E lamentavelmente, (aproveitado a metáfora de “sugar and medicine”) por mais que a cápsula do viático seja recoberta de gelatina, glicose e seja colorida; continua sendo uma cápsula de remédio.
Isso remete a epistemologia do conhecimento. Remente ainda a dicotomia informacao X conhecimento. Enfim, aos arcanos de Platao e Sócrates.
Sem entrar no mérito da tese do relativismo (segundo a qual é impossível estabelecer hierarquia de valores), afigura-se-me mais importante lembrar o substrato psicológico que permitiu que ela visejasse com tamanho vigor no meio acadêmico.
O intelectual relativista é, em geral, o resultado da mistura de dois ingredientes muito abundantes nestes tempos: a inveja e a ignorância.
Em nossa era, a literatura é ofício exercido por muitos acadêmicos, os quais inconfessadamente almejam, com sua literatura, alcançar o reconhecimento do público e da crítica. Esses acadêmicos, deve-se reconhecer, são pessoas tenazes: estudam teoria literária, lêem obras sobre estética, dissecam as mais variadas técnicas da escrita, consultam os intermináveis tomos dos outros acadêmicos, mergulham na leitura da biografia indicada pelo orientador e escrevem uma primorosa tese sobre a metalinguagem nas composições de Zeca Pagodinho. Tanto esforço é recompensado: a banca lhes dá um dez com louvor (outro resultado não seria possível: a bibliografia indicada ao final da tese é abrangente e as notas de rodapé foram escritas rigorosamente segundo as regras da ABNT).
Depois de receber a aclamação unânime dos pares, o acadêmico, já titulado, decide que é hora de CRIAR e aventura-se na ficção ou poesia. Dois anos depois, muitos deles gastos na consulta das mais recentes publicações e na esmerada elaboração de notas de rodapé, eis que um vistoso tomo vem à lume, com título não menos vistoso: “Divagações metafísicas e sexuais de um garoto-suburbano-terceiro-mundista-tropical-da-metrópole”.
Imagine o esforço, o denodo, as horas sem dormir e a abstinência sexual necessários para maravilhar o mundo com essa indispensável criação do engenho humano! E ninguém, mundo ingrato!, enxerga, nos poucos trocadilhos propositais e nos inúmeros involuntários, a genial mente por tais desse prodigioso trabalho intelectual. Ninguém percebe que, na elaboradíssima descrição de um sonho do protagonista, está condensada toda teoria freudiana sobre psiquê humana. Ninguém, entre os escassos resenhistas que escreveram a respeito do livro, entreviu que o personagem mendigo, que aparece nas imprescindíveis dez páginas iniciais, é uma viva metáfora das injustiças do capitalismo selvagem, metáfora infinitamente mais eloqüente que todos os volumes da “Comédia Humana”.
Nosso bravo acadêmico, depois de elaborar um trabalho que treze Hércules juntos não conseguiriam executar, descobre que esse mundo mais que injusto: esse mundo é incapaz de fazer julgamentos dignos. Logo, nenhum juízo de valor tem validade. Imagine: louva-se um bárbaro chamado Shakespeare, que jamais lera o “ABC da Poesia” de Ezra Pound. Como é que esse tal de Bardo pode ser reconhecido como poeta se ele não saberia distinguir a fanopéia e da melopéia e esta da logopéia? E esse Cervantes que nunca Lukács? Pois, se as elaboradíssimas, sutilíssimas e altiloqüentes “Divagações metafísicas e sexuais de um garoto-suburbano-terceiro-mundista-tropical-da-metrópole” não valem o mesmo que “Dom Quixote” ou “Anna Karenina” é porque nenhum julgamento tem base sólida, que seja demonstrável com auxílio à biografia especializada. Tudo é relativo, não é certo.
Errata:
“E esse Cervantes que nunca leu Lukács?”
“Tudo é relativo, nada é certo.”
Rafael,
(Obs.: orientadores se acostumam também recomendar bibliografia,/i>; inclusive com objetivo inconfesso, sigiloso de saber resumidamente sobre o que trata os novos lancamentos. mas isso é uma digressão. :-)).
O texto postado por S.Rodrigues remete ao post de S.Rodrigues sobre o “Estruturalista e a Blogueira” e de certa forma vejo associações entre seu último post e a termática em questão.
E agora vejo despontar, aqui, nova dicotomia entre a arte x técnica.
Aliás este foi o tema da Redação proposta pela FIHBR Renascença de São Paulo no vetibular do segundo semestre de 1989. Com afinco mergulhei fundo na reflexão/ análise do assunto [em 46 minutos!!!] e consegui preparar um texto que agradou — ou nao incomodou (rsrs) os examinadores. Eu disputava uma vaga na Faculdade de Tecnologia em Processamento de Dados.
Essa obra que você menciona—desse virtual escritor— realizada depois de todo essa “trabalheira” acabará soando algo artificial, simulacro; qual poema que fosse elaborado por um “ente” da robótica dotado de Inteligência Artificial.
Perfeito. Há que se hierarquisar as obras qualitativamente, embora toda avaliação seja sujeita a revisões periódicas.
É sinal dos tempos que, por conta do império do politicamente correto, a palavra do jovem inexperiente tenha tão o mais valor que a do adulto maduro e experimentado; que a música erudita seja considerada de valor musical e complexidade iguais ao das cantigas populares; que os escritores preguiçosos que se vangloriam de escrever sobre seu fracasso como escritores (vide beatniks) seja levados tão a sério quanto escritores esforçados e enciclopédicos como Flaubert e Dostoiévski; que o teatro-farra do Zé Celso seja considerado tão “profundo” quanto o do Bergmam; e que os filmes deste sejam equiparados pela crítica, em termos de qualidade artística, ao último asiático bobo e metido a besta.
Que se expresse aquilo que é mundano em linguagem mundana, e que expresse aquilo que é elevado em linguagem elevada. Cada qual tem o seu lugar, e isto – o lugar – não é mais ou menos importante. Mas as obras são, sim, muito mais imortantantes qualitativamente umas em relação às outras.
Basta dessa bobajada pseudo-esquerdista que diz, por exemplo, que a fala do homem iletrado é tão correta quanto a do homem letrado. Não se pode inferiorizar o caboclo por reproduzir mal a palavra escrita que ignora. Mas ainda assim há que se reconhecer: ele é ignorante, e o paradigma para se façar bem o idioma não deve ser ele. Deve-se restaurar o império da honestidade intelectual.
P.S.: perdoem os lapsus scribendi acima, fruto do “correr da pena” sobre o teclado do computador.
João,
Uma observação rápida (falta-me tempo para detalhar o argumento).
É falsa a dicotomia arte e técnica, porque a primeira não existe sem a última. Camões com certeza estudou versificação e métrica, analisou detidamente estrutura dos sonetos de Petrarca, dedicou-se ao aprendizado da história de Portugal e leu a “Arte Poética” de Horácio. Shakespeare mais que um empresário do teatro foi um homem de alta cultura. Cervantes certamente leu inúmeros livros. Sem estudo, Cervantes, Shakespeare, Camões, Goethe, Dante, Dostoievski não teriam sido grandes autores.
Por isso, afirmo com absoluta certeza que o estudo (a técnica) é imprescindível.
Ocorre que qualquer um pode aprender a técnica com estudo e dedicação. Mas o talento (arte) é um dom que a avara Natureza concede a pouquíssimas pessoas. O sujeito, por mais que estude, jamais se tornará talentoso.
Décio Pignatari, por exemplo, sabe a técnica, mas não tem talento. Manuel Bandeira tinha ambas as qualidades.
Rafael
voce expressou bem. Pontui este item apenas para cutucá-lo, provocá-lo. rsrsrs.
conheça: http://z001.ig.com.br/ig/61/35/147299/blig/cavernadeplatao/2007_06.html#post_18864913
para teu deleite.
A ignorância e a preguiça são as principais motivações para o relativismo. Quem não entende um assunto, enxerga superficialmente, de longe e na penumbra. Não espanta que veja apenas gatos pardos.
Eu não pago mais de 20 reais por uma garrafa de vinho, respeito as limitações do meu olfato e paladar.
Os gostos pessoais podem ser relativos, porque dependem da experiência e das limitações de cada um. Mas a qualidade de uma obra em relação à outra pode e deve ser defendida por estudiosos do assunto, sempre com argumentos superiores ao gosto pessoal.
http://www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeII/A%20LITERATURA%20DESLOCADA.pdf
Vivas, portanto, à prepotência e arrogância, ferramentas importantes para que possamos opinar sobre qualquer assunto sem temer os terríveis relativistas. O mundo é simples (para quem estudou), minha visão é soberana (afinal, estudei muito!) e todo cineasta asiático é bobo. Acho que entendi o recado…
perdoem ae, mas já que citaram camões, engenho é o que se contrapõe à técnica, e não arte.
quanto ao relativismo cultural, me parece o lugar que deveria ser comum. a não ser um desvairado (e com objetivos que podem ser facilmente depreensíveis, se já não explicitados de cara)diria que zé celso é superior a shakespeare, contudo tem sua função, seu valor. e fala para alguém e por alguém.
Mindingo,
Digne-se a aceitar para com você o mesmo rigor que exige para com os outros.
Imagino que o que você alega como “lapsus scribendi” refira-se ao “hierarquisar” que, na grafia correta, escreve-se hierarquizar, uma vez que a palavra que lhe dá origem (hierarquia) não possui “s”, assim como inferiorizar (inferior), que você corretamente grafou.
Isto me lembra um importante pensador aqui desta coluna que numa ocasião escreveu:
“Não se pode inferiorizar o caboclo por reproduzir mal a palavra escrita que ignora. Mas ainda assim há que se reconhecer: ele é ignorante, e o paradigma para se façar bem o idioma não deve ser ele. Deve-se restaurar o império da honestidade intelectual.”
Você lembra?
Cadê o Bemveja, hein?
Saudades, Bemveja, saudades… snif.
Dá pena de ver estes orangotangos bexiguentos aí de cima tentando opinar sobre o vácuo…
Muito bom o post…
Vez ou outra aparecem em demasia alguns relativistas comentando por aqui né não? Ô raça…
Vem de quando esse tal de relativismo, multiculturalismo ou ideologia do ressentimento, no dizer de Bloom?
A equiparação de Simenon a Balzac, a elevação às nuvens dos escritores policiais americanos (Chandler, Hammet, etc) fazem parte dele?
Se um escritor de um país pobre e semi-analfabeto é condecorado, isso é obrigatoriamente paternalismo literário?
Doris Lessing nasceu na Pérsia e se criou na África. E se ele tivesse permanecido por lá?
“… ela …”, claro!
Estou lendo uns contos de Mia Couto e achando-os bastante bons. Guimarães Rosa e Manoel de Barros foram bater na África.
estou uns biscoutos, mas é Nestlé.