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‘Remissão da pena’: Modiano e o silêncio da história

31/01/2015

A memória é a matéria-prima do escritor francês Patrick Modiano, agraciado em outubro do ano passado com o prêmio Nobel de literatura. Isso pode sugerir um parentesco com Marcel Proust, o maior nome da literatura de seu país no século XX, autor dos sete volumes do caudaloso “Em busca do tempo perdido”. Mas é enganosa a semelhança.

Enquanto Proust se dedica à recriação da vida mundana nos círculos aristocráticos franceses da virada do século em prosa suntuosa, inchada de minúcias psicológicas e sensoriais que esticam suas frases para além do fôlego convencional da leitura, Modiano faz tudo ao contrário.

Em seus livros sempre magros, estranhamente inconclusivos, é em tom menor e prosa singela, às vezes tateante, que o escritor nascido em 1945 busca reconstruir a vida na capital francesa sob domínio nazista e no pós-guerra de sua infância, um tempo de vidas fraturadas, identidades fugidias e segredos tenebrosos.

Onde Proust oferece um banquete, inventando um triunfo literário sobre o poder corrosivo do tempo, o autor de “Remissão da pena” (Record, tradução de Maria de Fátima Oliva do Coutto, 128 páginas, RS 29,00) serve pratos frugais, ainda que cheios de sabores inusitados, incorporando ao leque temático de uma obra marcada pela melancolia o fracasso inevitável da tarefa que se impõe.

“Remissão da pena” é o primeiro romance de Modiano lançado pela editora Record, que tem outros dois livros, “Flores da ruína” e “Primavera de cão”, agendados para os próximos meses. Vem se somar aos três importantes títulos que, publicados com discrição anos atrás e então fora de catálogo, a Rocco reeditou após a notícia do prêmio e conseguiu pôr nas livrarias ainda em dezembro passado: “Dora Bruder”, “Ronda da noite” e “Uma rua de Roma”.

Toda essa movimentação editorial é bem-vinda. Pouco conhecido no Brasil antes de ser consagrado pela Academia Sueca, Modiano tem ainda ao alcance do leitor nacional um volume infantojuvenil, “Filomena Firmeza”, publicado pela Cosac Naify em agosto de 2014.

O livro que chega agora às prateleiras saiu na França em 1988 e trata de forma romanceada, em primeira pessoa, de um curto período na vida do autor, quando ele tinha dez anos e, na companhia do irmão mais novo, foi deixado pelos pais sempre ausentes – uma atriz belga em constantes turnês e um comerciante judeu especializado em negócios escusos – aos cuidados de três amigas da família num vilarejo nas cercanias de Paris.

Enquanto espera em vão que os pais venham buscá-lo, o menino se dedica a descrever uma rotina provinciana e aparentemente banal de vicissitudes escolares e incursões clandestinas a um castelo abandonado da vizinhança. É aos poucos e de forma sutil que o intenso vaivém de visitantes na casa de suas anfitriãs, às vezes em horas mortas da noite, constrói uma atmosfera de desgraça iminente da qual o narrador não parece se dar conta.

Quem são aquelas mulheres? Sabemos que Hélène, ex-artista de circo, “tinha sido amazona e depois acrobata, o que lhe conferia prestígio” aos olhos dos dois irmãos. Annie, a mais jovem e maternal, “ia quase todos os dias a Paris, em seu Renault 4cv bege”. Mathilde, mãe de Annie, é apresentada como pouco mais que uma megera clássica. Quanto aos visitantes habituais, conhecemos os nomes de alguns deles – Jean D., Roger Vincent, Andrée K. – sem compreender melhor que o próprio narrador o que fazem da vida e a natureza precisa de suas relações com as moradoras da casa.

Naturalmente envolto em bruma, e mais turvo ainda por ser filtrado pelos olhos de uma criança, o passado instiga a curiosidade do leitor na mesma medida em que a frustra. Restam pistas escassas, vestígios de sentido numa paisagem humana desolada, e o efeito final de abandono e solidão que fica reverberando na cabeça do leitor é mais poderoso por isso.

Modiano foge tanto da grandiloquência quanto do impulso de violentar a memória com a ficção. Elevadas à condição de uma marcante assinatura autoral, as lacunas que deixa tanto na composição dos personagens quanto na trama de suas histórias funcionam ao mesmo tempo como rendição e, paradoxalmente, resistência ao poder do esquecimento. O silêncio que reconhece a insuficiência da memória como reconstrutora do tempo perdido é o mesmo que, povoando-se de sugestões, evoca poeticamente o passado.

No devastador “Dora Bruder”, romance ensaístico sobre a história real de uma jovem judia na Paris ocupada, deflagrado por uma nota de desaparecimento encontrada por acaso num velho exemplar do jornal Paris Soir, a investigação promovida pelo autor luta contra arquivos destruídos pela polícia e os escombros de bairros judeus demolidos após a guerra pelas autoridades parisienses. Se o esquecimento, forçado ou espontâneo, é invencível, resta à literatura a atitude profundamente moral de nomeá-lo, apontando os espaços em branco onde deveria haver história. O Nobel foi parar em boas mãos.

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Resenha publicada na edição de VEJA que está nas bancas.

2 Comentários

  • Neiva Pitta Kadota 23/02/2015em15:55

    Excelente leitura da obra Remissão da pena, de Patrick Modiano. Delicada e sensível como a arquitetura textual do autor. Resgata bem o olhar infantil permeado de fragmentos de imagens inacabadas e movediças, e de lacunas semânticas, deixando ao leitor a tarefa de preenchê-las no decorrer da narrativa.

  • Paulo Roberto de Andrade Mercer 03/04/2015em19:43

    Acabei de ler. Mais um Modiano. Leitura que prende, impacta, te prende, e se, ao final, te frustra por um final inconclusivo e repentino sem a resposta que aguardava, por outro lado te estimula pela certeza de que a memória tem sempre um lado bonito a te mostrar um mundo de certezas e lembranças. Recordações que marcam indelével a vida de uma pessoa. O estilo de Patrick Modiano me encantou. E livros após livro sedimentam um conceito novo (para mim) de reviver de forma simples, clara e objetiva detalhes importantes retirados do baú da memória. Já tenho 10 livros do Nobel; oito deles já li com cuidado. Sete desses trouxe de Portugal e creio que alguns desses não saíram ainda por aqui, com exceção de Dora Bruder que considero leitura obrigatória para quem quer conhecer um pouco do autor. Farão parte de um especial lugar na minha seleção de livros que esmiúçam a vida do ser humano. Muito bom