Rubem Braga faz cem anos e recebe as honras merecidas como o maior cronista da literatura brasileira. O título é informal, mas justo. Machado de Assis? Não lhe falta primazia em outros gêneros, acredito que não se incomodasse de olhar o mais carioca dos capixabas de baixo para cima nesse quesito do monumental desfile do Grupo A das letras auriverdes.
Mas então estamos falando de um concurso, de uma competição? Talvez seja meio constrangedor admitir, mas é bem disso que estamos falando. O cronista que estaria completando um século se tivesse seguido os passos de Niemeyer – em vez de morrer como um de seus queridos passarinhos em 1990 – é posto como todo mundo sob o duro escrutínio da posteridade. Os jurados somos nós, leitores, críticos, acadêmicos, jornalistas. Seriíssimos, sobrancelhas franzidas, pesamos sua obra, ponderamos os efeitos da passagem do tempo e rabiscamos a nota num papelucho. Chega o dia da apuração e descobrimos, a maioria sem surpresa, que Rubem Braga leva dez, nota dez! A festa na quadra não tem hora para acabar.
Machado, nove vírgula nove. Sabino, nove vírgula sete. Etc.
É aí que está o problema, aliás insolúvel. A louvação do que deve ser louvado é importante, saudável, mas o autor de “Ai de ti, Copacabana!” nos deixa numa sinuca de bico. Tratar sua obra – a própria palavra “obra” tem um peso que não assenta muito bem – com a deferência dedicada aos monumentos é, sem deixar de ser um ato de justiça, uma traição. Leio o ótimo artigo do crítico João Cezar de Castro Rocha no Sabático e não tenho dúvida de que o sortilégio da prosa do cronista está bem explicado ali: “Rubem Braga se notabilizou por desenvolver uma voz lírica criadora de uma atmosfera. Stimmung, dizem os alemães…”.
Stimmung, certo. Há que nomear tudo, mas alguma coisa escapa. Temo que seja o próprio Rubem Braga.
Numa série de três crônicas publicadas em 1952 sob o título “A borboleta amarela” – reunidas depois no livro homônimo – ele manteve os leitores, como num folhetim em miniatura, pendurados no desfecho de seu encontro com o bichinho adejante do título, ocorrido certa tarde numa esquina do centro do Rio, ao lado da Biblioteca Nacional.
O que acontece? Nada propriamente. O cronista borboleteia. Num cenário duro e até solene de asfalto e cimento, mármore e granito, diante do grande monumento à cultura da Biblioteca, Rubem Braga perde de vista o pequeno ponto amarelo, volta a encontrá-lo. A certa altura diz que “a borboleta chegou à esquina de Araújo Porto Alegre com a Avenida Rio Branco; dobrou à esquerda, como quem vai entrar na Biblioteca Nacional pela escada do lado, e chegou até perto da estátua de uma senhora nua que ali existe; voltou; subiu, subiu até mais além da copa das árvores que há na esquina – e se perdeu”.
Dizem que Clarice Lispector ligou para ele aos prantos quando acabou de ler isso, o que sempre achei curioso, uma prova da excentricidade da escritora: ah, essa Clarice. Hoje entendo. A borboleta amarela se recusou a entrar na Biblioteca Nacional, ignorou uma estátua. Bateu asas, sumiu. Acho que Clarice compreendia que galardões e efemérides seriam para sempre a Biblioteca, a estátua, a cidade de pedra onde confabulamos, atarefados, para arquitetar nossas homenagens e desprezos, nossas lembranças e esquecimentos. A borboleta era Rubem Braga.
15 Comentários
Sérgio, conseguir um ângulo original para falar do Rubem, como você faz nesse post, é coisa de bamba. Fecha a semana de homenagens ao escritor em grande estilo.
Aqui da Toscana, de Pistoia, sinto muito orgulho de ser conterrâneo de Rubem Braga. Que saudade da”nossa capital secreta do mundo”, como ele se referia ao nosso pequeno Cachoeiro. Uma homenagem justa a um escritor que soube narrar o cotidiano, e que nos nao percebemos.
Que saudade, Sérgio!
Eu como a’carioca mais capixaba do mundo’,me derreti toda com esse lindo artigo sobre esse meu conterrâneo tão talentoso, que soube como poucos fazer poesia do cotidiano.Linda homenagem!!!!!
Um sapato velho, um passarinho | Sobre Palavras - VEJA.com
Para quem escreve de palpite, como pessoas que tocam de ouvido, nada mais “bem buscado” que borboleta amarela que chama a atenção ( é com crase, Sérgio…). Prendeu a atenção de muitos, inclusive da Clarice galinhenta, baranhenta e Ulissenta. E não menos do Sérgio, nesta escolha para a devida homenagem. Valeu.
Desculpa-me, não é baranhenta, e sim, baratenta… ( hum… sem graça, isso… É isso que dá escrever de ouvido sem ser um Braga…)
Agora, sim!
Você acertou na…borboleta!
Fernando Sabino foi o maior entre todos os cronistas brasileiros do séculob XX, disparado!
Eu acho muito engraçado afirmar estas coisas, tipo:”fulano é o maior entre todos o…”
Vamos lá… todos tem seus altos e baixos. Seus dias de sol e de tempestade. Ainda bem que vimos por aqui 9,8 9,9 e 10. Isso sim é equilibrio. Mas esse negócio de “na frente disparado”, não me convence. Com o quë se mede essa coisa de ” Maior entre todos”, hein.( estou sem interrogação).
Cara Rosângela Maria,
Maior entre todos é o puro-sangue, o barbada, disparando na reta final, atropelando todos os demais concorrentes…
Mas eu só escrevi essa minha opinião porque o Sérgio Rodrigues provocou, dizendo que na opinião dele o Rubem Braga é 10, o Machado de Assis é 9,9 e o Fernando Sabino é 9,7.
Aí, no poule, ele foi de azarão…
E cruzam a reta final…Em primeiro, “Namor, o Príncipe Submarino”
(o Fernando Sabino foi campeão de natação, na juventude)
Oi, anönimo… Puxa! Eu não via assim… hum… estou lá atrás…. ultimo lugar.
Só uma coisinha: Tudo bem que podemos medir um cavalo puro sangue. Mas um escritor… Sei não…
(Ah! Não acho graça nenhuma em ter ficado em último lugar.)
o bom de ficar em último lugar é que dá prá chegar tranquilona, devargazinho, lendo um bom livro em cima do cavalo…
Obrigada pela confirmação do “último lugar” . Eu só queria ter a certeza. Ah… meu livro preferido é a Biblia edição Contemporänea.