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Rubem Fonseca bom é o outro

19/11/2006

O melhor livro rubem-fonsequiano da temporada não é a coletânea de contos “Ela e outras mulheres” (Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 34), a última e desvitalizada cria do autor de obras-primas como “A coleira do cão” e “Feliz ano novo”. É o romance “O que contei a Zveiter sobre sexo” (Record, 336 páginas, R$ 44,90), de um gaúcho radicado no Rio de Janeiro chamado Flávio Braga.

O título é o que o livro de Braga tem de pior. Deve-se desconsiderá-lo. Além de palavroso e sem sal, esbarra no inconveniente de que o tal Zveiter, psicanalista a quem o narrador confessa suas aventuras, não chega a se constituir como personagem. Superado esse problema, o que o leitor encontra é um furioso, perturbador e engraçado romance picaresco em torno da compulsão sexual do priápico João.

A comparação com Fonseca vai além da conveniência jornalística de juntar lançamentos que aliam afinidades temáticas e proximidade cronológica. Por acaso, quando saiu “Ela e outras mulheres”, eu tinha acabado de ler o livro de Braga e ainda refletia sobre o que ele tem de rubem-fonsequiano, no bom sentido – e tem muito. Mas só ao ler o novo do próprio Fonseca é que percebi o quanto confrontar os dois poderia jogar luz sobre algumas questões enroladas. Uma delas: o enorme legado do autor de “A grande arte” faz bem ou mal à literatura brasileira? Outra: ao próprio RF o peso parece ter feito mal, mas por quê? Já estaria seu projeto, desde o início, embicado na direção do beco sem saída ético-estético do qual “Ela e outras mulheres”, com seu profundo conservadorismo disfarçado de amoralidade, é um atestado cabal? Ou será que algo se perdeu no meio do caminho?

Com alguma benevolência, seria possível encarar os 27 contos curtos de “Ela e outras mulheres”, todos batizados com nomes femininos e organizados em ordem alfabética, como trabalhos apenas corretos de um escritor competente mas cansado – mera reiteração de estilo. O problema é mais grave do que isso por uma razão simples: ao cair numa espécie de escrita mecânica, entediada e entediante, Rubem Fonseca abole da vida de seus personagens qualquer possibilidade de surpresa. E não dá para falar de contos corretos sem surpresa.

Todos caminham feito robôs para o crime frio, o sexo frio, a morte fria, algum desses destinos que o artifício do autor, friamente, exige deles. Mesmo as reviravoltas da trama, como no conto da menina rica que pede ao namorado bandido que mate seu pai, são previsíveis. No vácuo desse mundo estático não há espaço para angústia, descoberta, crescimento, aventura – nem dos personagens nem do leitor. Depois de duas dúzias de páginas, começa a zumbir ao fundo uma dúvida incômoda: por que narram os narradores deste livro? De onde tiram ânimo para tanto, se o próprio ato de contar uma história foi reduzido, em seu mundo, ao automatismo de uma escovada de dentes? A conta não fecha.

Não gostaria de exagerar o peso da influência de Rubem Fonseca sobre os autores da minha geração. Para uma parte da crítica brasileira, qualquer pessoa que ouse escrever hoje sobre sexo e violência – ou seja, os ancestrais amor e morte tão caros a Homero, para citar apenas o mais antigo – cai imediatamente na vala comum dos “realistas urbanos”. Sempre achei que essa crítica presta um enorme desserviço público ao tratar como iguais trabalhos fundamentais e trabalhos acessórios, Marçal Aquino e Patrícia Melo – além de não levar em conta que, com ingredientes “realistas”, é possível preparar pratos que passam longe desse sabor. A via picaresca escolhida por Flávio Braga é apenas um dos caminhos. E uma indicação de que os elementos com que trabalha a ficção de Rubem Fonseca – as várias faces da brutalidade num país brutal – não envelheceram tanto quanto ele.

Lido sob essa ótica, “O que contei a Zveiter sobre sexo” é um exemplo de influência bem digerida. A narração fria e desapaixonada de cenas gráficas de sexo e violência, a marginalidade social do protagonista, seu cinismo, o talento inverossímil para transitar com desenvoltura tanto em círculos burgueses quanto nos da bandidagem barra-pesada – tudo isso pode ser considerado “puro Rubem Fonseca”. No entanto, não existe na leitura do livro nem sombra de déjà vu.

Problemas há. Quase inevitavelmente, algumas peripécias são melhores do que outras. A cena de incesto, arriscada, impressiona mais pela coragem do autor do que por sua resolução artística. No entanto, existe um frescor inegável nas aventuras sexuais de João, alguma coisa que evita o aborrecimento da leitura requentada e faz uma frase conduzir à seguinte com a inexorabilidade um pouco ansiosa das boas narrativas que não se sabe aonde vão dar. Tudo o que não se encontra em “Ela e outras mulheres”.

O fato de Flávio Braga não se levar a sério demais – embora, evidentemente, leve a sério a literatura, o que não é nenhum paradoxo, pelo contrário – parece ser pelo menos parte da explicação. Épater jamais será um fim em si enquanto a ficção, realista ou não, mantiver no horizonte sua dimensão lúdica, antídoto eficaz contra pregações (a)moralizantes. A despeito dele mesmo, ainda existe vida no lado rubem-fonsequiano do mundo.

27 Comentários

  • Black Jack 19/11/2006em00:52

    Excelente resenha, Sérgio! Engraçado, ainda não li o seu livro inteiro, mas aquela abertura que vc emplacou na semana passada tem algo de Rubem Fonseca também, não? Aliás, achei ótima a abertura do seu novo livro! Concordo que o velhinho do Leblon tá meio cansado mesmo, mas sei lá, não tem como não ler os novos do RF, acho que os livros dele (mesmo os meia-boca) são obrigatórios para mim, que comecei a gostar de literatura lendo Feliz Ano Novo. Um abraço!

  • Rafael Rodrigues 19/11/2006em02:29

    Fico triste ao dizer que até eu tenho contos melhores do que dois contos de “Ela e outras mulheres”. Li as histórias em sites, tem uma no Portal Literal e tem outra no blog Prosa Online do O Globo. É triste ver o velho Rubem publicar um material que não está à sua altura. Mas ainda assim vou tentar conseguir o livro, e espero que os outros contos sejam bem melhores que os dois que eu li.

  • Meg (sub Rosa) 19/11/2006em08:14

    Sérgio.
    Mas que conjunção de coisas boas.
    Que belo e engenhoso título: “Rubem Fonseca bom é o outro”!
    Uau!

    Olhe, nem vou ficar falando mais nada a qui, vou é corer pra ler tudo e comprar o que deve ser comprado;-)

    Um beijo!
    Meg

  • Meg (sub Rosa) 19/11/2006em08:17

    Ah! e claro que estão aqui – ou ali- incluídos os parabéns, o melhores, os máximos , pelo “As sementes…”
    Beijo
    M.

  • Saint-Clair Stockler 19/11/2006em09:48

    Por que todo mundo que escreve sobre sexo e violência no Brasil tem de ser “rubemfonsequiano”? Isso é o que mais me irrita.

    Eu leio Marçal Aquino, Fernando Bonassi e Patrícia Mello e não acho que sejam rubemfonsequianos. Se assim forem, teremos de procurar também os machadianos, os clariceanos, os roseanos, os fagundestelleanos e os fernandoabreuanos… Por que só Rubem Fonseca tem seguidores no Brasil? Ninguém fala de seguidores (ou, pior, imitadores) de outros escritores?

  • Saint-Clair Stockler 19/11/2006em09:58

    Naturalmente há um “erro” em Rubem Fonseca que nunca vi nenhum crítico mencionar, mas não é possível que só eu tenha percebido: todos os narradores de RF são o mesmo narrador. Não importa a origem social ou cultural, são o mesmíssimo. Nunca mudam. Usam o mesmo vocabulário, têm o mesmo ponto-de-vista e os mesmos preconceitos. Basta pensar nos narradores de Lygia Fagundes Telles, pra perceber o que quero dizer: no caso desta, cada narrador é uma personalidade diferente: possuem opiniões diferentes sobre o mundo, expectativas diferentes, vocabulário diversos. Mas os narradores de Fonseca são tediosamente iguais.

    Bem, a esta altura vocês já perceberam que não gosto do RF. Não, não gosto mesmo. Acho que ele já deu o que tinha de dar como escritor há muitos anos, e não há coisa mais triste para um escritor do que ser um imitador de si mesmo.

  • ALFREDO GARCIA 19/11/2006em19:51

    Me sinto rumbemfonsequiano, herdeiro de Lygia, Caio, Sérgio Faraco, Clarice, Murilo Rubião, dos bons. Querem herança melhor? Também de Trevisan, o Dalton. Acho ótimos Marçal Aquino e Bonassi, além do Anzanello Carrascosa, entre outros.
    Agora, se o RF se repete, o que dizer de Dalton Trevisan?

  • Gregório Dantas 19/11/2006em21:56

    Caro Sérgio, venho lendo seu blog há uns tempos, e escrevo só agora para elogiar essa sua resenha. Li apenas alguns contos do novo RF, mas minha impressão vai na direção da sua. Vejamos. Vamos ver agora o “outro” Rubem.

  • Oliveira 20/11/2006em09:57

    Sérgio, concordo com as críticas aos últimos livros do Rubem Fonseca, embora eu tenha a impressão de que existam pérolas em meio a toda essa “lama”.
    Mas li o livro de Flávio Braga e digo: se o Rubem Fonseca de que você fala é pior do que o Braga, ele não merecia ter tantos livro publicados: “O que contei…” é o pior romance rubemfonsequiano que li – e foram muitos. Ele não consegue atingir os níveis mínimos de verossimilhança que são necessários para que o leitor vire a página. (Quando li o livro, fiz uma anotação de todas as páginas em que comecei a rir, não pela trama, mas pelo baubucio narrativo do autor.) Ele está no rol dos autores que precisam ler, anotar, copiar outros, para depois pensarem em se chamar de escritores.
    Às vezes, acho que vocês, os críticos, têm de ser mais severos, ou mais “críticos”. Não estamos, hoje, na época de um Joyce ou um Borges – ninguém hoje vai inventar a roda. Mas também não precisamos ser condescendentes com autores medíocres. É até covardia: o que acontecerá com eles quando se descobrirem embustes?
    Um abraço deste que pretende continuar lendo o Todoprosa, que quase sempre mantém um nível excelente.

  • Fernando Molica 20/11/2006em17:43

    Ótima resenha, meu caro. Parabéns.

    Fernando Molica

  • Luis Eduardo Matta 20/11/2006em20:52

    As impressões quase opostas do Sérgio e do leitor Oliveira sobre o mesmo livro, no caso “O que contei a Zveiter sobre sexo”, só ajudam a reforçar a convicção da qual muitos, além de mim, compartilham, de que a unanimidade na literatura (assim como na arte) não existe. Ainda bem, pois a arte não seria tão enriquecedora e fascinante sem o seu caráter subjetivo e a percepção única de cada um que com ela entra em contato.

  • cisco 21/11/2006em13:46

    eu quero ver é quando um brasileiro vai escrever o nosso “Grandes esperanças”, o nosso “A montanah mágica” ou o nosso “Os miseráveis”… Não há mais grandes narrativas, os panoramas de uma época?

  • Oliveira 21/11/2006em13:57

    Cisco, você está parecendo o Daniel Piza. Que história é essa de panorama de época. Relaxa e vai ler um livro.

  • Henry Shinasky 21/11/2006em15:48

    E eu aqui pensando que o tal Zveiter era aquele infeliz presidente do STJD que, literalmente, fudeu com o Campeonato Brasileiro de 2005.

  • clelio 21/11/2006em16:10

    O Rubem Fonseca ( ou Zé Rubem, como gostam de falar os que querem ostentar uma certa intimidade), virou o Jô Soares de si próprio. Lamentável.

  • cisco 21/11/2006em18:26

    é isso aí, Oliveira, panorama sim. cadê nossa grande narrativa? não temos um único e escasso talento para concebê-la?

  • cisco 21/11/2006em18:27

    até quando nossos autores farão regionalismo e literatura “marginal”? jamais teremos um Dickens, um Victor Hugo?

  • cisco 21/11/2006em18:29

    ou você é desses garotos que setenciaram os romancistas do porte de um Dickens e de um Victor Hugo ao esquecimento? Eu troco um Dickens brasileiro por tudo que não seja Machado de Assis, Guimarães Rosa e Erico Verissimo na história da nossa literatura.

  • Oliveira 22/11/2006em08:27

    Cisco, me fale: que país hoje tem essa literatura “panorâmica”? Acho muito engraçado que alguém tenha a postura autoritária de “escrevam isso”, e não aquela que realmente importa: como entender o que está acontecendo. Adoro Dickens, mas também gosto do minimalismo de um Dalton Trevisan. Continuo dizendo: falta a muita gente estudo, inclusive pretensos jornalistas culturais, como o DP, que citei acima (e talvez até leituras básicas de ficção, porque temos um Ruffato – nada mais “panorâmico” do que a série que aos poucos está publicando).
    Repito: se acalme e vá ler um livro.

  • cisco 22/11/2006em10:48

    Leio, aos poucos, todos os grandes e indispensáveis, caro Oliveira. Não há tempo a perder com ninharias marginais. Agora, seja honesto, porque não estou “mandando” em ninguém. Não é porque você lê Ruffato que eu também deveria, não é porque não se faz mais essa literatura no resto do mundo que não podemos fazer aqui também. Eu só peço um Dickens, unzinho só. Quem sabe o Hatoum não o será? ´Quando ele surgir, o resto pode continuar o minimalismo que você tanto admira e que lhe enche de cultura…

  • Oliveira 22/11/2006em12:46

    Que o enche.

  • cisco 22/11/2006em14:05

    de kulturra

  • Rogério Moraes 23/11/2006em02:39

    Considero o Rubem Fonseca um grande escritor. Vejo que infelizmente os críticos tendem a julgá-lo pelo que produziu nos últimos anos, esquecendo os contos geniais que escreveu nos anos 60 e 70. Não por acaso Pynchon, um escritor de “grandes panoramas”, o considera um autor essencial. Dickens é um grande autor, que também fez muitas porcarias. Seu lado emotivo é muito próximo as tramas das novelas da Globo. Um livro, de fato, não deve ser julgado pela extensão. Grande Gatsby, Metamorfose, Estrangeiro e Lavoura Arcaica são grandes obras, mesmo não sendo extensos. Não dá para escrever mais romances do século XIX após conquistas do modernismo. E nem dá mais para ficar exigindo que novos Ulisses sejam escritos. Rubem Fonseca deve escrever da maneira que achar melhor – e ser julgado por isso. Tentar decidir o que um autor deve escrever ou não é errado. Se alguém deseja que determinado livro seja escrito, deve escrever ele mesmo, e não reclamar porque uma outra pessoa não o faz. E pra terminar, ler nunca é perder tempo. Quem decide quais livros são essenciais ou não? Pensamentos como esse apenas reforçam cânones arbitrários e elitismo. Será que ler Ian McEwan, Kazuo Ishiguro, Philip Roth e Milton Hatoum é uma perda de tempo pois ainda não morreram e não são considerados “indispensáveis”? Grande literatura continua sendo escrita em todos os países. Talvez precisamos descutir é se as pessoas amam literatura ou apenas o status que alguns livros trazem.

  • cisco 23/11/2006em17:35

    o curioso é que o “lado emotivo” de Dickens tem 1 século a mais de vida do que as “tramas das novelas da Globo”, né? curioso, curioso…

  • jeanette rozsas 24/11/2006em23:48

    Sérgio,
    Li o último RF e concordo que não emplacou, tirando um ou outro conto, além de algumas passagens que retém o indiscutível brilho do autor. Ainda não li o outro Fonseca, o gaúcho , mas vendo a sinopse gostaria de saber se é apenas coincidência ou tem tudo a ver com Portnoy’s Complaint?

  • Leonardo 28/11/2006em10:39

    Puxa, confesso que fiquei assustado com o que li do Rubem. Comecei a lê-lo por acaso, quando comprei Pequenas Criaturas por que achei o livro bonito e, desde então, não parei mais.
    Acho que comecei, involuntariamente, a ler a partir dos primeiros livros de RF e daí minha surpresa.
    Gosto muito de Rubem, de seus enredos. Gosto de Mandrake, do cobrador, do Delegado com ulcera.
    Gosto da estética assumida em cada conto.

  • Salute 01/12/2006em10:54

    Concordo com o Rogério Morais, muita gente anda falando: “li Kafka, li Dickens, li Jane Austen, li Guimarães Rosa”

    Mas é como se quisessem mostrar a etiqueta de suas roupas de marcas, tipo: “Eu só uso Hugo Boss”

    Hahahahaha