E a Flip teve sua primeira mesa propriamente flípica. Ao fim da entrevista concedida por Salman Rushdie ao jornalista Silio Boccanera, agora há pouco, o público que lotou a Tenda dos Autores estava cheio de sorrisos. Ali estava, enfim, um peso-pesado da literatura mundial, o homem que ganhou recentemente o Booker dos Bookers por seu livro de estreia, “Os filhos da meia-noite”. Ali estava também um personagem político importante (ainda que à sua revelia), no cenário da relação conflituosa entre o Islã e o Ocidente. E ali estava ainda um pai fazendo o lançamento mundial do livro infanto-juvenil que escreveu para seu filho mais novo, “Luka e o fogo da vida”, com direito a uma breve – e constrangida, mas certamente terna – presença do filho no palco.
Resultado: um show redondo, do tipo que faz o público correr para os restaurantes com a cabeça excitada e o coração aquecido. No contexto da Flip, não dá para ser melhor que isso. Rushdie falou do livro que está escrevendo sobre o período em que esteve ameaçado de morte pela fatwa, criticou pesadamente o filme “Quem quer ser um milionário” e não se aborreceu sequer quando, lendo a última pergunta enviada por alguém da plateia, Boccanera lhe perguntou qual era seu segredo para, não sendo bonito nem sabendo dançar bem, conquistar tantas belas mulheres. “Se eu lhe contasse”, disse, “deixaria de ser segredo”.
Abaixo, algumas outras declarações que ajudam a explicar o sucesso da noite:
Sobre o livro que começou a escrever a respeito do período que passou escondido: “Tem que ser não-ficção. A razão disso ser interessante é que é verdade. Adiei esse livro por muito tempo porque queria escrever romances, mas sempre soube que um dia algum tipo de instinto me diria que era a hora de escrevê-lo. Tenho sessenta ou setenta páginas escritas. Sou lento. Volte a me perguntar sobre isso daqui a uns dois anos.”
Sobre a possibilidade de a experiência ter provocado nele uma mudança para melhor. “Tendo a responder que não, porque senão seria como recomendar isso aos outros. Não recomendo. Se você puder evitar ser sentenciado à morte por fanáticos religiosos, é melhor. Mas houve mudanças. Se você é um escritor de inclinação satírica, como eu, tende a olhar para as coisas de que não gosta. E de repente ficou claro para mim que eu precisava conhecer e lutar pelo que eu prezava, e não só contra o que eu não gostava. As piadas dos meus livros também ficaram melhores. Ser ameaçado de morte é bom para o humor. Mas minha visão do fundamentalismo não mudou. Sempre fui contra.”
Sobre a acusação de neoconservadorismo que lhe fez recentemente o crítico Terry Eagleton: “Há um nome para isso: mentira. Terry Eagleton vai estar aqui amanhã, pergunte a ele por que ele disse essa mentira. Passar anos lutando contra o neoconservadorismo de Bush e Cheney e de repente ser acusado de ser um aliado do neoconservadorismo de Bush e Cheney é desonesto, ofensivo e desonroso. Dizem que minha visão do Islã é simplista. Ora, o Islã é minha família. Minha visão é muito complicada. No entanto, vocês devem ter reparado que existe um problema mundial envolvendo o Islã. O que me irritou depois do 11 de setembro foi as pessoas dizerem que não, aquilo não tinha a ver com o Islã. Bom, com ioga é que não tinha! O problema é esse ambiente politicamente correto terrivel, que não permite falar certas coisas. E a função de um escritor é tentar enxergar as coisas com clareza. Se isso desagrada alguém, então desagrada.”
Sobre seu ateísmo: “Ao longo da história, o que se vê é que os deuses acabam sendo descartados. Depois que as religiões morrem, eles se tornam muito importantes para nós, deixam de ser deuses e viram mitos. Eu sinto pena dos deuses: um dia eles são poderosos e no dia seguinte aquele raio não funciona mais. É a tragedia dos deuses descartados. Mas é bom que eles morram, primeiro porque deixam de matar pessoas, e depois porque então as religiões viram narrativas, histórias.”
Sobre a influência de Borges, García Márquez e, surpreendentemente, Machado de Assis: “Acho que Borges foi uma má influência. Minha natureza como escritor não é borgiana, mas quando descobri ‘Ficções’ por acaso, sem nunca ter ouvido falar nele, em minha juventude, fiquei pirado. E cometi o erro de tentar escrever daquele jeito, quando só uma pessoa podia escrever daquele jeito. Tive que aprender a não escrever como Borges. García Márquez e toda a literatura do boom latino-americano também foram importantes. Muita gente na Índia acha muito fácil se identificar com a literatura sul-americana, não só pelo aspecto da magia mas porque são dois mundos com uma longa história de colonialismo, que se expressam na língua trazida pelo colonizador, que têm uma religiosidade forte e grandes desigualdades sociais. De Machado de Assis eu roubei uma ideia. Gosto muito do início de ‘Memórias póstumas’, quando o narrador diz que não vai explicar como faz para escrever do além-túmulo porque os detalhes são aborrecidos demais. Usei isso em ‘Luka’ para descrever a tecnologia do mundo mágico: ah, isso é complicado demais para explicar. Roubei dele. Se você tem que roubar, que seja dos bons.”
4 Comentários
Olá Sérgio,
Rushdie além de grande escritor é muito bem humorado. Belas mulheres apreciam homens talentosos. É este o segredo.
Gosto muito do Rushdie E gosto muito do Eagleton – mas não vou entrar em polêmicas. O Rushdie é um contador de histórias deliciosas. Não li seu livro mais famoso e polêmico, mas li vários outros e me encanta como ele é criativo, como parece “fácil” (e não é, obviamente) o jeito como vai botando o texto no papel. Ele tem um humor terrível (terrível de tão irônico), sim, e isso é um plus pra obra.
Anouk: também imagino que seja por aí.
Saint-Clair: indo agora ver o Eagleton. Aguarde o outro lado da briga.
Abraços a todos.
Rushdie é um gringo, homem de língua anglo-saxônica, que conhece Machado de Assis. A mim isso causa sempre como que uma simpatia imediata. Porque além de tudo, evidencia um ótimo leitor.