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Serrote iluminista

31/03/2009

Quando olho para trás, fixo-me no século 18, no Iluminismo, em sua fé no poder do conhecimento e no mundo de idéias em que ele operou – aquilo a que o iluminista se referia como República das Letras.

O século 18 imaginava a República das Letras como um reino sem polícia, sem fronteiras e sem desigualdades, exceto as determinadas pelo talento. Qualquer um podia juntar-se a ela exercendo os dois atributos principais da cidadania: escrever e ler. Escritores formulavam idéias e leitores as julgavam. Graças ao poder da palavra impressa, os julgamentos se estendiam por círculos cada vez mais amplos, e os argumentos mais fortes venciam.

Este trecho do ótimo artigo do historiador Robert Darnton, chamado O Google e o futuro dos livros – que consegue fazer um alerta progressista e não tecnofóbico sobre a avalanche do Google Book Search – estabelece um diálogo sutil com a revista-livro em que é uma das atrações: a inteligentíssima “Serrote” (224 páginas, R$ 29,90). Publicação quadrimestral do Instituto Moreira Salles, ela mal foi lançada e já é uma das melhores provas disponíveis no mercado brasileiro de que os ideais (utópicos?) do Iluminismo não se apagaram por completo.

Um produto para a elite? Sem dúvida nenhuma: elite cultural, ou seja, a melhor delas. Que, convém lembrar, só coincide tão bem com a econômica – embora o Brasil tenha alguns dos ricos mais ignorantes do planeta – porque aqueles ideais setecentistas fracassaram parcialmente. Como o próprio Darnton adverte, “a República das Letras só era democrática em princípio. Na prática, ela era dominada pelos bem-nascidos e pelos ricos”. No início do século 21, se República das Letras houver, esse domínio não mudou muito.

O problema aqui não é tanto o preço, que é camarada para a qualidade material e imaterial do produto, mas a bagagem que a “Serrote” (nome inspirado em Murilo Mendes) exige do leitor como taxa de admissão à mesa, antes de recompensá-lo com seu menu-degustação. Alguns pratos: desenhos inéditos de Saul Steinberg, Pancetti pintando ao ar livre em fotos de Marcel Gautherot, um ensaio de Edmund Wilson sobre os primórdios da hoje envelhecida indústria automobilística americana, Tostão penteando as palavras num breve e convincente elogio do passe como fundamento do futebol, aforismos de Kafka traduzidos por Modesto Carone, uma carta com a marca da generosidade egocêntrica de Mario de Andrade a um jovem Otto Lara Resende e as curiosas correspondências descobertas por Samuel Titan Jr. – um dos editores da revista, ao lado de Flavio Pinheiro, Matinas Suzuki Jr. e Rodrigo Lacerda – entre “Memórias póstumas de Brás Cubas” e o ambiente editorial da “Revista Brasileira”, onde o romance apareceu primeiro como folhetim.

Diz a carta dos editores que o gênero fundamental da “Serrote”, o ensaio, tomou no Brasil “forma acadêmica, o que é uma pena, pois fica sem o que tem de bom, a espontaneidade. Por causa dela, Vinicius de Moraes achava que o essay estava na origem da brasileiríssima crônica. O ensaio ideal poupa citações e supõe que as notas de rodapé são um terreno minado”. Só por essa declaração de princípios a revista já mereceria vida longa.

7 Comentários

  • Claudio 31/03/2009em14:02

    Boa tarde. Sérgio, existe alguma forma de adquirí-la on-line?

  • Sérgio Rodrigues 31/03/2009em15:31

    Não sei dizer, Claudio. Recomendo entrar em contato com o IMS.

  • Fernando Torres 31/03/2009em17:29

    Sérgio, e o GRANTA-Brasil? Morreu?

  • isaac 01/04/2009em00:56

    tostão foi um gênio do futebol e escreve bem pacas.
    gostei dessa revista. bem diversa.

  • Gumercindo 06/04/2009em11:02

    Claro, claro… O que falta no Brasil é “espontaneidade”…

  • Anderson Felix 15/07/2009em02:42

    Caro Sérgio, concordo com a qualidade inquestionável da revista Serrote. O texto que você menciona é primoroso. No entanto, fico com a seguinte impressão: não parece que a cobertura que a imprensa em geral faz, e também os meios especializados em tratar a cultura brasileira, nao refletem uma postura que confunde cultura com luxo? abraço, Anderson.