O novo livro de Haruki Murakami, “1Q84”, tem 928 páginas. O estouradíssimo George RR Martin, resposta americana a Tolkien, escreveu para a série “Crônicas de gelo e fogo” cinco tijolos de muitas centenas de páginas cada um, que na soma das tiragens dariam para construir metrópoles inteiras de casas robustas, com paredes à prova de som.
Estamos na terra dos gigantes, em que o último título megahypado da literatura americana, “Liberdade”, de Jonathan Franzen, com suas 761 páginas, parece de porte não mais que mediano. Os dois romances mais recentes do velho Stephen King têm, respectivamente, 1074 e 740. Roberto Bolaño compareceu há pouco tempo com “2666”, que não chega a ter tantas páginas quanto o nome sugere, ficando em 856, e que de todo modo é um coletivo de romances e não um. Mas na estante ocupa quase tanto espaço quanto outros mamutes, de “Infinite Jest”, de David Foster Wallace (1079), a “As benevolentes”, de Jonathan Littell (912).
Diante de tudo disso, o novo Jeffrey Eugenides (que já baixei no Kindle e que seu tradutor Caetano Galindo me disse ser muito bom) nem parece exatamente um romanção. O anterior, “Middlesex”, tinha 544 páginas. O novo, “The marriage plot”, para na 416ª. Só isso?
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Não há nada no Brasil que se possa comparar à categoria do livro grande da ficção internacional, sobretudo a americana. Aqui, “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, de 1984, com suas 640 páginas, é considerado um livro longuíssimo, quase uma aberração. Historicamente, temos “Os sertões”, de Euclides, e é verdade que “O tempo e o vento”, de Erico Verissimo, daria um cartapácio para lá de exuberante se saísse num volume só. Ah, alguém mencionou “A pedra do reino”, de Ariano Suassuna (756)? De todo modo, me parece que, depois de “Viva o povo”, o único a ir realmente longe nessa corrida é “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves (952!), um livro ímpar por outros motivos além deste. Atrás dele, no último quarto de século, há um vácuo de algumas centenas de páginas e só então começam a aparecer aqui um “Pornopopeia”, de Reinaldo Moraes (480), ali um “O paraíso é bem bacana”, de André Sant’Anna (456), acolá um “Cidade de Deus”, de Paulo Lins (404).
Há pouco tempo rolou por aí um pseudodebate sobre a falta de fôlego da ficção nacional, sua quase inapetência para jornadas narrativas acima de 200 páginas. Não foi adiante porque o tamanho é um critério idiota. O melhor livro de Eugenides ainda é o primeiro, “Virgens suicidas”, que não passa de 216 páginas.
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Sem deixar de ser, para juízos individualizados de valor, um critério idiota, pensar no baixo número de páginas da nossa literatura pode quem sabe levar a percepções que sejam, de um modo mais sintético que analítico, reveladoras.
Será que nosso narrador médio carece de stamina para sustentar histórias de 500 páginas para cima porque trabalha numa cultura que desconfia das histórias, identificadas com lorotas, golpes, caô? Sustentar um longo arco narrativo requereria do autor não apenas os recursos técnicos de praxe, mas uma força literária de titã a lutar contra os elementos. De comprido, basta o milkshake de dramalhão com tragicomédia das telenovelas.
Sem acesso ao longo curso, compreende-se que esse narrador se volte então para outros aspectos da história, cultivando em sua prosa um movimento de verticalização, de mergulho na linguagem, de aproximação com a poesia e com uma lentidão que tenta compensar, em suas sutilezas, o que se perde de alcance espacial com o encolhimento do enredo.
Ou então, numa estratégia oposta, nosso narrador arma histórias que querem resolver logo a parada, como atletas de pista que ganham em velocidade o que perdem em distância, partindo para a tentativa de nocautear rapidamente o leitor. A violência como um dos temas – e tons – de eleição da ficção brasileira dos últimos 50 anos deve ter algo a ver com isso. Os personagens trocam murros porque, no fundo, é isso que o narrador deseja fazer com o leitor.
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Outra hipótese – não menos periclitante, mas possível – é a de que contar histórias exige do contador, antes de mais nada, uma combinação de certezas difícil de conjurar. A convicção de que vale a pena contar histórias, em primeiro lugar. A de que vale a pena contar aquela história, em segundo. Em terceiro lugar vem a certeza de estar contando a história tão bem quanto ela pode ser contada, enquanto a quarta e última convicção, talvez a mais difícil, é a de que aquela história, contada daquela forma, terá interesse para alguém.
Vamos combinar que é muita fé na história, no encadeamento estético dos fatos, na peripécia, na reviravolta, para uma cultura popular de corte piraresco e antiépico que tem em Pedro Malasartes e João Grilo dois de seus inúmeros artistas da engambelação narrativa. O cinismo com que o leitor de literatura brasileira encara a dimensão do enredo, sempre pronto a farejar ali o papo furado, o anedótico, o engodo dos malandros, quando não o lugar-comum e o automatismo das lições de moral e cívica ou dos enlatados da TV, esse pé-atrás esteriliza no narrador médio o gozo da simples narração que é uma marca dos livros muito longos – e que nos casos menos bem-sucedidos se confunde com a autoindulgência.
O que faz nosso narrador nesse ambiente hostil? Narra a contrapelo, busca tirar efeito de atritos e dissonâncias, vê-se obrigado a, em alguma medida, ironizar o próprio estar a narrar. Não admira que fique cansado antes da página 200.
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Ou então, claro, não é nada disso.
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Para fechar, não acho surpreendente que a narrativa extralonga goze de tão boa saúde na era da velocidade, da mensagem curta, do post e do Twitter. É claro que a literatura, como qualquer arte, responde à falta de paciência e concentração do nosso tempo. Não necessariamente, porém, a resposta que encontra é concordar com ela.
12 Comentários
Belo texto, Sérgio. Para fechar o ciclo vicioso, mesmo quem é afeito às grandes narrativas gringas acaba ficando ressabiado, por estranhamento, e hesita ao encarar algo brasileiro muito extenso.
Mezzo off-the-topic: decidi pegar a onda Franzen começando pelo Correções e, putz, adorei o livro. Vc escreveu algo mais longo sobre ele, Sérgio? Se sim, gostaria muito de ler.
Boa, Sérgio. Só quero acrescentar dois paus de lenha nessa fogueira. O Ivan Lessa disse uma vez que ninguém tem o que dizer além de duzentas laudas. É um exagero, claro – há um punhado de romances compactos com mais de duzentas páginas -, mas por ele se vê melhor a verdade. Uma enxugada melhoraria sensivelmente livros como Reino da pedra e Viva o povo. Nem falemos de Stephen King – em Cristine ele gasta três ou quatro páginas pro rapaz trocar um pneu, coisa que eu faço numa frase. Agora, esse negócio da convicção… Borges dizia que o mal da literatura argentina era a falta de convicção. Mas pensemos em Borges, Bioy Casares, Arlt, Cortázar, Piglia. A falta de convicção parece se aplicar muito mais à literatura brasileira, não?
Cara, tava com saudade dos teus textos. Sabia que dia 2 de novembro ainda tava distante, mas sempre abria o blog pra ver se você não tinha mudado de ideia.
Bah, o Sergião voltou inspiradíssimo! Cara, quê que você tomou nas férias? Abraços.
P.S.: Bom encontrar o meu compatriota Ernani Ssó por aqui. Abraço pra ti também.
Lógico que tamanho não é sinônimo de qualidade, mas quem produziu o folheto da Flica, a Feira Literária Internacional de Cachoeira, deve achar que sim: cada citação de Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves, veio acompanhada de “952 páginas”. Até sei o que Sandra Annenberg comentaria sobre o caso.
Eu gosto de livros longos, pelo simples fato de que gosto de ler, e um livro longo vai me propiciar oportunidade de passar mais tempo lendo. Não sou muito exigente no estilo, desde que ache a escrita envolvente. Diana Gabaldon superou muita gente no número de páginas com sua série Outlander, que parece “romance de mulherzinha” mas que já vendeu milhares (ou milhões?)de volumes. Merece respeito a série Harry Potter que fez nossos adolescentes lerem várias centenas de páginas quando achávamos que eles não passariam do internetês…
Esse vício pouco usual (no Brasil) de ter que ler alguma coisa todo dia, foi passado aos meus filhos, que “negociam” minutos adicionais de leitura toda noite no horário de dormir, e ostentam orgulhosamente, aos 11 e 7 anos, uma biblioteca doméstica concorrente com a da escola – particular – onde eles estudam.
Na verdade, comecei a notar uma incidência tão grande em romances nacionais com 176 páginas que cheguei a tomar isto como alguma espécie de conspiração.
É complicado avaliar o valor de uma obra/autor por sua extensão, mas é comum que a qualidade de um livro seja medida pelo número de páginas. Também comum é a procura por “livros pequenos”, o que pode explicar a “escolha” de nossos autores por uma narração mais curta.
“1Q84” e suas 928 páginas não me “assutam”, pois conheço a narrativa do Murakami (best-seller com um pouco mais de qualidade, mas ainda uma leitura fraca/fácil).
Faz tempo que noto isso. O tamanho do livro não é necessariamente uma credencial de qualidade, mas indica, no mínimo, que o autor tem muito a dizer (ou pelo menos o tinha quando idealizou o livro). Coisa que nossos autores não têm.
Na verdade, os autores brasileiros só escrevem livros pequenos porque não têm o que dizer.
Eles querem publicar um livro, não querem comunicar uma ideia ou falar algo. Na verdade, sequer querem escrever um livro: só querem publicá-lo.
E eu tenho pena, muita pena, da pessoa que falou mal de Murakami. Ele aborda temas complexos de maneira simples e cativante. Coisa que a Lispector, autora que a comentarista provavelmente lê, tentava fazer (abordar temas complexos) mas nunca conseguiu (profundidade de A Hora da Estrela não passa de uma poça de cuspe).
Abraços.
Esse Haruki Murakami escreve em japonês ou em inglês? (Percebe-se que nunca li nada dele.) Rapaz, eu sempre acho uma coisa estranhíssima a literatura oriental… quero dizer, é, na verdade, muito interessante escrever um livro com “símblos”, ideogramas, em vez de palavras… Isso também não intriga vocês?
Não podemos esquecer de Josué Montello que escreveu
Os Tambores de São Luís, um belo romance de 612 páginas.
Texto incrível!
Poxa… contar histórias é ter certezas? Isso me fez pensar, é muito verdadeiro e cruel, num mundo onde ter uma certeza não é muito confiável, parece estagnação. Mas dá para ter certeza de nossas incertezas, então nem tudo está perdido.
* não ficou faltando Grande Sertão? Na edição que tenho aqui em casa, tem 548 páginas.