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Sobre Roth, Kertész e a hora de parar

16/11/2012

Mal havia assentado a notícia de que Philip Roth (foto) parou de escrever, o húngaro Imre Kertész anunciou que também estava pendurando as chuteiras. Isso acrescentou um prêmio Nobel a um eterno candidato ao prêmio Nobel na lista dos desistentes da literatura e criou um campo fértil para piadas – nervosas, porque o tema toca em angústias mais profundas do que gostaríamos de admitir – entre escritores das minhas relações. Quem mais faria bem à própria obra se mostrasse a mesma clarividência e a mesma coragem de reconhecer que já disse tudo o que tinha a dizer, que o que resta agora é só um vício, um hábito besta e não muito diferente daquele que Alexander Portnoy exercita à exaustão num dos livros mais famosos de Roth?

“Não vamos citar nomes”, disse o mais experiente e sábio da rodinha. O que não impediu, claro, que nomes fossem citados, de gente consagrada a um ou dois jovens autores da “Granta”. Estávamos entre amigos. A graça da maledicência descompromissada repousava no acordo tácito de que ninguém se viraria para o outro para dizer: “Você, por exemplo”. No máximo, num arroubo mais ousado de humor autodepreciativo (que também provocaria constrangimento), um de nós poderia se voltar contra si mesmo: “Eu, por exemplo”. Pois a verdade é que nenhuma dessas possibilidades pode ser afastada quando se entra no terreno perigoso ao qual Roth e Kertész nos arrastaram.

A questão de por que escrever – que faz fronteira, evidentemente, com a questão de por que não escrever – é sempre um ponto cego para quem escreve. Escrever é uma anomalia gramatical: um verbo intransitivo louco para encontrar um objeto direto que o justifique. Nos casos em que o objeto é encontrado e tem a felicidade de virar objeto de desejo do leitor, o verbo fica todo pimpão: “Está vendo? Escrevo porque esse objeto precisava ser escrito, e da forma mais direta possível”. Mas é mentira do verbo, que no fundo sabe que permanece e permanecerá intransitivo, e no dia seguinte estará caçando outra vez.

Acabou não havendo nenhum lance tão dramático naquela conversa de amigos cultores da intransitividade. Ela me voltou à cabeça agora há pouco quando li o artigo de Julian Tepper, um jovem escritor americano, sobre o conselho que ouviu de Roth ao se encher de coragem e abordá-lo num café (onde o novato trabalha como garçom) para lhe dar de presente um exemplar de seu primeiro romance. Isso aconteceu poucos dias antes do anúncio da aposentadoria do ídolo. Depois de parabenizá-lo e elogiar o título do livro (Balls), Roth disse a Tepper: “Isso é muito bom, mas no seu lugar eu desistiria enquanto estou na frente. Sério, é um campo horrível. Pura tortura. Horrível. Você escreve e escreve, e tem que jogar fora quase tudo porque não presta. Eu lhe diria para parar agora mesmo. Não faça isso com você mesmo. Esse é o conselho que dou”.

O conselho é sensato, ainda que cheio de amargura. Eu mesmo já me peguei dizendo coisas parecidas a escritores aspirantes. No caso, as palavras têm um caráter autoexplicativo ao sair da boca de um escritor que, com exceção do Nobel, experimentou merecidamente todos os tipos de glória que as letras podem propiciar – mas quase nunca propiciam. Se até Philip Roth chega ao fim da vida com uma visão tão sombria do ofício ao qual se dedicou com disciplina de monge, isso não será a mais cabal das provas de que estamos falando mesmo de um “campo horrível”?

Pode ser. Ocorre que o conselho é também inútil. A resposta de Tepper contém pelo menos tanta verdade quanto ele: “Tarde demais, senhor. Não dá pra voltar atrás”. É isso: sempre é tarde demais. Tanto para quem mal começou a escrever quanto para quem já decidiu parar, a literatura vai ser sempre um trem que deixou a plataforma e dobra lá longe a curva das montanhas quando o autor finalmente chega, esbaforido, à estação. Todo dia ele promete ser pontual na manhã seguinte, e todo dia a cena se repete. Só resta ao atrasadinho – caso ainda não esteja cansado da brincadeira – voltar para casa, desfazer as malas e imaginar com palavras como teria sido maravilhosa a viagem.

Vai desistir por causa disso?

11 Comentários

  • glaucia hoppe meibach de oliveira 16/11/2012em15:14

    foi um choque mas se ele acha que não tem mais nada a dizer que seja assim certas pessoas tem a sabedoria de parar e ele conseguiu acho que a escrita o esgotou mas vou sentir falta glaucia hoppe

  • Afonso 16/11/2012em17:51

    Parece que há um momento em que nos chega a lucidez. Ou a compreensão que a vida é realmente inapreensível por mais que nos esforcemos (escrevendo, escrevendo) para alcançá-la. Disso sobrevive a literatura – em buscar, talvez, uma ‘totalidade’ impossível. Uma inutilidade tudo isso? Talvez, como a própria razão de dar utilidade a tudo. Os caminhos estão aí: façam a escolha.

  • molina 16/11/2012em18:00

    tinha certeza que era o técnico de futebol, desculpe-me.
    mas que o sigam, felipao, joel santana e mais uma porção deles.

  • clara lopez 16/11/2012em21:30

    Muito bom seu comentario, Sergio, vc sempre muito afiado qdo trata dessa nosda nobre dama, um abraço; clara
    Valeu, Clara! Sempre fico feliz de ver aqui uma todoprosista de longa data. Abraços.

  • clara lopez 16/11/2012em23:24

    E aproveitando, Sérgio, uma das consequências da entrevista do Roth foi eu encomendar Némesis rapidinho, vai que o último livro do homem desaparece das livrarias e eu não li, já pensou? :)) abraço, clara

  • Alessandro 17/11/2012em09:59

    Roth tomou a decisão certa. Estava na hora dele parar. Já não aguento mais ouvir falar dos livros deles. São sempre com o mesmo tema: velhice, medo da morte, culpa, judaísmo. Depois, dizem que ele é um gênio, um dos melhores escritores de todos os tempos. Vai entender a crítica literária.
    Alessandro, um dos melhores de todos os tempos é muito forte. Um dos grandes escritores americanos do seu tempo, sem dúvida. Abs

  • Rafael Mendes 17/11/2012em11:25

    Lindo texto, Sérgio.
    Obrigado, Rafael. Um abraço.

  • Leonardo 18/11/2012em23:05

    o que eu mais queria saber era qual “jovem da granta” deveria parara de escrever… rsrsrs… bem, eu tenho minha opinião, mas enfim… rsrs

  • Rafael 19/11/2012em13:13

    Sérgio,
    Li o artigo do Julian Tepper.
    Confesso que não consegui digerir direito esse tom de veneração, de idolatria, que perpassa toda menção ao Philip Roth. Tamanha é a devoção do Julian Tepper pelo autor de Operação Shylock que ela se traduz em reações físicas: “the author’s presence had been enough to make me physically ill and render my hands so shaky that I would drop plates, spill coffee, trip on air.”
    E pensar que todo esse endeusamento recai sobre um prosaico ser humano, que do alto da posição de escritor consagrado e reverenciado me sai com a mais banal das observações: desista, isso é tortura, pare enquanto é tempo.
    Soa cínico o conselho, pois quem o pronuncia foi recompensado regiamente com o ofício de escritor.
    Seria mais honesto dizer que a semeadura é difícil e a colheita, incerta. Que ser escritor é mais um passatempo que uma profissão. Não espere lucros, reconhecimento, as luzes da ribalta. Seja esperto e arranje um meio de subsistência, pois ganhar dinheiro é preciso. Quiçá a fama venha, mas o mais provável é ser mais um entre tantos esquecidos pela fortuna. Boa sorte, meu rapaz.
    Se tivesse dito coisas semelhantes à cheerleader que o havia abordado com tanta reverência, o Philip Roth seria digno de respeito e admiração. Mas, sinceramente, no seu fraseado, não vejo senão arrogância e soberba.
    Vale

  • Rogerlando Gomes Cavalcante 20/11/2012em15:44

    (…)
    Sou também escritor, mas, está claro, longe de Roth e mais ainda dos círculos – e ombros, se nos calcanhares – dos autores contemporâneos brasileiros. Nem a língua nem o território, tudo que temos em comum, nos brasileiros, nos aproxima. A uma porque eles vivem em círculos de iguais – e hienas – e centro propagadores. Eu subsisto nos ermos sem letras do país. Evidentemente que o meio não empresta, ou subtrai talento – nascer em Itabira – Mg, Itaparica-Ba ou em Independência – Ce, feito eu, não confere a ninguém estrela na testa, predestinação para nada: nem para cuidar de porcos, nem para emporcalhar a literatura – conheço um chiqueiro, lá só tem autor chique e sem chilique, lá ninguém tira ouro do nariz. Outros vivem a catarse de reproduzir literatura fora de lugar e tempo: o regionalismo de denúncia, por exemplo.
    (…)
    Philip Roth não fará mais nenhuma expedição fora da literatura, é o que significa sua aposentadoria – já releu seus autores prediletos e sua própria obra. E, depois dos oitenta, superou afinal o medo da poliomielite, medo que tinha desde jovem. Agora, encerrado em sua obra, gratificado, mas ainda resmungando, espera somente o seu fim – o de autor já se deu: desgastou-se escrevendo. Escrevendo e incorporando à literatura não a poliomielite, mas o que uma doença acarreta – ou seja, se para a poliomielite já há cura, o ser, mesmo se sã, permanece incurável. O mal dos males (cânceres, AIDS…) que nos acometem hoje é o da de autoimunidade. E mal da autoimunidade,em literatura, é o bem. A literatura não é a busca da cura, nunca foi, mas a fruição das aflições mesmas de um ser tão falho como o é o humano.

    Enfim, a escrita desencadeia a autoimunidade. E a autoimunidade preserva a literatura permitindo sobreviver apenas os autores de mais ciência de sua inescapável humanidade – e falência.

    Escrita – a falha: a literatura está sempre fora de si mesma.

  • Athayde 23/11/2012em03:40

    Depois de publicar dois livros de contos e um romance na forma impressa, de dois romances digitais e quase uma centena de contos em site próprio e outros dedicados à literatura, cansei. E resolvi parar. Mas então descobri que os escritores são amaldiçoados. Todos os dias eu sonho que estou escrevendo. São textos longuíssimos, estranhos e difíceis. Geralmente acordo de madrugada completamente exaurido – e acabo enchendo o rabo de analgésicos. Um inferno, Sérgio. E não se iluda, você ainda vai conhecê-lo em alguma fase de sua vida.