A morte do escritor russo Alexander Soljenitsin, aos 89 anos, domingo, fez a imprensa lembrar em coro que o vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1970, autor de “Arquipélago Gulag”, foi o maior adversário do extinto regime soviético no campo das letras, o mais famoso dos dissidentes. O que, acrescento eu, é ao mesmo tempo sua glória e sua danação. Morto o regime, e descontado o interesse histórico que seus livros possam gerar, por que alguém leria Soljenitsin? Eu nunca li, nunca senti falta. Está certo que tenho lacunas enormes na estante, mas também já li coisas tão datadas quanto A.J. Cronin e José Mauro de Vasconcelos. Parece que não estou sozinho. O “Moscow Times” diz que as novas gerações russas também não o lêem.
Mas existe um lado menos, vamos dizer, programático, previsível e politicamente correto em Soljenitsin, um lado que o torna ao mesmo tempo mais intratável e mais interessante. O homem não era apenas um dissidente soviético. Era também um dissidente do Ocidente. Com aquela loucura bem russa, nacionalista e mística, não muito diferente da de Dostoiévski, proferiu em 1978 um famoso discurso na Universidade de Harvard em que enunciou, entre outras, as seguintes pérolas liberticidas, que devem ter feito Karl Rove roer de inveja os próprios dedinhos roliços:
Na sociedade ocidental de hoje, revelou-se a desigualdade entre a liberdade para as boas ações e a liberdade para as más ações. Um estadista que queira realizar algo importante e altamente construtivo para seu país precisa agir cautelosamente, até mesmo timidamente; existem milhares de críticos afoitos e irresponsáveis à sua volta, o parlamento e a imprensa o rechaçam. À medida que avança, ele é obrigado a provar que cada um de seus passos é consistente e absolutamente impecável. (…) Desse modo, a mediocridade triunfa sob a desculpa das restrições impostas pela democracia.
A defesa dos direitos individuais chegou a tais extremos que tornou a sociedade como um todo indefesa diante de certos indivíduos. Chegou a hora, no Ocidente, de defender menos os direitos humanos e mais as humanas obrigações.
O criminoso pode ficar impune ou ser tratado com leniência indevida, apoiado por milhares de defensores públicos. Quando um governo começa uma luta sincera contra o terrorismo, a opinião pública imediatamente o acusa de violar os direitos civis dos terroristas. Há muitos casos desse tipo.
Como assim? Então a mais famosa vítima de uma ditadura defendia regimes de exceção? O discurso deu um nó na cabeça da intelectualidade ocidental, que quatro anos antes recebera Soljenitsin festivamente como um herói da liberdade, e contribuiu de modo decisivo para o duplo ostracismo em que ele mergulhou nos anos seguintes.
Acabo de ler o tal discurso – aqui, em inglês. É, a meu ver, uma fieira de equívocos perigosos e atualíssimos. Mas não duvido que, ao dar nuances surpreendentes – e portanto mais humanas – a um personagem que o bipolarismo político do século 20 tentou tornar monocromático, acabe contribuindo para a sobrevivência literária de Soljenitsin. Eu, pelo menos, tive pela primeira vez vontade de ler o homem.
26 Comentários
Solzhenitsyn é a prova dos tantos mal entendidos que cercam a mal compreendida literatura russa. Há nos autores russos, em especial seus mais proeminentes representantes, Dostoievski e Tolstói, um sentido apostólico, messiânico e, de certa forma, escatológico. O individualismo ocidental é um valor inaceitável para esses autores, que vêem o Universo governado pela mão invisível do terrível Deus do Velho Testamento. Solzhenitsyn, que fez uma denúncia corajosa das crueldades soviéticas, é tributário dessa poderosa tradição. Ele é um típico escritor russo, com todo o fatalismo dos genuínos escritores russos. Hobsbawn, o mega-star dos historiadores ingleses, considerava Solzhenitsyn o maior escritor do século XX e, se não me engano, um trecho dessa conferência de Harvard é citado n’A Era do Extremos: o que bem diz sobre o caráter de Hobsbawn.
José Mauro de Vasconcelos é datado? Ah… Diria que é mais esquecido pelo público leitor do que datado…
era o dissidente da dissidencia. …a caminho da anarquia… olhou os dois lados e ficou de seu próprio lado.
Soljenitsin… Está na estante. Mas confesso que não tenho pressa alguma de lê-lo. Tem muito Dostoievski e Tolstói na frente. 🙂
É uma perda. Mesmo ignorando como não pode ser lido em seu próprio país. Talvez as sevícias do regime stalinista tenham conseguido domar o povo ou não sei que tipo de força impede que o povo russo impeça a si mesmo de ler O Pavilhão dos Cancerosos – publido pela no Brasil, se não me engano, pela ed. Expressão e Cultura. Li esses dois tomos, porque é um livro longo, mas sem impedimentos para leitura e o volume de novelas A Mão Direita. Talvez tenha uma proximidade com Dostoievski quando relata os abusos da Sibéria em seu Arquipélago de Gulag – sobre este livro ouvi falar tanto que quase chego a sabê-lo de cor sem o ter tocado. Só posso recomendar os dois que li e que são a prova de que existe literatura em sua prosa e não apenas um denuncismo vazio, jornalistico. Sérgio, pelo menos esses dois livros eu recomendo. O Pavilhão dos Cancerosos é comovente. Abraços a todos
Mariel Reis
visitem: http://www.cativeiroamoroedomestico.blogspot.com
Pavilhão dos Cancerosos é uma alegoria bastante interessante do regime soviético. Acho que há muito tempo não é publicado no Brasil, mas vale a pena vasculhar sebos e bibliotecas.
Mariel e Marcelo, obrigado pela dica. Abraços.
AINDA JOVEM NA DECADA DE OITENTA, AINDA ME LEMBRO COMO, NUM SEBO; ADQUIRI O FAMOSO “ARQUIPELAGO GULAG”… NA EPOCA LIA MUITA LITERATURA SOBRE A “CORTINA FERRO COMUNISTA”… HOMENS E MULHERES QUE CONTAVAM SUAS HISTORIAS DE SOFRIMENTOS TERRIVEIS EM SEUS PAISES DITATORIAIS, COMUNISTAS… HOJE ISSO TUDO PARECE SONHOS, QUIMERAS PASSADAS, LEMBRANÇAS VAGAS , HISTORIAS LONGINGUAS… MAS UMA COISA É CERTA; TUDO ACONTECEU SIM, VERIDICAMENTE,HONESTAMENTE.E TERMINANDO DIGO: O ARQUIPELAGO GULAG , FORJOU O MEU CARATER, ME AMADURECEU… O COMUNISMO NA EUROPA ORIENTAL ACABOU; MAS O ARQUIPELAGO GULAG, NÃO. ELE TAÍ, A HISTORIA,E A JUSTIÇA ETERNA O INVOCARÁ , E O CONVOCARÁ , PARA FICAR DE PÉ CONTRA, DITADORES EUROPEUS ,QUE AGORA SÃO “JOÕES NINGUENS”… VIVA ALEXANDRE, VIVA QUEM SOFREU COM ELE, E LEU ELE…
Li quase tudo de Soljenítsin. Foi um débil mental.
Bom, se é para ler algo do homem, a dica correta é Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch. É curto e bom. O Pavihão é um calhamaço de mais de 600 páginas.
Li tb. É cansativo pacas.
Rafael,
Numa epígrafe ao capítulo 19 da Era dos Extremos, Hobsbawn transcreve um trecho de um artigo publicado por Soljenitsin no New York Times em 78; não encontrei excertos do discurso aludido.
Hobsbawn teve formação marxista, atuando sempre em solidariedade aos homens e movimentos de esquerda. Portanto, sua opinião amplamente favorável ao escritor russo merece destaque pela capacidade que demonstrou o hisotoriador em separar talento literário e posicionamento político.
E talento literário não foi o que se observou na ‘canonização’ de Soljenitsin, mas o fato de que escreveu contra um regime de máxima opressão contrário ao Ocidente, pouco importando que o regime dos sonhos do escritor teria sido tão opressor quanto.
Anrael,
Como fiz a citação de cabeça, cometi um equívoco: confundi o artigo que você menciona com o discurso citado pelo Sérgio Rodrigues.
Duas coisas:
a) o escritor russo vale o que vale – digamos, para simplificar; o valor dos pitacos políticos do cidadão russo é outro – maior ou menor;
b) o homem recitou uma versão política de “pimenta no ** dos outros não arde” (ou: ditaduras boas são as minhas)
Sírio, concordo. Não pretendi dizer que as opiniões políticas de Soljenitsin interferem na qualidade de sua literatura. Apenas que saber delas atiçou minha curiosidade sobre um autor que até então me tinha sido apresentado em tons chapados, e de quem eu achava saber exatamente o que esperar.
O Gulag Tomo I é muito bom. O Agosto 1914 também é. Mais que sua importância como dissidente, ele deve ser lido como um bom escritor que foi. E no mais, se for pra levar essa associação vida pessoal/vida literária a sério, ninguém lerá mais o Günter Grass.
Felizes os que tiveram a fortuna de ler Soljenitsin, Koestler, Pasternark, Orwel e Dijilas. O s escritores citados tiveram a coragem e hombridade de dununciar aberrações praticadas pelo comunismo- notadamente no periodo Stalin- e criticarem a ideologia e teoricos do comunismo. As leituras daqueles autores, agiu como uma vacina para o meu intelecto em formação, quando nas nossas Universidades, a juventude estudantil era mesmerizada, pela pregação academica de professores simpatizantes e militantes dos pcs, e dos seus ideologos teoricos, ministrando textos superados, assimilados de forma facciosa,e provavelmente, entendidos de forma equivocada. Maduro, pude filtrar das leituras de Marx, Lenin, Trotsky, Engels,dentre outros – o que no meu entendimento , era e é aproveitavel
Sérgio, a rigor nenhum livro que se deixe de ler faz falta a alguém, posto que a vida é bem mais que qualquer livro. Mas num certo sentido, qualquer livro que não se lê também faz falta a uma pessoa, posto que livro é, em sentido amplo, civilizatório.
Acho muito temerário dizer que livro x ou livro y não nos faz falta. Periga cair na apologia de uma coisa muito ruim, como volta e meia faz nosso presidente da República, que tece loas pelo ato de não ler e deixa claro que isso não lhe fez falta para alcançar os grandes objetivos de sua vida: riqueza e poder. A Presidência do País foi ( tem sido) o corolário para realizar esses objetivos.
Sérgio, obviamente que você e qualquer um tem o direito de cultivar suas preferências e/ou excludências.. Eu também o faço. Mas sou inteiramente consciente de eu perco algo em cada livro que não li/leio, e sei que o autor não perde nada (ou perde muito menos que eu) pelo fato de eu não lê-lo.
Não é preciso agradecer. O Milton (Ribeiro) é um amigo e leitor apreciável, mas quando sugere a leitura de uma obra menor – isto não sentido qualitativo – tem razão. Vale o mesmo para o livro de contos citado por mim – A Mão Direita – que servirá como ótima introdução, caso venha realmente ler a obra do autor. Porque pode se ter outras prioridades em termos de leitura, e, o leitor tem o direito de passar ao largo de determinados autores. Não é obrigatório – somente me manifestei nesse espaço devido a morte do autor de Pavilhão dos Cancerosos, porque fez parte de minha formação de leitor e considero que há talento literário em suas obras citadas. Uma obra curiosa é O Carvalho e o Bezerro (?) me corrija, MIlton, se eu estiver errado. Uma espécie de diário de criação do autor – repleta das idiossincracias, paradoxos e antíteses de um homem tão perturbado por sua experiência – ser um russo que quer extrair de si uma parte dessa experiência: a da cortina de ferro e os desmandos estalinistas.Débil Mental? Eu não chegaria a tanto, mas cada homem tem direito a ter seus próprios equívocos. Espero que ele não tenha se arrependido deles. Abraço
Cezar, eu não disse nada nem parecido com o que você leu. Escrevi que nunca “senti falta” de ler o sujeito – até este momento – o que é completamente diferente de “ele não me faz falta”. Na boa, me assusta um pouco que uma declaração de humildade que é ao mesmo tempo uma confissão de ignorância possa ser lida como seu contrário. Será que teria sido melhor adotar a tática Bayard?
Quem sou eu pra terdireitos exclusivos sobre opinar, mas o que e q o…tem a ver com as calcas e hoje me peguei pensando no que ele disse nesse texto ai na net, e nem estava pensando nele, to assustada!
No Brasil, temos uma dificuldade imensa de reconhecer opiniões idiossincráticas. Para nós, fulano deve ser A ou B. Alguém aqui já leu Roberto Piva e reparou nas entrevistas desse renomado poeta? Por que um poeta pode estar na moda e um autor contraditório não pode ser visto numa boa? No Brasil temos essa mania de pensar por essências: desdentados/dentados; ricos/pobres; pretos/brancos;socialistas/comunistas; monoteístas/pagãos; heterossexuais/homossexuais…pensamos por essências e achamos que elas realmente existem, queo Universo apresenta essas propriedades e que nós, humanos latino-americanos vamos entender as engrenagens do Cosmo. Morre um grande autor, pronto, todos se dilgadiam para revolver as entranhas ideológicas e políticas, numa luta perene para desqualificar ou encontrar qualificação para sua obra. Foi o mesmo com Pound, Nelson Rodrigues, o mesmo com João Cabral, enfim, cada um terá sua pós-hora de ser julgado pelo tribunal inquisidor ideológico. A poesia do Piva era excelente, mas agora o velho está doente e a doença está levando-o a cometer o mesmo erro: jungir política e poesia. Por isto Estranhos Sinais de Saturno está um lixo. Vem muito a clahar essa discussão, porque, de fato, política e poética são uma fórmula explosiva: não sobra nada de lado nenhum.
Eu não entendo porque a ideologia cega tanto as pessoas a ponto de não perceberem a barbaridade que foi o regime denominado de comunista da antiga RUSSIA. Não importa quem está exercendo o poder seja de direita ou esquerda o que importa para mim é se os direitos Universais estão sendo respeitado, como direito a vida, a livres espressão, o direito de ir e vir , o direito de fazer escolhas etc….O escritor russo Alexander Soljenitsin acho que prestou um grande serviço para humanidade não se intimidando diante do poder e da força da propaganda enganosa.
Alexander Soljenítsin já tinha morrido | Milton Ribeiro
O Soljenitsin, nunca pode ser entendido por vocês liberastas e degenerados “democratas” ocidentais pelo simples fato;vocês não sabem porcaria nenhuma o que é o comunismo e porque o comunismo e forte no seu Ocidente traidor que se aliou com o Carrasco Satlin na Segunda Guerra! Vocês liberastas degenerados ocidentais são falsos moralistas e amigos do comunismo que o sustentam ate hoje, pois como se explica que a sua perversa “democracia” ocidental até hoje não quer julgar num Tribunal Internacional o comunismo?!
Acredito que o escritor russo não seja reacionário. Muito pelo contrário. Acho que ele valorizava a liberdade individual. As críticas a democracia são pertinentes. O fato de criticá-la não quer dizer que o sujeito seja um maluco autoritário. Tocqueville já alertava para os perigos da democracia. Bem como Hayek. A democracia poderia se transformar na ditadura da maioria. E o que a gente deve buscar é proteger a liberdade individual até mesmo da vontade da maioria. Só isso.