Leu-se no jornalão mexicano “El Excelsior” que a morte do comediante Roberto Bolaños deixou multidões de luto “em toda a América Latina, no Brasil e na Espanha”. Foi o adido cultural brasileiro no México, Gustavo Pacheco, quem me chamou a atenção para o detalhe, daquele tipo em que o diabo gosta de morar: pela lógica do jornal, que espelha uma percepção bastante comum, nosso país não está contido no conjunto “América Latina” e precisa ser nomeado à parte.
À parte, pois é. Por acaso não será assim que gostamos de nos ver? Se é evidente que, histórica e politicamente, isso é só um erro de classificação, há vetores culturais poderosos que apoiam tal ideia. Isso ficou muito claro para mim na espetacular Feira do Livro de Guadalajara na última quinta-feira, quando me vi dividindo uma das mesas do programa Latinoamérica Viva com um escritor uruguaio, um argentino, um chileno e uma equatoriana.
A língua é o que primeiro nos separa, claro – e certamente aquilo que mais dificulta a vida de um imprudente como eu, que decidi não levar nenhum texto pronto, ponderado e revisado para ler diante do público, como fizeram o chileno Nicolás Poblete e a equatoriana Maria Fernanda Ampuero. Preferi confiar no improviso e nisso tive a companhia do uruguaio Mario Delgado Aparaín e do argentino Rodrigo Fresán, com a diferença de que minha jam session, numa língua que adoro falar mas que toco de ouvido, equivalia a um triplo mortal carpado sem rede. Não me arrependi. Para tocar no nervo que me interessava tocar, simular uma situação de conforto seria encenar uma mentira.
Comecei contando o pequeno caso ali de cima, o da notícia da morte de Chaves no “El Excelsior”, que expõe algo de periclitante em nossa condição – inegável, mas complicada – de latino-americanos. Acabei falando do episódio em que uma gentil repórter da revista New Yorker, me entrevistando por telefone há alguns anos sobre o fenômeno Paulo Coelho, disse algo que nunca vou esquecer. Eu tinha afirmado que Coelho não pertence à “tradição da literatura brasileira” e ela me perguntou com candura, sem intenção de ofender: “Mas a literatura brasileira tem uma tradição?”. Se estivesse falando com um argentino, um colombiano, um mexicano, um peruano, é claro que não pisaria na bola desse jeito.
O que uma anedota tem a ver com a outra? Acredito que as duas ilustrem o isolamento brasileiro, o misto de autossuficiência (orgulhosa) e solidão (dolorida) deste país gigantesco. Para o olhar estrangeiro isso se traduz de diversas formas: desde uma boa dose de desconhecimento e dificuldade de nos classificar, como no caso dos outros países latino-americanos, até aquela ignorância completa e alvar que a pergunta da jornalista americana, empregada em uma das revistas mais inteligentes do mundo, evidencia. Em termos culturais o Brasil sempre soube se projetar como um personagem vagamente simpático, mas a historinha que conta não costuma levar ninguém além da página cinco.
Não temos um Instituto Machado de Assis. As ações governamentais de inserção internacional são erráticas: basta, por exemplo, que se deixe definhar o programa de bolsas de apoio à tradução da Biblioteca Nacional, um raro golaço nessa área, para que nossa literatura, hoje em fase animada aqui dentro e colhendo promissores sinais de degelo lá fora, volte a ser um segredo restrito aos brasileiros – e nem tantos assim de nós. Infelizmente, o risco de que isso ocorra parece bem concreto.
O veterano Mario, que falou antes de mim, citou Guimarães Rosa entre suas referências na literatura da América Latina. Achei isso comovente, mas não pude deixar de apontar o caráter de exceção de tal escolha numa mesa em que foram citados trocentos autores de língua espanhola. A assimetria da relação que mantemos com nossos vizinhos, observei, é flagrante. Seria difícil encontrar um jovem escritor brasileiro digno desse nome que não tenha lido Jorge Luis Borges ou Juan Rulfo. Tão difícil, talvez, quanto encontrar um jovem escritor hispano-americano que tenha lido Rosa ou Graciliano. (Para sermos justos, registre-se que Clarice Lispector eles conhecem razoavelmente bem.)
Não se trata de homenagear o cronista e compositor Antônio Maria e começar a cantar aqui “Ninguém me ama”. Longe disso. Apenas de reconhecer que, por sobre as inevitáveis diferenças regionais, a literatura hispano-americana forma uma comunidade autêntica em que as informações circulam velozmente e há o reconhecimento de um patrimônio comum. A base dessa comunidade é linguística: como destacou Fresán, existe um “espanhol internacional”, de sabor mexicano mas cosmopolita, que foi criado de forma deliberada no século XX e consolidado em dublagens e traduções literárias de ampla circulação. O autor de “Jardins de Kensington” afirmou escrever em tal registro.
É esse espanhol sem fronteiras – perfeitamente válido também, segundo o escritor argentino, para olhos e ouvidos europeus – que torna natural a participação da pátria-mãe na brincadeira, como centro aglutinador e caixa de ressonância. Metade dos autores de língua espanhola da mesa de quinta (Frésan e Ampuero) vive na Espanha. Também mora lá o tradutor de “O drible”, Juan Pablo Villalobos, escritor mexicano responsável pela qualidade excepcional da edição da Anagrama, editora barcelonesa, que com o nome de El regate tem livre trânsito na América Latina e me levou a Guadalajara. Neste ponto a assimetria que mencionei ali em cima atinge níveis mais dolorosos: Portugal vive hoje um momento de especial indiferença à literatura escrita no país que concentra a imensa maioria dos humanos lusoparlantes.
E apesar dos obstáculos, da distância e da eterna necessidade de tradução, com todas as inevitáveis traições e mal-entendidos que isso envolve, ter sido acolhido no México com tanto carinho, interesse e profissionalismo para falar de um livro profundamente brasileiro como “O drible” me faz voltar da viagem (o verbo está no presente porque escrevo no avião) envolto numa nuvem de calor e otimismo parecida com a que proporcionam duas ou três doses de mezcal.
Nos lançamentos de meu livro na Cidade do México e em Guadalajara, nas palestras sempre lotadas para estudantes de literatura e estudantes secundaristas, na mesa igualmente concorrida que dividi na Feira do Livro com os colegas brasileiros Ana Paula Maia, Luiz Bras e Paloma Vidal, o clima de boas-vindas ao visitante era tão caloroso que à primeira vista parece difícil entender por que Juan Villoro, um dos maiores nomes das letras mexicanas neste século e meu generoso anfitrião na noite de autógrafos no Distrito Federal, afirmou em entrevista dada esta semana que seu país está “em decomposição”.
Ocorre que o México que encontrei conserva a beleza, a alegria e o espírito festeiro do país que conheci em 1986, quando lá estive para cobrir a Copa do Mundo, mas está gravemente ferido. Mais ferido do que, naquela época, havia ficado com o terremoto do ano anterior. A dor agora é mais funda porque é espiritual. O assassinato monstruoso dos 43 estudantes normalistas de Iguala por policiais-narcotraficantes, a mando de políticos-narcotraficantes, expôs com nitidez quase insuportável o grau de corrupção a que pode chegar um Estado criminoso. Na mesa de quinta, um homem da plateia, de cerca de setenta anos, nos perguntou com lágrimas nos olhos se alguém enxergava saída para seu país, porque ele já não via nenhuma.
Não duvido que tal solução – que eu, claro, enxergo ainda menos que aquele homem – esteja num futuro em que não ocorrerá a ninguém dizer que o Brasil é uma coisa e a América Latina, outra. Mesmo porque, se nesse futuro não nos irmanarmos na solução, certamente nos igualaremos na tragédia das sociedades fundadas numa desigualdade de pesadelo – e habituadas a administrá-la com violência de pesadelo.
13 Comentários
Bah, Serjão, você sempre matando a pau! É incrível mesmo como são dois mundos paralelos o Brasil e a América Hispânica. Sem querer ser otimista demais, parece que o velho e bom Ángel Rama continua tendo razão: a América Latina (incluindo o Brasil), continua a ser um projeto vanguardista que aguarda sua realização no futuro. Grande abraço, e mucha suerte com a edição em espanhol do teu belo livro.
Obrigado, xará! Grande abraço.
Obrigada por esse relato tão informativo e tão provocador de reflexões. Em tempo: dizer que Paulo Coelho “não pertence à tradição da literatura brasileira” é um encantador eufemismo.
Sérgio, não há boa literatura subvencionada por governo. Um livro publicado por governo não vale a pena ser publicado. Admira-me que uma pessoa inteligente não perceba a contradição e a estupidez dessa idéia. É mais ou menos o que disse George Orwell sobre o jornalismo: “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade.”
Que diabos você está falando, Ricardo? Nunca defendi que o governo publique livros. Bolsas de INCENTIVO À TRADUÇÃO são um mecanismo indispensável a países culturalmente periféricos que gostariam de ter alguma voz no concerto das nações. Não é o governo que escolhe quem vai ou não vai ser traduzido, mas a editora estrangeira que manifesta interesse por esse ou aquele livro já lançado por uma editora comercial brasileira, levando em conta sua recepção crítica, vendas etc. Trata-se de um instrumento avançado de política externa que, aliás, adotamos com bastante atraso. Chega a ser assustadora a incompreensão que cerca uma ideia tão boa.
Caramba, que texto soberbo!
Belíssimo texto, Sérgio! Nos faz refletir e sentir.
sergio, foi muito bacana estar com voce, paloma e luis na mesa destinacao brasil. parabens pelo lancamento do livro. fui na ecos. eh realmente muito impressionante. quando puder, envie a mim o link do parabens mexicano. bj. ana. 🙂
Também adorei, Ana Paula. Estou te enviando agora. Bjs
Não, Sérgio, não é uma boa idéia, além de ser inútil. E por uma razão muito simples: Literatura relevante se impõe. Simples assim. Recorrer-se ao governo, isto é, ao bolso do contribuinte, não é senão o próprio atestado da irrelevância da literatura que se patrocina. O pobre contribuinte brasileiro, já tão espoliado, também terá agora de bancar traduções das obras-primas dos Chicos Buarques para as línguas do mundo…
Governo metido nestas coisas só resulta em aberrações como as que ocorrem no MEC, em que escritores que ninguém lê nem conhece (poucos e seletos amigos do rei) vendem rios de livros: para o próprio governo e para os pais que anualmente se vêem obrigados a comprá-los, porque constam das listas escolares. Que uma editora estrangeira se interesse por um autor nacional e queira publicá-lo, está tudo bem, aliás, é o processo natural, desde que não se coloque o brasileiro para bancar a jogada.
Qual a relevância de uma bolsa de tradução (na verdade, qualquer patrocínio do governo em geral) quando se considera a história da grande literatura e seus grandes autores? É evidente que só ocupa um papel irrelevante, quando não inexistente ou mesmo atrapalha.
Contudo, será que falamos de uma mesma literatura? De qualquer maneira, se aqui se fala de uma literatura meramente passatempo, a idéia de recorrer ao bolso do brasileiro é ainda mais inadmissível, uma vez que para esse tipo de literatura já está quase a totalidade do mercado editorial.
Fique bem.
Vamos lá, Ricardo: você, provavelmente por desconhecimento do programa em questão, se equivoca. Pensamentos simplistas como o seu ajudam a explicar o atraso com que o Brasil larga nessa área. Entre o dirigismo estatal que você condena (eu também) e o laissez-faire mercadológico que defende num mundo de línguas, culturas e economias tão desiguais (eu não), há um campo vasto à disposição da inteligência e da estratégia. Felizmente já começamos a recuperar o tempo perdido. Existe gente à beça no governo contra o programa por mal disfarçado filistinismo, como se fazer política cultural fosse jogar dinheiro fora, mas se tudo der certo a Biblioteca Nacional continuará tendo seus parcos caraminguás para dar continuidade a tal política. Um país com o tamanho e as pretensões internacionais do Brasil não poderia continuar a se abster desse trabalho – que além de baratinho é feito pelas principais nações concorrentes – sem passar atestado de burrice. Um abraço.
A ideia de que a qualidade literária garante por si só que uma literatura “se imponha” é no mínimo ingênua, e demonstra um desconhecimento profundo do funcionamento do mercado editorial e dos fatores técnicos e políticos envolvidos no processo de internacionalização. O mercado editorial está sujeito a falhas de mercado, como qualquer mercado, e os programas de apoio à tradução são uma das principais ferramentas para corrigir ou minorar o impacto dessas falhas. O português, mesmo falado por centenas de milhões de pessoas, é uma língua minoritária, e essa é uma limitação central. Qualquer autor que escreva em inglês, ou até mesmo em francês ou espanhol, desfruta de uma vantagem que o autor brasileiro não possui. Com exceção dos países que falam inglês – idioma dominante no mercado editorial e fora dele – todos os países que levam a diplomacia cultural minimamente a sério mantêm, há muito tempo, alguma espécie de programa de apoio à tradução, incluindo França, Alemanha, Espanha, Holanda, Portugal, Itália, Polônia, Japão, Coreia, Argentina, México etc. Os programas de apoio à tradução não são uma invenção brasileira, muito menos uma invenção deste governo. Versões anteriores do atual programa de apoio à tradução já existiam em menor escala há décadas, e sem eles a literatura brasileira seria ainda menos conhecida do que é.
Latinoamericano, em espanhol, escreve-se sem hífen: http://lema.rae.es/drae/?val=latinoamericano
É claro. Mas se você se refere ao título do meu artigo, este está em portunhol selvagem mesmo.
Eu não sou latino americana! Sou brasileira! Não suporto espanhol desde pequena, apesar de compreender muito bem eu descaradamente finjo que não. E confesso que não tenho muito interesse por autores latinos. Alguns que li, foi por moda e pronto! Não há como negar que temos um modo de ser e estar diferentes dos hermanos, e temos de valorizar essas diferenças. Odiei desde sempre o mercosul: trocas comerciais sim, já culturalmente… cuidado que o santo é de barro! A questão é que de fato precisamos fazer maior propaganda de nossa literatura, e nossa língua e de nossas manifestações culturais – múltiplas e riquíssimas – e há espaço para iniciativas privadas e estatais para isso. Você diz que o Paulo Coelho não é parte da tradição literária brasileira… ora, você lembra de autores de massa que produziram entre os anos 30 e 50? O nome do meu tio vem de um desses livrinhos que minha avó adorava. Hoje estão esquecidos. Acho que o Paulo Coelho é dessa classe de autores: popular, e que deu a sorte de viver num tempo com menos fronteiras, de mercado voraz e de ter bons agentes. Hoje temos autores de nicho brasileiros que tem ido bem de vendas, cruzado fronteiras e isso é ótimo! Literatura é uma coisa interessante… arte e também entretenimento! Eu odeio os livros do Paulo Coelho, mas sei de pessoas que amam. Leio Machado e detesto Guimarães Rosa. E daí? O nosso momento é de sair de academicismo e aceitar a exuberância e diversidade da massa, e a partir daí ir para o mundo. Ah, e precisamos de bons tradutores também, que a coisa tá complicada…
Blog inevitável.
Parabéns.
Um abraço