Não gosto muito de ler teatro. Acho que pouca gente gosta – aquilo é feito para ser encenado, não é? Foi apenas no interesse da pesquisa que fazia para meu novo livro, de tema correlato, que há seis meses mandei a Amazon entregar aqui em casa um exemplar de The Coast of Utopia, a premiada trilogia de Tom Stoppard sobre a geração de intelectuais russos de meados do século 19 em cujas cabeças germinou com força a idéia de uma revolução feita pelas massas. Algum tempo depois, ainda estava lendo o livro quando soube que o dramaturgo inglês de origem tcheca viria à Flip. Meu primeiro pensamento foi: “Que coincidência”. E o segundo: “Que maluquice”.
Stoppard é uma presença inusitada por algumas razões. Seu único livro em catálogo por aqui, lançado pela Rocco, é o roteiro do filme-pipoca “Shakespeare apaixonado”, do qual é co-autor – um projeto definitivamente menor, ainda que competente e divertido. Suas peças não são encenadas em nossos teatros, o que talvez faça sentido: jogos intelectualizados e referenciais, tapeçarias em que se juntam fatos históricos, debates filosóficos, personagens reais, as peças de Stoppard são dramas de idéias. Não têm nada de chatas ou cinzentas – seu senso de humor é aguçado demais para isso – mas com certeza podem ser encaixadas na categoria de “difíceis”. Como disse a crítica Barbara Heliodora sobre seu primeiro sucesso, dos anos 60, Rosencrantz and Guildenstern are dead, Stoppard tem esse probleminha de “viajar mal”.
Apesar de tudo isso, o dramaturgo de 70 anos é sem favor algum o nome de maior peso da Flip 2008, cujo elenco é consistente e coeso, mas desprovido daqueles nomões que dispensam legenda, âncoras midiáticas das edições anteriores. O que pode até ser bom. Se a ausência da turma arrasa-quarteirão contribuir para que as ruas de Parati fiquem um pouco mais transitáveis, especialmente no sábado à noite, a edição deste ano terá cumprido um papel fundamental na história de uma festa que, devido às suas características peculiares, sempre correu um risco evidente – morrer por excesso de êxito.
O horário nobre da mesa de Stoppard, a última de sábado, reflete sua condição de protagonista. Se ela vai funcionar como espetáculo é algo que, nesse tipo de evento, só se sabe na hora. Stoppard é tímido, mastiga um pouco as palavras, mas tem algo a seu favor: nunca se deve subestimar quem é, pelo menos por escrito, um dos mais brilhantes frasistas vivos, de um humor anárquico puxado no nonsense: “Se Beethoven tivesse morrido num desastre de avião aos 22 anos, isso teria mudado a história da música… e da aviação”. Mais um exemplo, este sujeito a confirmação: quando se comentava que Harold Pinter, o outro grande dramaturgo inglês vivo, estava em campanha para que o Comedy Theatre de Londres fosse renomeado Pinter Theatre, dizem que Stoppard lhe escreveu: “Em vez disso, já pensou em mudar seu nome para Harold Comedy?”.
Não duvido que seja o humor a solução do problema, como sempre, encurtando a distância entre o público de Parati e a obra de Tom Stoppard. A escolha de seu entrevistador foi um grande acerto da organização: Luis Fernando Verissimo também é, a seu modo, um humorista-pensador, com a vantagem extra de ser uma estrela de brilho próprio aos olhos da platéia. Até uma provável tensão política entre os dois – Verissimo resolutamente à esquerda, Stoppard numa espécie de centro-direita com ênfase na liberdade individual – pode dar bom teatro.
39 Comentários
Sérgio, ao contrário de você, prefiro ler teatro a ver encenado – embora eu até vá com regularidade ao teatro. É uma forma meio besta de socialização.
Eu tenho vontade de ler a adaptação que o Stoppard fez de “The Real Thing”, um dos melhores contos do Henry James.
Eu leio Shakespeare, só. Nem Nelson consegui. Putz… 🙂
Num raro trecho interessante de “The sea, the sea”, que andei lendo por esses dias, o alter ego da Mrs. Murdoch argumenta que sendo o teatro a menos literária das formas de literatura, é um paradoxo que o maior de todos tenha sido um dramaturgo. Meio que concordei.
Sérgio, é meio torto ler teatro, mas, como afirmou Felipe, Shakespeare é permitido. Sim, Chico, Paulo Pontes e Ruy Guerra também. Outra, a crítica teatral é boa de ler, gosto.
Claudia, Shakespeare é mais que permitido, é obrigatório. Até porque, se formos depender do teatro brasileiro, nunca saberemos por que ele é quem é. Li também todo o Nelson, que é talvez o mais legível dos dramaturgos. Mas ao contrário do Jonas nunca consigo afastar a sensação de que ler peças fica mais perto do estudo que da fruição, um pouco como ler a receita de um belo prato: comê-lo é melhor.
O Tom Stoppard fala igual o Arthur Virgílio do PSDB, parece que tem sempre uma daquelas balas bem grandes de canela na boca.
Mas, hm. Isso não vem ao caso. Se eu fosse lá perguntaria sobre os trabalhos dele com o Mike Nichols. “The Real Thing”, por exemplo, como Jonas mencionou.
Sérgio, desculpe-me a sinceridade, mas a questão de ler teatro ou não é simples questão de hábito. Não o cultivamos aqui, simplesmente. E não concordo que seja chato, pelo contrário, trata-se de uma leitura ágil, toda interpolada por diálogos. Quer melhor que isso? Infelizmente o gosto pelo teatro entre nós inclina-se para a bufonaria, quando não o velho e bom pastelão. Digo bom porque não tenho nada contra, mas acho que deveríamos fazer um pouco mais de esforço intelectual, ao menos de vez em quando. E não estou mentindo: uma peça de Shakespeare fica pouco tempo em cartaz aqui. Ao contrário, algumas comédias ficam até anos a fio. E muitas vezes voltam. Talvez isso esteja relacionado com aquela falta de hábito em ler peças. Ora, se não as lemos, como vamos apreciá-las? Como vamos esperar que sejam encenadas?
E tem mais. Quem leu MacBeth ou Hamlet, por exemplo, fica decepcionado depois com encenações ou filmes…
Euclides, também peço desculpas pela sinceridade, mas me parece que uma coisa (se não lemos peças, como esperar que sejam encenadas) não tem nada a ver com a outra.
E o velho e bom Anton Tchecov?
Em parte, penso como o Euclides. Um texto teatral pode ser digno de leitura, quando for bem escrito. Shakespeare é o supremo mestre da língua inglesa e é uma delícia lê-lo com os olhos (desde que seja no original, porque as traduções são muito empobrecedoras). Há outros autores de teatro que são maravilhosos para ler: penso, por exemplo, em Calderon de La Barca, em Ibsen, em Tcheckov. Nesses autores, o texto é bem feito, tem ritmo próprio, provoca o prazer estético. Gil Vicente é divertidíssimo e, confesso, parte do prazer que ele provoca em mim deve-se ao irresistível efeito da linguagem arcaica.
Nesses exemplos todos, volto a dizer, os autores são cuidados com o texto.
Por causa dessa inclinação à bufonaria e ao pastelão, nossos teatrólogos pouca ou nenhuma atenção dedicam ao texto; o importante são os efeitos cômicos que os autores, sob uma competente direção, extrairão por meio de recursos que se situam fora do texto: o gesto, a entonação, o maneirismo da atuação.
Sérgio Karam: este tem a vantagem de nunca ter sido abandonado por nossos diretores. Mas ler os contos do homem é muito, muito melhor.
E (ainda) Euclides: atribuir essa preferência a algum tipo de “preguiça intelectual”, como você faz, me parece, além de ofensivo, estapafúrdio. Seria como eu dizer aqui que só gosta de ler teatro – um gosto que respeito – quem tem ouvido de lata para suportar aquelas marcações.
Stoppard diz coisa parecida numa das entrevistas que pesquei no YouTube: “Quem quiser comprar o livro, compre, mas o importante é ir ao teatro”. Mais ou menos isso. Natural. Se a prioridade dele fosse ser lido, escreveria um romance e não uma peça.
Isso mesmo, Sérgio, você fez a imagem perfeita para leitura x espetáculo teatral: ler peças … é um pouco como ler a receita de um belo prato: comê-lo é melhor.
Olá Sérgio.
Dizer se um texto de teatro é ou não é literatura sempre dá coceira, afinal, no conceito geral, não é um objeto em si, mas um meio para o objeto.
Sei não, acho que alguns textos podem muito bem ser lidos como boa literatura. Tá aí os trágicos gregos, Moliere, Arthur Miller e Tchevov e vá lá, Beckett( que era tão bom dramaturgo quanto contista, afinal o Jardim das Cerejeiras não é pra qualquer um)
O grande problema de depender apenas da encenação é , belo dia, assistir a todo o texto ser destruído por interpretações grosseiras. Riscos.Riscos. Que diga o Tchevov.
Agora, uma pergunta que sempre me faço, é saber como um gênero que sempre teve o mesmo valor literário da lírica, da prosa e da épica, se transformou ,durante século XX, em apenas um apêndice funcional, como um receita de comida. Coisa que não é.
Vale lembrar que, bons romancistas e poetas apanharam e fracassaram, tentando produzir textos dramáticos. Machado é um bom exemplo.
abs
PS: eu espero em nenhum momento ter sido rude me defender o meu bairrismo ;)!
Antes que alguém me pergunte, não foi Beckett que escreveu o Jardim das cerejeiras. quem escreveu o Jardim foi Tchevov, Beckett escreveu Esperando Godot, e Fim de Jogo.
Você achou meu tênis, Sérgio?
Léo, alguns esclarecimentos antes de (espero) dar esse assunto por encerrado:
Eu nunca disse e acho que jamais diria uma estupidez desse tamanho, que dramaturgia “não é literatura”. Disse apenas que não gosto muito de lê-la. Também não gosto de ler as partituras de Bach, mas não me passaria pela cabeça declarar que não são música.
Sem querer ofender o bairro de ninguém, continuo achando que peças se destinam prioritariamente a serem vistas no palco, não lidas. É curioso que uma tautologia desse tamanho possa ser tão polêmica.
Também NÃO disse que Tchekov é melhor contista que dramaturgo. Disse que prefiro ler seus contos. O que equivale a dizer: ver suas peças.
De resto, se eu pudesse cancelaria a primeira frase deste post. Não por expressar um juízo falso: eu penso realmente assim (mesmo tendo lido Shakespeare e o diabo a quatro, é bom deixar claro) e acredito que a maioria dos leitores também. Mas porque ela parece ter impedido todo mundo de ler os restantes 99% do texto.
E por acaso é nesses 99% que está o espírito da coisa, algumas idéias sobre um sujeito interessante que vai estar numa festa literária importante que começa amanhã e tal…
Enfim, um erro técnico: a culpa é toda minha.
Abraços.
Não, Tibor. Algum dos 16 mil leitores que passaram por aqui aquela noite deve ter levado. Procure um perneta que calce seu número e achará o safado.
oi Sérgio.
em nenhum momento eu quis contra argumentar o seu texto. li o seu respeito e sua atitude de declaração sobre de ser um gosto seu.
sobre a questão de você dizer que o teatro não é literatura, eu sei que você não disse. a questão não é com o seu texto mas sim comum “trato gera” que a tempos eu fico cabrunhando.
Mas como escrevei às vezes eu parece rude com as palavras. Eu nenhum momento eu quis aparecer um desses famosos comentaristas”dedos em riste”. Seria mais uma digressão tentando continuar o assunto, igual a uma mesa de conversa.
Poxa, eu só posso dizer foi mal e até
Ah, sim , eu li o resto do post e até sei que ele e´considerado a mior figura na FLip!
abs
Ah, sim
Caraca! Você leu tudo aquilo mesmo??
Considero um erro imperdoável a organização da FLIP marca r a estréia da festa justamente para o dia em que o Fluminense disputará da final da Libertadores 🙂 Por isso (como expiação mesmo) proponho que a partir de quinta a FLIP (como o “fup” no Orkut) passe a se assinar FLUP. Saudações tricolores!
fup=up
Citando a própria Bárbara Heliodora, existe uma tendência no teatro brasileiro atual, que pra falar a verdade, freqüento pouco: encenar textos de literatura, quer dizer, não escritos e (mal) adaptados para teatro. Quem sabe a presença de Stoppard na Flip é resultado disso? Ou uma tentativa inconsciente de reverter isso? Ops. Alhos por bagulhos. Brincadeirinha. Tomara que Stoppard, como Coetzee na Flip passada, opte por simplesmente ler sua obra no palco: uma leitura encenada, quem sabe. Aí sim. Veríssimo? E ele fala?
Essa discussão de teatro ser literatura… No Rascunho de abril, por exemplo, Luiz Horácio (RJ) escreveu sobre a edição dos Arquivinhos de Nelson Rodrigues (Bem-te-vi) e cometeu o seguinte: comparou as frases de efeito ditas por NR em depoimento ao MIS (“um mau gosto a toda prova”) à finesse do texto de Shakespeare e sugeriu que NR não deu “grande contribuição à literatura brasileira” e que ele é “superestimado”! Morri de rir. Mas reconheço que passei a compreender melhor o texto quando ele confessou: “concordo que Nelson seja mal avaliado”. Pelo menos isso.
Leo, seu comentário não teve nada de rude. O tom enfático da minha resposta foi só uma tentativa de acabar com qualquer mal-entendido.
Felipe, não li esse texto, mas também acho engraçada essa campanha para retratar Nelson Rodrigues como um escritor medíocre. Fico pensando se quem diz isso leu (opa!) “Vestido de Noiva”.
Situação curiosa, não?
Abs,
Marcelo
Um inglês e um brasileiro viajavam apertados na casse economica da British. O brasileiro tomou um grau e dormiu, babando no ombro do gringo. Acordando-o com um tom repulsivo, este disse àquele: “Sleep is the anticipation of death”, Shakespeare. Ao que o brasileiro retrucou: “Foda-se”, Nelson Rodrigues
Ta, le teatro eh dificil mas, nao precisa todo mundo ficar pedindo desculpas o tempo todo. Shakespeare eh tudo e Nelson ( do teatro ) eh uma invencao da turma sem cerebro da Rede Bobo ( hic Globo ).
reinaldo, em toda a obra do nelson não existe um palavrão sequer!
Ainda menino (uns 8 ou 9 anos), agarrei um livro que apareceu em casa e li, deliciado. Histórias marcantes, com personagens inesquecíveis.
Era uma coletânea de peças da Maria Clara Machado. O curioso é que me pareceu ser uma forma diferente de contar uma história, não “teatro”. Na minha cabeça, aquilo era literatura…
Uma piada é só uma piada, ó púdica Barbara.
Shakespeare, que eu saiba, também nunca disse que o sono era o prenúncio à morte.
Que barbaridade…
Próximo post, Sérgio! 🙂
STOPP
ARD
MUITO!
Essa impressão de que há palavrões na obra do Nelson Rodrigues é um sintoma de que aparentemente, como comentou-se por aqui, as encenações brasileiras não primam pela qualidade (ou pelo menos pela fidelidade). Mas mesmo neste ponto acho difícil condenar o teatro. Lembremos que Nelson Rodrigues foi para a tevê e para o cinema, e lembremos a forma como (e as épocas em que) isso aconteceu.
Ir ao teatro sempre será uma experiência única e diferente da apreciação de qualquer outra arte, mas ler os textos não me incomoda. Cada forma tem seu benefício. O de assistir ao espetáculo é evidente, e, para mim, o de ler o texto, é ficar longe da platéia, que (percebam) confunde diversão com risada e consegue gargalhar mesmo nas peças mais pesadas de Ibsen. Fico incomodado.
O cinema fez muito mal à dramaturgia de NR, em geral reduzindo suas peças a obscenidade – apesar do sucesso de público que algumas adaptações conquistaram – e esvaziando-as de sua tensão dramática. Bom, pelo menos esse é mais um motivo para lê-las com atenção. 🙂
Nunca li a Stoppard. E pelo pouco dos comentarios nem lerei. O que eh flip mesmo?
Espero que alguma editora nacional decida editar Stoppard depois deste convite. Estou ansiosa para ler.
Li os comentários e acho que gosto não se discute, lógico. Mas boa parte da aversão por Nelson Rodrigues vem das péssimas e medíocres adaptações para a televisão e o cinema, quase que totalmente das tragédias cariocas. Nas peças míticas seu teatro mostra-se como tal: puro teatro, teatro até a espinha, totalmente, com uma força magnífica.
Sobre ler ou ver teatro, por incrível que possa parecer, são coisas distintas e não excludentes. Ler um grande texto, poder voltar e reler uma frase, refletir sobre ela, é ter oportunidades que ver a ensenação não nos dá. Ver o texto ensenado (bem trabalhado, lógico) é ter sensações que a leitura não nos proporciona. Exemplo: o monólogo “ser ou não ser” (só para pegar pesado), pode nos dar horas de reflexão, ao tempo em que vê-lo ensenado, por um grande ator, nos daria a oportunidade de participarmos dos conflitos do personagem. ambas as coisas, ler e ver, são complementares e um grande prazer.
Desculpe o escorregão em ecenação.