Se tivermos sorte, e bota sorte nisso, o livro “Como funciona a ficção” (Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann, 232 páginas, R$ 49,00), lançado em 2008 pelo crítico inglês James Wood, cairá entre nós como uma bomba de efeito moral. Claro que esta é só uma frase de efeito (moral?) e que um simples volume de crítica literária dificilmente provocará tal estrago. Isso não altera o fato de que, num mundo ideal, seria de esperar que depois dele uma série de personagens que atravancam nossa vida literária saíssem correndo em busca de abrigo, do pequeno resenhista movido por cordialidades buarquianas ao crítico acadêmico adestrado por décadas de teoria e estudos culturais para odiar tudo o que cheire a literatura. Simpatizemos ou não com suas idiossincrasias (eu simpatizo com algumas delas), Wood é tão apaixonado pela coisa que não se furta a cair no pasmo boquiaberto diante de certa tirada poética de Virginia Woolf no romance “As ondas”: “Sinto-me mortificado com essa frase; um pouco porque não consigo explicar de jeito nenhum por que ela me comove tanto”. Nessa cândida confissão de impotência reside, paradoxalmente, o maior poder de “Como funciona a ficção”. Egresso da crítica literária jornalística, que exerceu por…
Os 150 anos do nascimento do escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), considerado o pai do conto moderno, motivaram uma bela edição do Babelia, suplemento literário do jornal espanhol “El País”. Um dos destaques é o artigo de abertura, “Pistolas e mares”, em que Luis Magrinyà reflete sobre o paradoxo que envolve aquela famosa tirada do autor – em referência ao teatro – sobre a pistola que se mostra no início da trama ter que ser disparada antes de cair o pano. Esse argumento poderoso contra a gratuidade, o mero adorno, foi em geral acatado como lei pela arte narrativa do século 20. O problema é que a frase da pistola, observa Magrinyà, acabou por obscurecer o fato de que os contos tchekhovianos tiram sua maior força de elementos aparentemente desamarrados, sugestões inconclusivas que produzem um efeito duradouro na cabeça do leitor. A pistola não dispara, mas escapa de ser gratuita porque, calada, ressoa ainda mais. A conclusão do autor do artigo é, numa paráfrase livre, a de que Tchekhov inventava assim o realismo que sucederia a onisciência do século 19, um espelho lacunar do que a vida tem de essencialmente amorfo e indomável, “como o mar”. Outro atrativo da edição,…