Aproveito o centenário de Nelson Rodrigues, que se comemora amanhã, para reconhecer publicamente uma dívida pessoal e dar uma dica: talvez não haja lição mais importante que os escritores brasileiros do século 21 possam tirar da obra de um dos maiores escritores brasileiros do século 20 do que o difícil aprendizado do diálogo. Falo de uma questão de forma. Isso não significa minimizar o famoso conteúdo rodriguiano, esse impressionante universo de tipos caricaturais da baixa classe média carioca às voltas com tramas folhetinescas de amor e morte, infidelidade e incesto, numa atmosfera farsesca em que pulsões primitivas estão sempre prontas a furar o verniz da civilização e vir à tona com uma ferocidade equilibrada entre o trágico e o cômico. Evidentemente, é o alcance cultural desse universo que torna Nelson um monstro, um daqueles raros autores sem os quais o país não seria o que é. Mas disso não falta quem esteja falando. Quando me refiro ao diálogo, falo de uma técnica que permite a dois ou mais personagens trocarem blocos de discurso direto no meio de uma narrativa sem que soem como bonecos de ventríloquo do autor ou como oradores na tribuna da Câmara dos Deputados. Alguns escritores se…
No centenário de Jorge Amado, comemorado hoje, a digestão do legado do escritor baiano ainda está longe de se completar. De um lado, sua obra de inédita popularidade sofreu uma espécie de canonização, com muito de kitsch como qualquer canonização. Basta ver o Bataclan ridiculamente luxuoso da nova adaptação de “Gabriela” na TV Globo: faz o Moulin Rouge parecer um bordel de província, como se as prostitutas de Ilhéus na época de ouro do cacau não fossem desdentadas, não tivessem pés cascudos, filhas destituídas da Idade Média brasileira que eram, e sim top models fazendo um bico para descolar uns trocados a mais. O outro lado da moeda é o da negação pura de Jorge Amado, que ainda é a postura dominante nos círculos literários – e não apenas acadêmicos, embora estes tenham exercido forte influência nesse sentido. Atropelado pela novidade dos estudos culturais em que desembocou o pensamento de esquerda no último quarto do século 20, Amado – que na primeira metade de sua carreira foi nosso escritor mais assumidamente político, “se não bispo ao menos monsenhor” do stalinismo, em suas próprias palavras – viu-se escalado no papel de porta-voz do patriarcalismo e do sexismo, como se fosse uma…