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‘Outras cores’, de Pamuk: literatura é remédio
Resenha / 05/11/2010

Atrás da beleza dos livros de Nabokov há sempre algo de sinistro (ele usou essa palavra num dos seus títulos), um cheiro de tirania. Se a atemporalidade da beleza é uma ilusão, isto é em si um reflexo da vida e da época de Nabokov. Sendo assim, por que fui afetado por essa beleza, escrita, como é, nos termos de um pacto faustiano com a crueldade e o mal? (…) Para compreender melhor o que chamo de crueldade de Nabokov, examinemos o trecho [de “Lolita”] no qual Humbert visita o barbeiro na cidade de Kasbeam – só para passar o tempo, pouco antes de Lolita o deixar (de modo tão cruel, mas com toda a razão). Trata-se de um velho barbeiro de província, com o dom da tagarelice, e enquanto faz a barba de Humbert fala com volubilidade sobre o filho jogador de beisebol. Limpa os óculos no avental por cima de Humbert e deixa a tesoura de lado para ler recortes de jornal sobre o filho. Nabokov dá vida ao barbeiro em poucas frases miraculosas. (…) Mas no fim Nabokov joga sua última e mais chocante cartada. Humbert presta tão pouca atenção ao barbeiro que só no último instante…

A vida íntima dos Tolstoi foi escrita por Dostoievski
Pelo mundo / 08/10/2010

Achei surpreendentemente fascinante este ensaio da revista “Boston Review” (em inglês, acesso gratuito), em que Vivian Gornick, a partir dos diários deixados por Sofia Tolstoi (que acabam de ganhar nova edição em inglês) e por seu marido Leon (cuja morte completa cem anos mês que vem), imagina-os como personagens de Dostoievski. A surpresa vem do fato de minha reação habitual ser de desinteresse – ou de interesse moderado, o que dá no mesmo – diante de informações biográficas de escritores e artistas em geral. Só a obra importa, certo? Por que, então, fui sentir tal encanto horrorizado diante da história de um casal inseparável até a morte numa rotina pontuada por ímpetos de assassinato e suicídio, atolado na infelicidade e na humilhação que provocava em ambos, nas palavras de Gornick, “a discrepância entre o que se esperava do amor conjugal e o que ele de fato mostrara ser”? Talvez o trunfo da ensaísta seja a sacada que entrego já no título deste post, e que nega ou pelo menos complica todos os modelos certinhos demais de arte e vida que tantos autores e leitores de biografias cultivam: se Dostoievski escrevia a vida conjugal de Tolstoi, a vida de quem Tolstoi…

Os melhores começos inesquecíveis (V)

O começo in medias res – expressão cunhada pelo poeta latino Horácio e que significa “no meio das coisas, dos fatos” – é aquele em que a narrativa já se inicia com o bonde andando, no meio ou perto do fim da história, e aos poucos vai dando ao leitor as necessárias informações sobre o passado. In medias res se opõe a ab ovo (do princípio), outro termo horaciano, e é típico da grande – e há muito extinta – poesia épica. Tão antigo quanto a própria literatura, portanto. O que não o torna menos eficaz nas narrativas modernas. A “Ilíada” de Homero começa com a Guerra de Troia perto do fim e com o herói amuado em sua tenda, recusando-se a participar do cerco dos gregos aos troianos. Aquiles, sabemos depois, brigou com o rei Agamenon quando este lhe confiscou uma cativa por quem nutria especial afeição. De tão humilhado, quer que os gregos se explodam. Isso lá é jeito de começar? Claro que é. Num bom início in medias res, a própria confusão momentânea experimentada pelo leitor, para quem o quadro geral vai se desembaçando aos poucos, contribui para sustentar sua curiosidade. Note-se que na técnica clássica do…