A literatura é hoje um campo que se questiona de modo histérico, com resultados entre o suicida e o narcísico. O discurso literário parece sentir, de alguma forma, que perdeu o direito à existência. O que quer que o justificasse perante si mesmo não o justifica mais. Entre as atitudes que o discurso literário toma diante disso, destaco duas que me parecem especialmente significativas: deitar no caixão e declarar-se morto, como um personagem de Nelson Rodrigues, procedendo então à auto-autópsia; ou, feito uma drag queen de quermesse, se montar inteiro com maquiagem, bijuterias, próteses, piscando muito para o espelho e dizendo: “Eu existo, ói eu ali”. (Seria interessante – mas foge aos propósitos deste artigo, para não falar da minha competência – investigar o que haverá de analogia estrutural e especularidade simbólica entre duas crises culturais contemporâneas, a “do macho” e a da literatura de ficção.) A verdade é que, além daqueles que a fazem e da pequena seita que a consome sistematicamente, ninguém no mundo de 2012 está prestando lá uma terrível atenção à ficcão literária, como diriam em inglês – literatura artisticamente ambiciosa, digo eu. A ficção comercial vai bem, mas o público da ficção dita séria míngua…
“‘Isto é de tal período e só dele’, dizemo-nos ao ler [certas obras] fora de sua época, e, com a inapelável e sempre crescente aceleração do mundo, ‘fora de sua época’ significa às vezes, hoje em dia, apenas uma década depois de sua vinda à luz. Algo desse tipo sentimos até com as narrativas dos maiores autores contemporâneos: com Kafka, com Faulkner, às vezes com Borges, com Joyce quase sempre. De tão inovadores, de tão arriscados, de tão voluntaristas, de tão diferentes ou de tão ambiciosos, podem resultar, vez por outra, levemente antiquados, ou, se se prefere, simplesmente ‘datados’.” Javier Marías fazendo o elogio do não-datado “O Leopardo”, de Lampedusa, no Babelia. * “Creio que a literatura argentina é a mais forte do continente.” Milton Hatoum em entrevista à revista do jornal (argentino) “Clarín”. Será que tem alguém aí disposto a discordar? (Ah, mas que Pelé foi maior que Maradona, foi!) * “Toda pessoa sadia tem ambições, objetivos, iniciativas, metas. A meta desse garoto em particular era ser capaz de pressionar seus lábios sobre cada polegada quadrada de seu próprio corpo.” Começo (inesquecível?) do conto Backbone (Espinha dorsal), de David Foster Wallace, publicado na “New Yorker”.
Dica preciosa do blog Dicta&Contradicta: todas – 205 por enquanto – as entrevistas com escritores feitas pela “Paris Review”, sob a rubrica The art of fiction, acabam de ficar disponíveis no recém-reformado site da revista para internautas de qualquer parte do mundo que tenham a chave (isto é, que leiam inglês), num roteiro de navegação organizado por autor ou por década, da de 1950 até hoje. São entrevistas longas que, de modo geral, dispensam curiosidades triviais para buscar uma profundidade pouco vista na imprensa sobre o processo criativo de cada autor. Quem está lá? Bom, o predomínio anglófono é previsível, mas “todo mundo” não seria uma resposta totalmente descabida. Um exemplo do sabor da coisa, tirado da entrevista com o escritor espanhol Javier Marías: Pergunta: “Quando comecei a ler seus romances, as digressões do narrador me deixaram ansioso por chegar à conclusão.” Resposta: “Sim, acho que eu forço isso. No segundo volume de ‘Seu rosto amanhã’, há uma cena em que um homem desembainha uma espada. A cena se passa numa discoteca, e o homem está prestes a cortar a garganta de alguém. O narrador é uma testemunha disso, conta a história e está assustado, é claro, e horrorizado –…