No centenário de Jorge Amado, comemorado hoje, a digestão do legado do escritor baiano ainda está longe de se completar. De um lado, sua obra de inédita popularidade sofreu uma espécie de canonização, com muito de kitsch como qualquer canonização. Basta ver o Bataclan ridiculamente luxuoso da nova adaptação de “Gabriela” na TV Globo: faz o Moulin Rouge parecer um bordel de província, como se as prostitutas de Ilhéus na época de ouro do cacau não fossem desdentadas, não tivessem pés cascudos, filhas destituídas da Idade Média brasileira que eram, e sim top models fazendo um bico para descolar uns trocados a mais. O outro lado da moeda é o da negação pura de Jorge Amado, que ainda é a postura dominante nos círculos literários – e não apenas acadêmicos, embora estes tenham exercido forte influência nesse sentido. Atropelado pela novidade dos estudos culturais em que desembocou o pensamento de esquerda no último quarto do século 20, Amado – que na primeira metade de sua carreira foi nosso escritor mais assumidamente político, “se não bispo ao menos monsenhor” do stalinismo, em suas próprias palavras – viu-se escalado no papel de porta-voz do patriarcalismo e do sexismo, como se fosse uma…
É um lugar-comum dos últimos cento e tantos anos, inclusive ou sobretudo entre escritores, reconhecer que a literatura não tem o poder de transformar a realidade e que sua relevância, se houver, deve ser buscada apenas dentro do círculo simbólico que ela instaura, e só enquanto o instaura. Uma relevância virtual, portanto. O impacto sobre a consciência do leitor individual, e olhe lá, seria o máximo a que uma obra literária tem o direito de aspirar, e mesmo esse impacto estaria restrito ao campo das iluminações efêmeras, raramente capazes de influenciar as ações do tal leitor no mundo. Papo furado. As provas de que a literatura, como qualquer construção simbólica, interfere na chamada realidade concreta estão por toda parte. O erro é imaginar que esse impacto teria que se dar de forma previsível, programada, como acreditavam por exemplo os (será que ainda existentes?) cultores da ficção politicamente engajada. Os efeitos são sempre imprevisíveis. É possível que Jorge Amado não tenha conquistado um único leitor para a causa stalinista com seus panfletários romances da série “Subterrâneos da liberdade”. Já o impacto de Gabriela e Dona Flor sobre as carreiras de Sônia Braga e Bruno Barreto foi monumental, para não mencionar a…
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, anunciado agora há pouco pela Academia Sueca como vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2010, é um dos nomes mais incontestáveis a receber a honraria em muitos anos. Um dos mais destacados representantes da geração do chamado “boom latino-americano” dos anos 1960-70, Vargas Llosa, 74 anos, nascido em Arequipa, mora hoje em Nova York e leciona na Universidade de Princeton, em Nova Jersey. É autor de diversos romances que combinam sucesso de público com o respeito da crítica, como “A cidade e os cachorros”, “Conversa na catedral”, “A guerra do fim do mundo” (sobre Canudos), “Tia Julia e o escrevinhador”, “Pantaleão e as visitadoras” e “Travessuras da menina má”. Seu próximo romance, “O sonho do celta”, será lançado em breve. A obra de Vargas Llosa vem sendo relançada no Brasil pela Alfaguara e uma coletânea de artigos e ensaios, “Sabres e utopias”, acaba de sair por aqui aqui pela editora Objetiva, do mesmo grupo. Nos ensaios literários deste livro, Vargas Llosa enfoca nomes como Jorge Luis Borges, Cabrera Infante e Jorge Amado, classificado por ele como o único escritor a merecer ir para o céu. Sua militância latino-americanista fica evidente, mas a literatura…
O post de hoje é um texto longo – longuíssimo, para os padrões da internet. Foi publicado em maio na revista “Veja Especial Mulher”, que retomou o fio de uma edição de 1967 – apreendida por ordem do Juizado de Menores – da extinta “Realidade” para investigar quatro décadas de mudanças na situação da mulher na sociedade brasileira. No caso das letras, a parte que me coube, a pauta acabou virando uma reflexão sobre o tratamento do sexo na literatura, tanto a feminina quanto a masculina. Assunto de Todoprosa, portanto. Então lá vai. * “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos.” O grito de guerra de uma personagem de Lygia Fagundes Telles no romance “As meninas”, de 1973, ecoou em milhares de “quartos só delas” – aquilo que a escritora inglesa Virginia Woolf, em um célebre ensaio de 1929, declarou ser fundamental para que as mulheres pudessem escrever, isolando-se dos outros papéis sociais que a sociedade lhes impunha. Por trás de suas portas fechadas, enquanto soprava na janela a ventania do feminismo, as escritoras brasileiras lançaram-se nas últimas quatro décadas à tarefa de contrapor sua própria voz a…
Onde está o Grande Romance do Futebol Brasileiro? Por que nossos escritores perebas não conseguem fazer justiça a essa porção tão risonha e límpida da alma nacional? A questão vive rondando a fronteira entre a crítica literária e o departamento de vigilância da auto-estima brasileira. A cada Copa do Mundo, ressurge com ares de grande sabedoria para rechear cadernos literários, blogs e seminários. Convocados a explicar o fenômeno, os sábios de plantão costumam se dividir em dois times: o dos que consideram os escritores brasileiros elitistas demais para dar bola para o tema e o dos que consideram os escritores brasileiros competentes de menos diante da magnitude do tema. De uma forma ou de outra, culpados. Mas será que o Grande Romance do Futebol Brasileiro (daqui em diante GRFB, para facilitar) é essa grande lacuna porque, como diz o antropólogo Roberto DaMatta, os elitistas intelectuais brasileiros “detestam o futebol” – logo eles, com sua forte corrente populista encabeçada por ninguém menos que Jorge Amado? Ou seria porque, nas palavras do crítico Silviano Santiago, “o imaginário sobre futebol no Brasil é um espaço tão complexo, tão amplo e tão multifacetado” que provoca a falência dos projetos estéticos que dele se aproximam…