Aproveito o centenário de Nelson Rodrigues, que se comemora amanhã, para reconhecer publicamente uma dívida pessoal e dar uma dica: talvez não haja lição mais importante que os escritores brasileiros do século 21 possam tirar da obra de um dos maiores escritores brasileiros do século 20 do que o difícil aprendizado do diálogo. Falo de uma questão de forma. Isso não significa minimizar o famoso conteúdo rodriguiano, esse impressionante universo de tipos caricaturais da baixa classe média carioca às voltas com tramas folhetinescas de amor e morte, infidelidade e incesto, numa atmosfera farsesca em que pulsões primitivas estão sempre prontas a furar o verniz da civilização e vir à tona com uma ferocidade equilibrada entre o trágico e o cômico. Evidentemente, é o alcance cultural desse universo que torna Nelson um monstro, um daqueles raros autores sem os quais o país não seria o que é. Mas disso não falta quem esteja falando. Quando me refiro ao diálogo, falo de uma técnica que permite a dois ou mais personagens trocarem blocos de discurso direto no meio de uma narrativa sem que soem como bonecos de ventríloquo do autor ou como oradores na tribuna da Câmara dos Deputados. Alguns escritores se…
Como sabe quem costuma aparecer por aqui, elas são um fetiche assumido do Todoprosa: aí vai uma inusitada coleção de fotos eróticas de priscas eras (mais inocentes que a novela das nove, mas vale o alerta) que juntam mulheres e… máquinas de escrever! * É um belo trabalho jornalístico esta entrevista de Rinaldo Gama, Ubiratan Brasil e Maria Fernanda Rodrigues com o editor Sérgio Machado, da Record, que saiu no último Sabático. O chefão da megaempresa aparece de corpo inteiro, mais interessado no “negócio livro” do que no conteúdo dos livros, o claro junto com o escuro, o que explica muita coisa. Só acho injusto que se demonize o homem por contar o episódio – de resto já sabido – da falsa tradução de Nelson Rodrigues para Harold Robbins. Deixa-se de levar em conta que tal tipo de trapaça com o leitor era visto como benigno e foi característico de certo estágio condescendente da indústria cultural do século 20 – veja-se o horóscopo falso, por exemplo, inventado do início ao fim por leigos absolutos, que muitas publicações de respeito cultivaram. É evidente que não cabe mais esse tipo de coisa, o mundo mudou, a ética ficou menos elástica. Mas convém…
A literatura é hoje um campo que se questiona de modo histérico, com resultados entre o suicida e o narcísico. O discurso literário parece sentir, de alguma forma, que perdeu o direito à existência. O que quer que o justificasse perante si mesmo não o justifica mais. Entre as atitudes que o discurso literário toma diante disso, destaco duas que me parecem especialmente significativas: deitar no caixão e declarar-se morto, como um personagem de Nelson Rodrigues, procedendo então à auto-autópsia; ou, feito uma drag queen de quermesse, se montar inteiro com maquiagem, bijuterias, próteses, piscando muito para o espelho e dizendo: “Eu existo, ói eu ali”. (Seria interessante – mas foge aos propósitos deste artigo, para não falar da minha competência – investigar o que haverá de analogia estrutural e especularidade simbólica entre duas crises culturais contemporâneas, a “do macho” e a da literatura de ficção.) A verdade é que, além daqueles que a fazem e da pequena seita que a consome sistematicamente, ninguém no mundo de 2012 está prestando lá uma terrível atenção à ficcão literária, como diriam em inglês – literatura artisticamente ambiciosa, digo eu. A ficção comercial vai bem, mas o público da ficção dita séria míngua…
Num artigo do escritor gaúcho Antonio Xerxenesky, encontro esta citação – que não conhecia – retirada de uma entrevista do chileno Roberto Bolaño, um dos grandes renovadores da prosa de ficção nos últimos vinte anos, morto em 2003. Bolaño esboçou uma instigante tese de fumaças marxistas sobre a quase total ausência de uma ficção de gênero no cenário da literatura latino-americana: o subdesenvolvimento não deixa. O que ele diz sobre o fantástico pode ser transposto sem dificuldade para a ficção científica, o policial, o terror e qualquer dessas províncias onde moram as obras “menores” que, embora passem nos últimos anos por uma efervescência inédita no Brasil, a chamada grande crítica costuma desprezar: Escritores que cultivaram o gênero fantástico, no sentido mais restrito do termo, temos muito poucos, para não dizer nenhum, entre outras coisas porque o subdesenvolvimento não permite a literatura de gênero. O subdesenvolvimento só permite a obra maior. A obra menor é, na paisagem monótona ou apocalíptica, um luxo inalcançável. Claro, isso não significa que nossa literatura esteja repleta de obras maiores, muito pelo contrário, mas sim que o impulso inicial só permite essas expectativas, que logo a mesma realidade que as propiciou se encarrega de frustrar de…
O post de hoje é um texto longo – longuíssimo, para os padrões da internet. Foi publicado em maio na revista “Veja Especial Mulher”, que retomou o fio de uma edição de 1967 – apreendida por ordem do Juizado de Menores – da extinta “Realidade” para investigar quatro décadas de mudanças na situação da mulher na sociedade brasileira. No caso das letras, a parte que me coube, a pauta acabou virando uma reflexão sobre o tratamento do sexo na literatura, tanto a feminina quanto a masculina. Assunto de Todoprosa, portanto. Então lá vai. * “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos.” O grito de guerra de uma personagem de Lygia Fagundes Telles no romance “As meninas”, de 1973, ecoou em milhares de “quartos só delas” – aquilo que a escritora inglesa Virginia Woolf, em um célebre ensaio de 1929, declarou ser fundamental para que as mulheres pudessem escrever, isolando-se dos outros papéis sociais que a sociedade lhes impunha. Por trás de suas portas fechadas, enquanto soprava na janela a ventania do feminismo, as escritoras brasileiras lançaram-se nas últimas quatro décadas à tarefa de contrapor sua própria voz a…
Se a ficção brasileira, como a de qualquer país, parece tímida ao retratar nossa maior paixão esportiva (veja nota abaixo), não se pode dizer o mesmo da literatura em sentido mais amplo. A produção cultural em torno do futebol, que tem na crônica esportiva seu gênero mais tradicional, vem ganhando nos últimos anos a contribuição da universidade, especialmente na área de sociologia. Em entrevista por e-mail, um dos representantes dessa tendência, Ronaldo Helal – doutor em sociologia pela New York University, professor de pós-graduação em comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autor de “Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil”, entre outros livros – tem uma tese para o eterno choro sobre o relativo silêncio de nossos escritores diante do futebol, de resto semelhante ao dos escritores de países não menos vidrados no esporte: “A diferença é que os brasileiros se creem os mais apaixonados e entendidos no assunto”. 1. A imprensa e a crítica literária vivem estranhando que o Brasil nunca tenha produzido seu “grande romance do futebol”. Isso faz algum sentido? Literatura combina com esporte? – Veja que em 1919 Lima Barreto fundou a “Liga Anti-Futebol” e dois anos depois…
Onde está o Grande Romance do Futebol Brasileiro? Por que nossos escritores perebas não conseguem fazer justiça a essa porção tão risonha e límpida da alma nacional? A questão vive rondando a fronteira entre a crítica literária e o departamento de vigilância da auto-estima brasileira. A cada Copa do Mundo, ressurge com ares de grande sabedoria para rechear cadernos literários, blogs e seminários. Convocados a explicar o fenômeno, os sábios de plantão costumam se dividir em dois times: o dos que consideram os escritores brasileiros elitistas demais para dar bola para o tema e o dos que consideram os escritores brasileiros competentes de menos diante da magnitude do tema. De uma forma ou de outra, culpados. Mas será que o Grande Romance do Futebol Brasileiro (daqui em diante GRFB, para facilitar) é essa grande lacuna porque, como diz o antropólogo Roberto DaMatta, os elitistas intelectuais brasileiros “detestam o futebol” – logo eles, com sua forte corrente populista encabeçada por ninguém menos que Jorge Amado? Ou seria porque, nas palavras do crítico Silviano Santiago, “o imaginário sobre futebol no Brasil é um espaço tão complexo, tão amplo e tão multifacetado” que provoca a falência dos projetos estéticos que dele se aproximam…