A convicção de que o romance tem um centro faz sentir que um detalhe supostamente irrelevante pode ser substancial e que o significado de tudo que está na superfície pode ser bem diferente. Romances são narrativas abertas a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos dá a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos faz mergulhar num universo tridimensional, vem da presenca do centro, seja ela real ou imaginária. O que basicamente separa um romance de um poema épico, ou de uma tradicional narrativa de aventura, é a ideia do centro. Romances apresentam personagens bem mais complexos que os de poemas épicos; focalizam pessoas comuns e exploram todos os aspectos da vida diária. Mas devem essas qualidades e esses poderes à presenca de um centro em algum lugar ao fundo da cena e ao fato de lermos com essa esperança. Como os romances revelam detalhes triviais da vida e nossas pequenas fantasias, hábitos diários e objetos familiares, o leitor lê com curiosidade – a rigor, com assombro –, sabendo que tudo aponta para um sentido mais profundo, para um propósito em algum lugar ao fundo da cena. Cada característica da paisagem…
Atrás da beleza dos livros de Nabokov há sempre algo de sinistro (ele usou essa palavra num dos seus títulos), um cheiro de tirania. Se a atemporalidade da beleza é uma ilusão, isto é em si um reflexo da vida e da época de Nabokov. Sendo assim, por que fui afetado por essa beleza, escrita, como é, nos termos de um pacto faustiano com a crueldade e o mal? (…) Para compreender melhor o que chamo de crueldade de Nabokov, examinemos o trecho [de “Lolita”] no qual Humbert visita o barbeiro na cidade de Kasbeam – só para passar o tempo, pouco antes de Lolita o deixar (de modo tão cruel, mas com toda a razão). Trata-se de um velho barbeiro de província, com o dom da tagarelice, e enquanto faz a barba de Humbert fala com volubilidade sobre o filho jogador de beisebol. Limpa os óculos no avental por cima de Humbert e deixa a tesoura de lado para ler recortes de jornal sobre o filho. Nabokov dá vida ao barbeiro em poucas frases miraculosas. (…) Mas no fim Nabokov joga sua última e mais chocante cartada. Humbert presta tão pouca atenção ao barbeiro que só no último instante…