O bate-boca entre Paul Auster (à esq.) e o fogoso primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, tem um certo tom farsesco, mas é uma bem-vinda prova de que os escritores, se já não gozam do cartaz de antigamente, ainda podem atuar como consciência crítica dos poderosos – talvez sobretudo em temas como direitos humanos em geral e liberdade de expressão em particular. Aqui (em inglês), uma boa nota da “Time” digital sobre o caso. Para resumir: numa entrevista à imprensa turca, Auster disse ter cancelado uma visita ao país porque seu governo mantém dezenas de jornalistas presos por crime de opinião. Erdogan se queimou e recorreu à ironia num discurso aos membros de seu partido, de inclinação muçulmana: “Oh, nós realmente dependemos do senhor!”, disse, como se se dirigisse ao escritor do Brooklyn. “Quem liga se o senhor vem ou não? A Turquia vai perder prestígio?” Em seguida, botou Israel no meio e a conversa degenerou, mas de uma coisa a reação de Erdogan deu bandeira: a mordida do intelectual novaiorquino que escreve ficção – uma criatura sem dentes, como nos acostumamos a pensar – doeu. * ERRO DE EDIÇÃO: Não é a primeira vez que acontece. Sete, a crônica…
Primo Levi publicou “É isto um homem?” em 1947. Vendeu 150 exemplares. Depois da recusa de 27 editores, “Molloy”, de Samuel Beckett, foi publicado pelas Éditions de Minuit e vendeu 694 exemplares. “Malone morre” e “O inominável”, lançados logo em seguida, venderam 241 e 476 exemplares, respectivamente. “Cidade de vidro”, parte da Trilogia de Nova York, de Paul Auster, foi recusado por 17 editores. “A amante de Wittgenstein”, de David Markson, sofreu 54 recusas. Laurence Sterne pagou a primeira edição de “Tristram Shandy”. José Rubem Fonseca concluiu seu primeiro livro aos 18 anos. Um editor de fundo de quintal recusou os contos e perdeu os originais, que não tinham cópia. Aos 38, lançou seu segundo livro. Em seis anos, a primeira edição de “A interpretação dos sonhos” vendeu 351 exemplares. Sob o título Estatísticas e fatos, as pepitas acima, ao lado de outras de teor semelhante, constam da pasta de textos avulsos que o escritor Théo, defunto, encarrega sua ex-namorada de fazer chegar às mãos do colega catalão Enrique Vila-Matas no romance “Se um de nós dois morrer”, de Paulo Roberto Pires (Alfaguara, 124 páginas, R$ 36,90). O livro é uma sofisticada brincadeira literária que consegue a proeza de ser…
Outra questão que eu acho muito grave é que os cursos de Letras rejeitam a Literatura e rejeitam aquele que faz literatura. Mais facilmente um autor sai de qualquer outro curso do que de um curso de Letras. O estudo de literatura é absolutamente culpado pela esterilização da literatura, pela incompetência do autor literário e inclusive pelo leitor e pelo mercado. A verdade é que é muito difícil um jovem interessado em literatura passar num vestibular para Letras e sair dali gostando de literatura. Isso é o que eu acho mais lastimável entre nós. Essa realmente é a nossa grande falência. As palavras de Beatriz Rezende, crítica literária formada e ainda abrigada na universidade (é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro), não trazem novidade para quem tem alguma vivência nesse campo, mas são marcantes pela contundência e pela clareza com que expressam um fenômeno esquisito que parece exclusivo das letras: não consta que cursos de teatro, cinema, arquitetura, artes visuais ou dança fomentem de forma sistemática o desprezo por seu objeto de estudo. (É isso mesmo, aspirantes a letrados de todo o Brasil: na hora de escolher um curso universitário, talvez não…
Se tivermos sorte, e bota sorte nisso, o livro “Como funciona a ficção” (Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann, 232 páginas, R$ 49,00), lançado em 2008 pelo crítico inglês James Wood, cairá entre nós como uma bomba de efeito moral. Claro que esta é só uma frase de efeito (moral?) e que um simples volume de crítica literária dificilmente provocará tal estrago. Isso não altera o fato de que, num mundo ideal, seria de esperar que depois dele uma série de personagens que atravancam nossa vida literária saíssem correndo em busca de abrigo, do pequeno resenhista movido por cordialidades buarquianas ao crítico acadêmico adestrado por décadas de teoria e estudos culturais para odiar tudo o que cheire a literatura. Simpatizemos ou não com suas idiossincrasias (eu simpatizo com algumas delas), Wood é tão apaixonado pela coisa que não se furta a cair no pasmo boquiaberto diante de certa tirada poética de Virginia Woolf no romance “As ondas”: “Sinto-me mortificado com essa frase; um pouco porque não consigo explicar de jeito nenhum por que ela me comove tanto”. Nessa cândida confissão de impotência reside, paradoxalmente, o maior poder de “Como funciona a ficção”. Egresso da crítica literária jornalística, que exerceu por…