Não, Roth não abandonou sua arte, não enterrou sua varinha como Próspero. Foi a arte que lavou suas mãos diante desse escritor irremediavelmente trivial e constrangedor. Tomando de empréstimo o título do primeiro livro Roth, a coletânea de contos ‘Adeus, Columbus’: Adeus, Philip! E, olhe, a porta da rua é a serventia da casa. O artigo publicado pelo crítico americano Lee Siegel no “Estadão” de domingo, chamando de “absurdo sem tamanho” a comoção em torno da aposentadoria de Philip Roth, afoga um ou dois argumentos interessantes num caldeirão tão cheio de ódio e amargura que a coisa acaba por entornar inteira em seu colo. Siegel, vale lembrar, é um notório defensor da tese de que o romance está morto. Descobrir que o público ainda se importa tanto com o que um romancista faz ou deixa de fazer deve ser mesmo muito frustrante. * Ano passado, poucos dias depois de se tornar o maior fenômeno de popularidade instantânea da história da Flip, o escritor português Valter Hugo Mãe me disse, numa longa conversa que se transformou nesta reportagem: “Muitas coisas na vida são momentos. Eu não me admirava nada de vir aqui no próximo ano e saber que ninguém mais se…
Mal havia assentado a notícia de que Philip Roth (foto) parou de escrever, o húngaro Imre Kertész anunciou que também estava pendurando as chuteiras. Isso acrescentou um prêmio Nobel a um eterno candidato ao prêmio Nobel na lista dos desistentes da literatura e criou um campo fértil para piadas – nervosas, porque o tema toca em angústias mais profundas do que gostaríamos de admitir – entre escritores das minhas relações. Quem mais faria bem à própria obra se mostrasse a mesma clarividência e a mesma coragem de reconhecer que já disse tudo o que tinha a dizer, que o que resta agora é só um vício, um hábito besta e não muito diferente daquele que Alexander Portnoy exercita à exaustão num dos livros mais famosos de Roth? “Não vamos citar nomes”, disse o mais experiente e sábio da rodinha. O que não impediu, claro, que nomes fossem citados, de gente consagrada a um ou dois jovens autores da “Granta”. Estávamos entre amigos. A graça da maledicência descompromissada repousava no acordo tácito de que ninguém se viraria para o outro para dizer: “Você, por exemplo”. No máximo, num arroubo mais ousado de humor autodepreciativo (que também provocaria constrangimento), um de nós…
O fascinante, inteligentíssimo, patético professor universitário Moses Herzog, protagonista de “Herzog”, romance lançado em 1964 por Saul Bellow (foto, 1915-2005), foi descrito por Philip Roth como “intenso porém passivo, reflexivo porém impulsivo, equilibrado porém louco, emotivo, complicado, um perito em matéria de dor, (…) um palhaço quando se torna um vingador indignado, um bobo em quem o ódio gera comédia, um sábio estudioso num mundo traiçoeiro, e no entanto ainda perdido no mar de amor, confiança e entusiasmo pelas coisas que é característico da infância…”. Talvez pareça confuso para quem não teve o prazer de ler essa obra-prima do romance americano, mas de alguma forma todas essas características contraditórias estão presentes na cena abaixo. Herzog acaba de chegar a Chicago – vindo de Nova York, onde mora hoje – com o plano de lavar com sangue a honra ultrajada pela ex-mulher, a bela Madeleine, mãe de sua filhinha Junie, ao abandoná-lo para ficar com seu ex-melhor amigo, o ruivo Valentine Gersbach – que, para agravar sua humilhação, tem uma perna mecânica. Na tradução de José Geraldo Couto para a Companhia das Letras, estes três parágrafos compõem o que deveria ser o clímax do livro, caso Herzog não fosse tão “intenso…
Nesses quase cinco anos de Todoprosa, desde sua estreia na extinta revista eletrônica NoMínimo, a hoje adormecida seção “Começos Inesquecíveis” foi sem dúvida a mais marcante, a que seduziu mais leitores e se multiplicou em mais links pela blogosfera. Deve haver razões profundas para que as aberturas lapidares de livros – e, em uns poucos casos, de contos – tenham tanto apelo. Para o aspirante a escritor, acredito que isso se relacione com o mito de que basta um bom primeiro passo para que todas as outras palavras se encaixem no lugar certo e o livro saia sem esforço, o que é obviamente um delírio. Mas deixemos a metafísica dos inícios para outra ocasião. Hoje é dia de acertar contas com alguns começos inesquecíveis que nunca apareceram nos “Começos Inesquecíveis”. Não vou pedir desculpas por isso: num universo que tende ao infinito, a ideia sempre foi fazer recortes assumidamente pessoais – uma seleção dos mais inesquecíveis entre eles pode ser conferida aqui, aqui e aqui. Para tanto, descartei as buscas no Google e fiquei apenas com minha experiência de leitor e, principalmente, como forma de reavivar memórias, com minhas estantes. Experiência e estantes que, mesmo não sendo exatamente pequenas, têm…
Lendo o artigo de Jojo Moyes no “Telegraph” sobre a dificuldade – ou a impossibilidade, segundo Martin Amis – de escrever boas cenas literárias de sexo, me dou conta de que o tema virou uma pequena obsessão dos ingleses. Sim, o Bad Sex Award, coberto com alguma atenção aqui no blog, tem sua graça. Mas aí veio o post de Sarah Duncan, e agora esse artigo. Será que a pauta é mesmo tão boa assim? Vamos admitir logo que a dificuldade existe e é interessante. Como escrever – ou optar por não escrever – o que acontece quando dois personagens, fazendo avançar a narrativa, resolvem transar sempre foi uma questão relevante e talvez seja especialmente escorregadia para o escritor de hoje. As fórmulas que um dia funcionaram tendem a nos soar canhestras, tudo resvala perigosamente no clichê. As decisões a tomar por linha são mais numerosas do que o habitual e cada uma contém seus riscos. Nomear, por exemplo, os órgãos sexuais, as ações? Usar termos técnicos ou chulos? Ou quem sabe poéticos, derivativos e metafóricos, em busca de um certo clima? Com a irresponsabilidade dos chutadores, mas sem muita dúvida de acertar o gol, eu diria que a literatura…
A mais cruel das pegadinhas literárias: telefone para Philip Roth às seis da manhã da próxima quinta-feira e fale com sotaque sueco. Interessado no Nobel, o prêmio dos prêmios literários, que será anunciado na próxima quinta-feira? Bom, eu confesso que, a cada ano, fico menos. Isso não me impede de reconhecer que pode ser divertido acompanhar o aquecimento que rola online, como este ou aquele outro, da revista eletrônica Words Without Borders, de onde saiu a piada acima. O aquecimento é divertido desde que se leve em conta que costuma ser vão. Em primeiro lugar entre os favoritos das casas de apostas está o poeta sueco Tomas Tranströmer (cujo fator “quem?” pode ser, justamente, um trunfo decisivo). O problema é que as casas de apostas nunca acertam. Em outras paragens, têm sido ventilados Ismail Kadaré, Milan Kundera, Javier Marías e Amós Oz. Os nomes de Roth e Thomas Pynchon também são citados, mas sempre com uma dose saudável de ceticismo, que cresceu desde que a Academia Sueca declarou guerra à “insular” literatura americana, há dois anos. Mas nunca se sabe, não é?
Os rumores sobre a substituição do diretor de programação da Flip dominaram as últimas horas do domingo em Parati, aquelas em que a cidade esvaziada ganha um ar meio deprimente de quarta-feira de cinzas, mas deixaram no ar uma falsa questão. Flávio Moura, com três edições no currículo, já é o mais longevo dos quatro curadores da Flip. Permanecendo ou não no cargo – e ontem à noite o diretor geral do evento, Mauro Munhoz, afirmou que ele permanece –, já ficou claro que uma correção de rumo será necessária. O problema mais grave é o evidente esgotamento da linha de trazer estrelas midiáticas internacionais como carro-chefe da programação. O mundo literário é vasto, mas os astros que aceitam convites do gênero – universo que não inclui Philip Roth e um monte de gente – estão acabando. Uma prova disso é a volta de Salman Rushdie, que ainda assim foi um dos pontos altos de 2010. Se tiver que vir de novo em 2013, porém… Por outro lado, a ideia de afrouxar os critérios propriamente literários para abarcar astros de outros céus, testada este ano com Lou Reed e Robert Crumb, deu no que deu. Reed nem veio e Crumb,…
O post de hoje é um texto longo – longuíssimo, para os padrões da internet. Foi publicado em maio na revista “Veja Especial Mulher”, que retomou o fio de uma edição de 1967 – apreendida por ordem do Juizado de Menores – da extinta “Realidade” para investigar quatro décadas de mudanças na situação da mulher na sociedade brasileira. No caso das letras, a parte que me coube, a pauta acabou virando uma reflexão sobre o tratamento do sexo na literatura, tanto a feminina quanto a masculina. Assunto de Todoprosa, portanto. Então lá vai. * “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos.” O grito de guerra de uma personagem de Lygia Fagundes Telles no romance “As meninas”, de 1973, ecoou em milhares de “quartos só delas” – aquilo que a escritora inglesa Virginia Woolf, em um célebre ensaio de 1929, declarou ser fundamental para que as mulheres pudessem escrever, isolando-se dos outros papéis sociais que a sociedade lhes impunha. Por trás de suas portas fechadas, enquanto soprava na janela a ventania do feminismo, as escritoras brasileiras lançaram-se nas últimas quatro décadas à tarefa de contrapor sua própria voz a…