Esbarro duas vezes no mesmo dia com Anton Tchekhov (1860-1904), o grande dramaturgo e contista russo. No “Globo”, Ana Paula Sousa conta que o criador de “Tio Vânia” e “As três irmãs” é o autor mais montado da cena teatral londrina este ano. E na revista “The New Criterion”, um alentado artigo (em inglês) de Gary Saul Morson enfatiza as peculiaridades que o tornavam um escritor único no panorama da literatura russa – e não só dela.
Nem aristocrata, nem radical, Tchekhov escrevia em tom menor. Era um médico de província que privilegiava as cenas banais sobre os quadros extravagantes e a atenção ao detalhe comezinho em detrimento de projetos grandiosos e teorias abrangentes. Abstrações o desagradavam. É autor de um dos melhores conselhos a escritores que eu conheço: “Não diga que a lua está brilhando. Mostre-me seu reflexo num caco de vidro”. Não tinha nenhuma proposta política a apresentar aos seus leitores porque considerava ser o dever de um grande artista reconhecer que ninguém entende nada do mundo. Covardia? Essa impressão se desfaz quando se sabe o quanto ele teve que brigar para defender tal postura.
Ocorre que a personalidade de Tchekhov não o tornava um escritor esquisitão apenas na Rússia. “O que realmente diferenciava Tchekhov de outros intelectuais, inclusive muitos de hoje em dia, eram seus valores abertamente pequeno-burgueses”, diz Morson. “Não consigo pensar em nenhum outro grande artista que tenha defendido de forma tão franca as virtudes da classe média como pré-requisitos para a dignidade humana.”
Esse credo de bom moço foi resumido numa carta a seu irmão Nikolai contendo a lista de características abaixo, que ele julgava indispensáveis a “pessoas de cultura”. Em alguns pontos, a lista, que eu não conhecia, me surpreendeu pela atualidade, como quando condena o falso brilho da “convivência com celebridades”. Em sua maior parte aproxima-se de uma receita de santidade (talvez Tchekhov não estivesse tão distante da alma russa, afinal). No fim das contas, dá e sobra para entronizá-lo como o maior de todos os escritores não-malditos, uma espécie de anti-Rimbaud a lutar contra a crença romântica tão difundida de que os artistas realmente grandes pairam acima das convenções morais.
Em minha opinião, pessoas de cultura devem preencher as seguintes condições:
1. Respeitam a personalidade humana e são, portanto, comedidas, gentis, corteses e dóceis.
2. Sentem simpatia não apenas por mendigos e gatos. Seu coração dói por coisas que não conseguem ver a olho nu.
3. Respeitam a propriedade dos outros, e portanto pagam suas dívidas.
4. São puras de coração e temem a mentira tanto quanto o fogo. Não mentem nem mesmo sobre questões triviais.
5. (…) Não brincam com as cordas da alma para despertar piedade… porque isso é perseguir um efeito barato, e é falso.
6. Não se ocupam de falsos brilhantes como a convivência com celebridades.
7. Se têm talento, respeitam-no.
8. Desenvolvem um gosto estético. Não conseguem olhar despreocupadamente para uma rachadura cheia de percevejos na parede, respirar ar impuro, pisar num assoalho em que alguém tenha cuspido… Fazem todo o possível para refrear e enobrecer o instinto sexual… Não se encharcam de vodca… Precisam ter ‘mens sana in corpore sano’.
7 Comentários
Com exceção do último conselho, que não aconselho totalmente, são conselhos de muito valor.
Substantivo Plural » Blog Archive » Tchekhov, ‘comedido e dócil’, era o anti-Rimbaud
Muito bom, Sérgio. Um tempo atrás deixei aqui um link sobre um livro dele que tinha acabado de ser lançado. E insisto agora na recomendação: http://tiny.cc/00zib. Fica até difícil mencionar algum destaque. Achei todos os contos excelentes.
Enfim, um artista que foge do clichê porra louca. Sempre achei que artistas tinham que ser obrigatoriamente idiotas…
Sérgio, espero o teu comentário sobre esse frisson (ainda não sei se exagerado) a respeito do novo livro do Galera.
Sérgio, acho que esta carta é da época em que Tchekhov seguia as orientações de Tolstoi e ficava torrando a paciência dos familiares para que eles tb seguissem o exemplo. Isso durou até por volta de 1890, quando ele estava om 30 anos, se apaixonou por uma mulher casada e descobriu que ele mesmo não era santo algum; o melhor da obra veio depois disso, inclusive todas as peças importantes. O artigo falha em não registrar este corte. No mais, entendo que há de fato certa justiça em associá-lo a certa moralidade pequeno-burguesa, mas uma que não se confunda com uma ética intolerante, muito pelo contrário: a vodca e o desejo têm até um certo papel em suas flutuações. E a piedade por mendigos e gatos – no lugar do apreço por abstrações como a ‘humanidade’ etc. – também ganha um outro valor neste caso.
Conselhos de Tchekhov - Paizão de 2