Um dos conselhos literários mais importantes que já recebi – quase tão importante quanto aquele outro, o de desconfiar de todos os conselhos literários – me apareceu quando eu tinha vinte e tantos anos, lendo um artigo de Autran Dourado (citado aqui outro dia) sobre seu método de trabalho. Se a memória não me engana mais do que o habitual, o escritor mineiro revelava, embora não com essas palavras, uma forma de dar vida nova a textos deficientes, insatisfatórios, capengas ou falsos: trocar seu tempo verbal ou a pessoa da narração – ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Ainda não era comum escrever em computador naquela época. O truque, se assim podemos chamá-lo, envolvia um bocado de trabalho pesado: rabiscar tudo com caneta era provavelmente o primeiro passo, mas no fim das contas, para ter um resultado apresentável, restava alimentar a máquina de escrever com papel novo e datilografar tudo outra vez. Da primeira à última palavra. Trocando, por exemplo, “fui” e “tinha” por “vou” e “tenho”. Ou por “vai” e “tem”. E “minha” por “sua”. Etc.
É claro que, tendo feito tudo isso, e ainda que a princípio satisfeito com as mudanças, nada impedia o angustiado autor-datilógrafo de se arrepender no dia seguinte. Por alguma razão ainda pouco explicada, a virada da folhinha tem frequentemente essa capacidade de transformar felicidade autoral na frustração mais amarga. E lá iam tempos verbais e pessoas narrativas de volta ao estado de origem, à custa de mais batuque no teclado.
Divertido? Não, deve haver palavra que qualifique melhor esse tipo de exercício. Naquele tempo, a coisa tinha sem dúvida algo de insano, mas a função localizar/substituir do computador, eliminando como por milagre a maior parte do trabalho braçal, tornou forçado falar em insanidade. Hoje é bem mais fácil alterar o sujeito e os tempos verbais de uma narrativa, mesmo que ela seja um romance de 500 páginas. Claro que ajustes ainda precisam ser feitos manualmente, em flexões e tal, mas é indiscutível que o texto se tornou mais plástico, o caminho entre a cabeça e a página encurtou, a vida ficou mais confortável.
Curiosamente, junto com toda essa facilidade parece ter vindo também uma valorização ingênua de certa “espontaneidade”, ao lado da desconfiança de que exercícios formais como aquela dança de tempos e pessoas – entre outros – não passem de disfarces para a falta do que dizer. Para esses cultores da “expressão pura”, escritores são diferentes de pianistas, por exemplo, que dedicam boa parte da vida à repetição mecânica de escalas: já nascem sabendo tudo.
Sim, é possível que o problema de uma narrativa seja outro e que ela continue a mesma porcaria quando mudamos a narração da primeira para a terceira pessoa. Mesmo em tal caso, porém, o exercício não terá sido em vão. A razão disso é diabolicamente simples: ao brincar com o ponto de vista e o tempo verbal – a voz narrativa, em suma – estamos nada menos do que penetrando o coração dessa brincadeira, tomando posse daquilo que torna a literatura, literatura. Cervantes inventou o romance moderno quando inventou a voz autoconsciente e paródica encarregada de encenar a loucura de “D. Quixote”. O resto veio depois.
“As virgens suicidas”, de Jeffrey Eugenides, deve grande parte de seu encanto à opção pela narração na rara primeira pessoa do plural, que torna os vizinhos das irmãs Lisbon porta-vozes de todos os adolescentes apaixonados do mundo. Li há algum tempo uma entrevista em que Daniel Galera contava ter encontrado o tom de “Barba ensopada de sangue” no momento em que trocou a primeira pela terceira pessoa. Em meu romance “O drible”, há trechos narrados em terceira, em primeira e até em segunda pessoa – uma alternância que nada tem de gratuita e que também não surgiu sem uma boa dose de experimentação, de tentativa e erro, em busca da melhor forma de contar aquela história.
É possível escrever tratados inteiros sobre cada pessoa e cada tempo verbal. O que todos têm em comum é o fato de cada escolha dar ao autor uma chave que abre algumas portas ao mesmo tempo que fecha outras. Nem todas as implicações são claras no momento em que se faz a opção. O excelente “O encontro marcado”, narrado numa terceira pessoa colada ao ponto de vista de Eduardo Marciano, conduz Fernando Sabino a um impasse já perto do fim, quando precisa dar ao leitor uma informação (sobre o filho abortado de Marciano) que o próprio personagem, alter ego do autor, não tem. A solução que o escritor encontra é trair por algumas linhas a voz do livro, sujando com um curinga sua canastra de resto perfeita.
8 Comentários
É batata! Todo sábado, “viajando no coração da literatura”, aprendo alguma coisa a mais.
Thank pra você, Sérgio!
Apareça sempre, Miguel. Um abraço.
Uma opção interessante foi a de Ayn Rand no seu livro Anthem. Cada personagem refere-se a si mesmo como “Nós” e a outra pessoa como “Eles”. Isso marca a eliminação da individualidade dessa distopia.
Explicações apropriadas… Mas, escritores e poetas são loucos por mudanças e por mudar a todo instante, principalmente re-rabiscar seus textos…Parabéns…
As tuas últimas colunas estão bastante boas. Diferente do que se lê por aí hoje. Mas o que eu sinto falta aqui, e ainda mais ao já ter lido tantas referências a Barba Ensopada de Sangue, por exemplo, são resenhas de livros nacionais, como esse do Galera. Imagino o motivo de se abster dessas resenhas, um inço que se espalha por entre os escritores.
Sergião: Olha essa entrevista aqui do Emmanuel Carrère: http://www.theparisreview.org/interviews/6254/the-art-of-nonfiction-no-5-emmanuel-carrere
Tem umas coisas muito boas sobre essas mudanças de voz narrativa. Aliás, o cara é ótimo! E o teu livro, O DRIBLE, também é ótimo! Abração!
Quando vi a foto do Sabino e o título “tempo e pessoas”, logo pensei que ia citar O enigma de Capitu, em que ele muda a pessoa do Dom Casmurro. Mas achei legal onde você foi parar. E, sobre essa passagem do filho abortado do Marciano, uma curiosidade: o Sabino disse certa vez (e é claro que não vou me lembrar onde) que, neste momento do romance, ele chegou a escrever a vida desse personagem até os 15 anos. Daí só depois de páginas e páginas é que ele percebeu que faria mais sentido o personagem nem nascer. Verdade ou ponto aumentado, Sabino usou o caso para ilustrar a máxima “escrever é cortar”. Eu, sempre quando volto ao livro e trombo com esse trecho, penso nas duas coisas: na quebra de ritmo que acontece com essa onisciência súbita e momentânea do narrador (mas você ilustrou mais gentilmente com a imagem do curinga na canastra) e na possibilidade do Fernando ter de fato escrito a tal trajetória do personagem até os 15 anos. Vai saber…
Um abraço, Sérgio. Suas colunas estão sempre ótimas.
Um ano em cinco tempos | Todoprosa - VEJA.com