Para o escritor inglês Tom McCarthy, não basta gostar de Tintim, o repórter aventureiro de topete louro criado por Hergé. Eu também gosto. O problema começa quando McCarthy resolve provar que os álbuns em quadrinhos de Tintim estão no mesmo nível da melhor literatura jamais escrita. Aí seu caso começa a ficar indefensável.
Nada contra os quadrinhos, mas me parece fora de questão que eles não são – e só têm a ganhar se não tentarem ser – literatura. Além do mais, se desconfiei da onda teorizante que vinte e tantos anos atrás quis reduzir Tintim a um repulsivo agente do imperialismo francês, por que embarcaria agora na viagem de incensá-lo como o mais acabado herói produzido pela cultura ocidental desde Homero, aquele em que se cruzam algumas das tradições mais férteis da literatura de todos os tempos?
O fato é que a editora inglesa Granta resolveu jogar seu prestígio nessa brincadeira, e não parece estar arrependida. Tem feito um certo estardalhaço o livro Tintin and the secret of literature (“Tintim e o segredo da literatura”). Abaixo, alguns fragmentos do livro – e aqui, em inglês, um maior.
Personagens como o Capitão Haddock e Bianca Castafiore ombreiam com qualquer um criado por Dickens ou Flaubert em termos de força e profundidade. O Professor Calculus poderia enfrentar de igual para igual qualquer cientista da literatura, do Doutor Fausto de Marlowe ao Galileu de Brecht.
Como muitos dos melhores escritores, Hergé nos legou um bestiário de tipos humanos. Tomados em conjunto, eles formam um imenso painel social – aquilo que Balzac, descrevendo a rede de personagens estendida ao longo de seus livros, chamou de Comédia Humana (…).
A comédia social ao estilo de Molière se alia sem esforço algum a um misto de aventura à moda de Dumas com a narrativa claustrofóbica conradiana, e correndo ao longo de tudo isso, graças ao capitão, rajadas de obscenidades rabelaisianas não param de ecoar, retumbantes.
Contra um pano de fundo de guerras, revoluções e recessões, de progresso tecnológico imbuído de um aspecto quase sagrado, para não falar dos velhos deuses que teimosamente se recusam a morrer, tudo isso resulta numa obra que, novamente como aquela de muitos dos melhores escritores – Stendhal, George Eliot ou Pynchon, por exemplo – torna-se uma lente, ou prisma, através do qual toda uma era entra em foco.
Pelo menos esse McCarthy é divertido. E digo mais: é, no mínimo, divertido esse McCarthy.
9 Comentários
Todo mundo sabe que o maior herói da ficção é o Tio Patinhas do Carl Barks.
Sérgio, apesar desse autor forçar a mão e extrapolar todos os limites do razoável, quadrinhos possuem sim sua nobreza. Assim como há romances que pouco dizem, há quadrinhos que jogam luz sobre a mesma substância que a grande literatura: a complexidade humana. Naturalmente, a maioria dos quadrinhos são rasteiros (a maioria dos romances também não são?), mas há autores/ilustradores que exploram todo potencial dessa forma de arte muito específica (e nova) e seus trabalhos, que não são literatura, não devem ser literatura, podem fazer o leitor ter grandes idéias, assim como a pintura, música e teatro. Da mesma forma que o romance demorou quase três séculos para atingir seu esplendor, o ‘adolescente’ quadrinho ainda tem muito a aprender e se desenvolver até alcançar sua coda. O quadrinho não teve ainda seu Homero. Não há problemas, porque antes de Homero a própria literatura não tinha o seu. Abs, e parabéns pelo blog.
Vinicius, reli minha nota, mas continuo não entendendo por que você imagina que subestimo tão toscamente os quadrinhos. Eles apenas não são literatura, da mesma forma que cinema não é teatro e break dance não é O lago dos cisnes. Nenhuma forma de arte chegará a lugar nenhum enquanto acreditar que seu ápice é parecer aquilo que não é. E os quadrinhos podem não ter Homero mas têm Will Eisner, dá quase no mesmo. Um abraço.
Concordo com Sérgio: não se trata de quadrinho ser bom ou ruim. É de não ser literatura. De outra forma, pareceria que se afirma que, se é literatura, é necessariamente coisa boa.
Sérgio, não acho que você subestima quadrinhos. Nem me passou pela cabeça isso. Apenas comentei que a nobreza de uma HQ é de ordem diversa daquela que pode ser atingida pela literatura. São duas expressões diversas. Exatamente como você defendeu. Apenas acredito que os quadrinistas ficam muito ansiosos para legitimarem sua arte e se esquecem da juventude dela. Nesse texto do Guardian as qualidades do Hergé têm sempre um correspondente na literatura, e na lógica dele por isso são importantes. Quadrinhos deveriam se medir com quadrinhos. Um dia isso irá acontecer. Grande abraço,
Voltando ao Tim-tim, mesmo fugindo ao tema do debate, suas primeiras histórias têm um ranço racista contra negros e “nativos” que me parece coisa de europeu da época em que foram escritas (meados dos anos 30)
Não gosto do Tim Tim.
Prefiro Asterix e os Gauleses, Tio Patinhas, Pato Donald, Mônica e sua turma, Calvin e Haroldo, Mafalda e as impagáveis tirinhas da Maitena.
Mas não os classifico como literatura, são diversão pura e simples.
Tintin ñ é francês. Ele é belga.
Isso mesmo, Msim, é belga como seu autor. Mora em Bruxelas. Eu nunca disse que ele era francês, apenas que uma certa “crítica” o andou acusando de agente do imperialismo francês – e não do imperialismo belga. Tallvez acreditasse que dá no mesmo.