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Tradução, achados e perdidos

03/05/2014

Vida de escriba, capítulo 345. Alguns anos atrás recebi de uma grande editora uma tarefa peculiar, que acabou se revelando tão desafiadora quanto divertida. Eles tinham um abacaxi na mão e queriam que eu o descascasse: haviam comprado de uma casa estrangeira os direitos de publicar em nosso país a autobiografia de um brasileiro (que vai ficar sem nome: além de sua identidade não ser fundamental para o que quero contar, o anonimato pode evitar alguns dentes rangidos em vão).

O abacaxi se devia ao fato de que, ao contrário do que supunha inicialmente a editora nacional, a narrativa da vida do sujeito – em primeira pessoa, já foi dito que era uma autobiografia – só existia em inglês. Não havia nem sombra de um original em português que se pudesse usar. Descobriu-se então que por trás daquele livro de historinha simples, linear, havia uma trama um tanto intrincada.

Os editores estrangeiros à frente do projeto tinham rejeitado inteiramente o manuscrito apresentado – não pelo próprio personagem, mas por um ghost writer, como é comum nesses casos – em português. Registre-se que ao agir assim estavam sendo apenas sensatos. Em vez de traduzir aquilo, haviam decidido contratar alguém para escrever um novo texto, diretamente em inglês, aproveitando parte das informações. O livro era outro. A voz era outra.

Uma voz que, traduzida para o nosso idioma, deixou o tal personagem – brasileiríssimo – soando como um ator americano mal dublado, o que também é infelizmente comum. Depois daquele bololô de versões, era preciso trazê-lo de volta, mais do que para seu idioma, para sua cultura. Reinventar para ele uma voz plausível.

Se eu consegui? Não sei, mas o texto que entreguei à editora chegou aos leitores sem que ocorresse a ninguém, que eu saiba, acusar aquele ilustre brasileiro de ter deixado o sucesso abalar sua capacidade de se expressar na própria língua, algo que talvez pudesse ser equiparado – com algum exagero dramático – a perder a alma. Não foi preciso fazer muito mais do que buscar uma certa cadência confortável aos nossos ouvidos e substituir por construções brasileiras frases como “O que inferno você está falando sobre?”

Brincadeira: uma tradução tão cômica de What the hell are you talking about? não constava do manuscrito. Mas havia outras que não ficavam longe disso, do tipo que se encontra com alguma frequência em livros escritos nos últimos anos, diretamente em português, por e para brasileiros – e aqui eu chego aonde queria chegar com esse passeio pela rua da memória (ops!): sempre que vejo um compatriota ficcional pronunciar um incentivo como “Você consegue!” ou uma praga como “Dane-se você!”, eu me lembro de como aquele brasileiro correu o risco de soar em sua autobiografia.

Se todo escritor deve estar atento para que seus personagens não acabem inadvertidamente parecidos com atores dublados de velhos enlatados televisivos, convém levar em conta que, em alguns casos, é exatamente essa a intenção. A trama não demora a se adensar. Brasileiros de algumas gerações – a começar pela minha – foram expostos àqueles velhos seriados dublados de forma tão maciça que absorveram, naturalizando-os, muitos de seus cacoetes de expressão. Para eles, o jeitão sintático e vocabular que na boca do personagem daquela autobiografia poderia ser interpretado como um sintoma de perda da alma é, indiscutivelmente, parte da alma.

Os desafios que esse hibridismo cultural representa são grandes. Pode-se dizer que a primeira dificuldade que um escritor enfrenta é a de tomar posse plena de sua linguagem, isto é, insuflar alma nas palavras, limando automatismos, clichês e outros trejeitos inautênticos que tendem a crescer feito capim. Mas o que é artificial e o que é autêntico a esta altura do furdunço globalizado? Como tomar posse plena de uma tradução tosca? Bom, acho seguro afirmar que, a não ser como sátira rasgada, “O que inferno você está falando sobre?” está fora de questão. Mas se a alma do personagem é de borracha, ou de raios catódicos, ou de bits, cabe ao autor mostrá-la assim.

5 Comentários

  • Delair 03/05/2014em18:49

    Acho muito interessante essa reflexão, que me lembrou uma resenha da Copa de literatura do ano passado, a do Doutor Plausível, sobre tudo quando analise Dentes Guardados:

    “(…) Mas em DN, o autor dá mostras de ter crescido lendo traduções do inglês e de outras línguas, feitas por tradutores intermediários –do tipo q não sabe a diferença entre análise e síntese, entre conceito e cognato. Tradutor intermediário é uma praga nacional; e acho hilário q, num certame de literatura brasileira, no próprio mercado literário, vejam-se livros repletos de frases desnaturadamente enxertadas no texto brasileiro competindo pau-à-pau com outros livros em q, aí sim, os ritmos, a praxe, a própria natureza da língua brasileira substanciam com plausibilidade a relação texto/leitura. Vejam algumas instâncias mais gritantes de traduzês de inglês em DN (com a frase originária em itálico):

    p.39 (porteiro) Qual é a porra do seu problema? (What the fuck is your problem?)
    p.53 (professor, dando pêsames) Eu… eu sinto muito. (I… I’m sorry.)
    p.59 Duas crianças (…) brincando na distância. (Two children … playing in the distance.)
    p.65 O líder disse que faria dela a sua esposa. (The leader said he would make her his wife.)
    p.88 (coronel) Vão transformar essa coisa toda em uma porra de parque temático. (They’re going to turn this whole thing into a fucking theme park.)
    p.123 (Ana Maria) Mas o que eu sei? (But what do I know?)
    p.132 (Ana Maria) Diziam que os moleques invadiam fazendas e, bem. (They said the boys broke into farms and, well…)
    p.136 Recordações não são permitidas. (Memories are not allowed.)”

  • Delair 03/05/2014em18:50

    quando analia DENTES NEGROS, não Dentes Guardardos.

  • brasileiro 10/05/2014em17:05

    teria sido a autobiografia de Pelé?

  • Pedro 12/05/2014em21:57

    Parece se tratar dessa nova do Pelé, com o mesmo ghost da do FHC

  • Mendes 16/05/2014em15:38

    O saudoso Napoleão Mendes de Almeida diria que na raiz dos problemas da língua portuguesa falada no Brasil estão: nenhum latim, pouquíssima gramática, quase nenhuma leitura, especialmente dos clássicos, e instrução escassa e de baixa qualidade. Sem ser tão radical, eu acrescentaria (apud Nelson Rodrigues) o complexo de vira-lata. O brasileiro parece que detesta a língua portuguesa e chega a ter vergonha dela. Os povos que falam espanhol tratam muito melhor a própria língua, mesmo nos países mais pobres da América Latina, do que os brasileiros tratam o português.