Minha escala em matéria de relações tradutor-autor oscila entre o zero absoluto, cujo protótipo foi Thomas Bernhard (o tradutor é um ser incompetente que faz um trabalho merecidamente mal pago), e Günter Grass, para quem seus tradutores são, como ele disse algumas vezes, a verdadeira razão para continuar escrevendo. Entre esses extremos eu situaria Salman Rushdie, que jamais interfere nas traduções de seus livros, mas responde em 24 horas qualquer consulta… Rushdie escreveu sobre Hitoshi Iragashi, seu tradutor japonês assassinado: “A tradução é uma espécie de intimidade, uma espécie de amizade, e por isso choro sua morte como choraria a de um amigo”. O resto dos escritores se situa em variadas alturas. Um DeLillo, por exemplo, está perto de Grass; um Kundera, mais próximo de Bernhard, ainda que com pretensões de entender de tradução.
O bom artigo do espanhol Miguel Sáenz – tradutor de Grass e Rushdie, sorte dele – é um dos que debatem as agruras da tradução na última edição do suplemento Babelia, do “El País”. O assunto ganhou a capa do caderno, sob o título “O ofício invisível”. Invisível, claro, quando a tradução é boa. A visibilidade do tradutor é inversamente proporcional à qualidade de seu trabalho. O que resume boa parte do drama.
14 Comentários
Sérgio, ótimo tema! Olha o que Alberto Manguel me disse sobre isso:
Veja – O que se perde ao ler um livro traduzido?
Manguel – Tudo. Um livro é a língua na qual ele foi escrito. Sua tradução é outra obra – que às vezes pode até ser melhor do que a original. Quem sabe alemão, francês, italiano, espanhol e sueco tem a literatura do mundo inteiro a sua disposição. Se você fala apenas inglês, não. Os países de língua inglesa não traduzem muito. Têm uma cultura profundamente arrogante, que acredita que a civilização termina nos limites de seu próprio idioma.
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Sérgio, gostei do seu comentário e do “assunto”. Você tem razão quando escreve que o bom tradutor não aparece. Pero 2 coisas: 1. A citação do artigo, no corte que você deu no texto, sacrificou um pouco a compreensão. Deixa margem ao entendimento de que autor e tradutor estão em uma mesma pessoa. Teria sido melhor trazer para a citação a frase imediatamente anterior, “… traducir hace también que el traductor conozca gente, sobre todo a esos seres absurdos llamados escritores”.
2. A pressa parece ter forçado a tradução de ” jamás se inmiscuirá en las traducciones” por ” jamais interfere nas traduções” – o inmiscuirse espanhol cai como uma luva em nosso imiscuir-se. Que é uma gradação diferente do interferir.
Abraço.
Com raras exceções, os tradutores no Brasil têm sido tão “visíveis” que eu evito lê-los, sempre que possível, é claro. Se vc quiser saber mais sobre o que penso do assunto, leia meu “post” http://sparksjrs.blogspot.com/2006/10/traduo-de-livros-de-baixa-qualidade.html , de 21 de outubro passado.
É mesmo, se fazem uma tradução bem feita passa quase despercebida. Se fazem mal feita, todo mundo baixa o sarrafo. Recentemente o Jorge Coli da Folha desancou com uma tradução de um livro, chegando a pedir que façam outra melhor.
Urariano, não vejo onde o trecho que escolhi possa sugerir que tradutor e escritor são a mesma pessoa. Sobre o ‘imiscuir-se’ (sabia que importamos esse verbo diretamente do espanhol?), optei por um tom mais coloquial, que me parece mais fiel às intenções do autor: a aura “culta” desse verbo aqui é maior do que lá. Mas talvez tivesse sido melhor usar “intrometer-se”. De qualquer forma, agradeço sua observação: é bem adequado que essa nota provoque uma discussão sobre tradução.
Un bon traducteur est plus proche du poète maudit que de l’écrivain reconnu.
le bon traducteur est plus proche du poète maudit que de l’écrivain reconnu.
tradutor é que nem roteirista,ninguem sabe,ninguem conhece, e nem sei quanto eles ganham.
mas eles que fazem a graça da vez,sem eles nao teria graça,parabens a todos roteiristas e tradutores.
Sem querer ser chato, acho que vale a pena levantar a questão do acesso. Para quem teve a oportunidade de aprender várias línguas, e tem acesso a boas edições, de grandes tradutores, vale reclamar de nuances nos texto traduzidos. Mas quando se trata de leitura, sou daqueles que costumam dizer sempre: “É melhor do que nada”. Cheguei a estudar Filosofia um ano, e lembro que muitas pessoas falavam mal da coleção “Os pensadores”. De fato, ela não traz as melhores traduções, mas não creio que atrapalhem estudantes do primeiro período. Concordo que é muito melhor ler Kant em alemão, mas devo esperar aprender a língua para fazê-lo?
Sérgio, muito oportuno o tema! Quando me formei em Tradução o tema do meu trabalho de conclusão de curso foi O Tradutor como Criador. Acredito ser impossível o tradutor não deixar suas marcas no texto, por muitos fatores: ideologia, contexto histórico e cultural, vivência, etc. Ainda assim, nós profissionais podemos fazer um trabalho de qualidade se entendermos os meandros da tradução e em que implicam as mudanças de sentido, principalmente em textos de humor.
Gostei muito de você ter abordado o assunto, ninguém lembra do trabalho do tradutor e é ele quem possibilita muitas das nossas experiências de leitura.
Há um tempo saiu na Revista da Folha uma matéria legalzinha sobre isso, em que entrevistaram alguns tradutores de livros famosos para saber sobre o “processo” de cada um. Interessante ver as diferenças abissais entre os métodos e formas de trabalho e de relação com os autores originais. A melhor parte foi a do Eric Nepomuceno, que sempre traduziu Gabriel Garcia Marquez e contou ótimas passagens dessa relação com Gabi.
Finalmente o Brasil tem dado a devida atenção aos tradutores – com iniciativas como a categoria de melhor tradução incluída no Jabuti. E o panorama não poderia ser melhor: fora os tradutores de língua inglesa, cada vez melhores (José Rubens Siqueira, Rubens Figueiredo e principalmente Paulo Henriques Britto), não param de sair traduções diretas de outras línguas. Russo, japonês, polonês, húngaro, turco, etc.
Outro autor conhecido por facilitar muito o trabalho dos tradutores é o Thomas Pynchon.
Carlos Marques lembra Eric Nepomuceno como tradutor de Garcia Marquez. Desde que li sua tradução de “Doze contos peregrinos”, do Premio Nobel colombiano, desisti de qualquer trabalho de Nepomuceno. Um desastre total. Lá aparecem coisas como a palavra “sobrecama” que se transformou em portugugêsm “cobre-leito”. Na verdade, não passa de uma simples “colcha”. Quando o autor diz que um pesonagem “tuve un sueño cenagroso”, o tradutor interpreta como um “sonho de pântano”. O contista está se referindo,metaforicamente, a um “pesadelo”. Há dezenas de outras mancadas…
Ih! Que problemão! O Eric Nepomuceno é amigo do Gabo e não traduz um capítulo sem mandar no mínimo 4 faxes. Não posso opinar por que só li “O Outono do Patriarca” e a tradução é do Remy Gorga, Filho. Devorei o livro faz mais de xx anos e não reparei na tradução.
Mas o que dizer do Borges que leu o Quijote pela primeira vez em inglês e quando leu o original espanhol lhe pareceu uma tradução mau feita? Não é mentira dele. Foi em uma autobiografia. Eu já contei esta história em outro post.