FINADOS (MANTRA DO ESCRITOR OBCECADO)
Cervantes morreu em 22 de abril de 1616.
Shakespeare o acompanhou um dia depois, 23 de abril de 1616.
Sterne R.I.P. em 18 de março de 1768.
No século seguinte, também em março, dia 22, do ano de 1832: Goethe.
Flaubert tinha então dez anos, e 58 ao parar de envelhecer, em 8 de maio de 1880.
Machado foi fazer companhia a Brás Cubas no dia 29 de setembro de 1908.
Mais dois anos e Tolstoi perdeu a guerra, tomara que para encontrar a paz: 20 de novembro de 1910.
Em 3 de junho de 1924 foi a vez de Kafka sair da vida, mas aquilo era vida?
Joyce começava então a escrever o Finnegans Wake. Em 13 de janeiro de 1941, levou-o a peritonite.
Rosa completou sua travessia de homem humano em 19 de novembro de 1967, três dias depois de virar imortal.
Em 1977, Nabokov se foi em 2 de julho e Clarice em 9 de dezembro, no pós-parto de Macabéa, um dia antes de completar 57.
Conclusão: escrever é tão perigoso quanto viver.
E eu mesmo não estou me sentindo muito bem.
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O AMOR LITERÁRIO É A RAIZ QUADRADA DO ÓDIO
A fórmula v = b², proposta em seu clássico The supercool writer’s decalogue por Otto Bax, o berlinense suicida, é a genial quantificação de uma lei universal que, apesar de pressentida por geração após geração de cultores das letras, permanecia desde Homero no campo obscuro das intuições: no âmago de todo escritor, o número de colegas desprezados é igual ao número de colegas admirados ao quadrado. O que equivale a dizer, naturalmente, que o amor literário é a raiz quadrada do ódio.
(As iniciais v e b correspondem respectivamente às palavras Verachtung, “desprezo”, e Bewunderung, “admiração”. Optamos por não traduzi-las, discordando de outros autores, devido à consagração da fórmula de Bax nos mais influentes círculos da coologia acadêmica literária internacional.)
Não contente em capturar na malha dos números aquilo que se julgaria imponderável, Bax foi além e, antes de aplicar na própria veia uma gorda injeção de Frischluft, propôs outra lei universal: quando se levam em conta apenas autores vivos, a fórmula se transforma em v = b³, o desprezo equivalendo à admiração elevada ao cubo.
Infelizmente, a morte prematura de Bax não lhe deu tempo de se aprofundar nas consequências de seus achados para o estudo da complexa rede de alianças programáticas, declarações de guerra, elogios hipócritas e trairagens variadas que compõe os mecanismos dentados de fabricação e destruição da respeitabilidade literária.
Do planejado livro Über Ruhm (“Sobre a glória”) – que, na falta de amigos, Bax disse a pelo menos meia dúzia de garotos de programa ser o trabalho de sua vida – foram encontradas apenas anotações soltas em seu apartamento caótico. No meio delas, porém, destaca-se um aforismo de brilho ofuscante: “As panelinhas sugam todo o coeficiente de admiração para dentro de si mesmas, restando para o mundo lá fora nada além de um desprezo cúbico”.
Sobre o autodesprezo – e o risco que ele representa para a própria vida do escritor – Otto Bax não escreveu uma linha sequer.
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A HIPÓTESE BRÁS CUBAS
Em seu leito de hospital, o velho escritor ergue a caneta Bic com suas últimas forças. Sabe que lhe resta pouco tempo, talvez horas, e se aflige mortalmente. Então é isso? Tanto para dizer, tanta coisa prometida, tão pífia realização? Passa mais de meia hora de olhos pregados na parede, cismando bestamente na possibilidade de, como Brás Cubas, terminar sua obra… do outro lado.
Escreve:
Brás abre o primeiro capítulo de suas memórias, chamado “Óbito do autor”, hesitando entre começar pelo princípio ou pelo fim, isto é, pelo nascimento ou pela morte. É claro que vemos aí a “pena da galhofa” que ele acabara de anunciar no prólogo – e se nada disso faz sentido para você, membro de uma geração que não lê Machado, azar o seu – mas nem por isso a questão do ponto de partida é menos crucial. É difícil levar qualquer empreitada a bom termo quando não se sabe o motivo de ter começado, claro. No entanto, não é esta uma boa definição da própria vida?
Seria? O escritor olha para a janela, com sua persiana eternamente fechada. Tenta se lembrar do êxtase provocado por uma certa manhã de sua infância, cheia de sol, pescaria e alarido. Sobre ela só consegue extrair da memória descrições posteriores, adultas, palavras. Reflexos de reflexos.
Meu problema, pensando bem, é mais grave que o de Brás. Se a vida do filhinho de papai nascido no Primeiro Reinado parecia a ele mesmo tão desprovida de sentido que o modo de ordená-la num livro passava a ser uma gratuidade, simples opção de estilo, o que dizer da vida de um moribundo que tentou filtrar tudo em palavras, só para descobrir, no fim, que elas o abandonaram feito filhos ingratos?
Sim: depois da morte de Ione, sua mulher, os três filhos do escritor sumiram no mundo. Nenhum deles foi visitá-lo no hospital, mas não é nisso que ele quer pensar agora.
O problema com a hipótese Brás Cubas, que seria a esta altura o único consolo, não é só o meu sólido ceticismo sobre a perenidade do espírito e toda essa lengalenga. No tempo longínquo em que eu ainda acompanhava Ione aos cultos kardecistas, de pura fidelidade conjugal, houve momentos em que meu agnosticismo chegou a vacilar diante da evidente honestidade daquelas pessoas, do seu fervor, e também de alguns fenômenos esquisitos para os quais eu não tinha explicação. Mas só balancei até o dia em que um dos frequentadores, de olho numa conversão e decerto sabendo-me um “homem de letras”, me emprestou um livro chamado “Parnaso d’além-túmulo”. Trata-se de uma coletânea de poetas mortos, um volume inteiro de versos psicografados. Li todinho mas, confesso, por puro espírito de porco: a partir do segundo poema eu tinha que me trancar no banheiro para rolar de rir sem que Ione percebesse. Lá estavam diversos grandes, Álvares de Azevedo, Bilac, Bandeira. Ou o editor dizia que estavam. Ocorre que os poemas eram toscos demais, bisonhos demais, obras de ginasianos de província. Minha conclusão foi que, caso aquilo não fosse uma grossa picaretagem, a pior coisa que podia suceder ao estilo de um escritor era a morte.
O escritor sorri por dentro, mas seu rosto permanece imóvel. Está cansado demais. A Bic cai de sua mão sobre o lençol branco onde se lê, em tinta azul desbotada, o nome do hospital.
E acabou.
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Os contos acima foram publicados separadamente entre abril e novembro de 2012.
Um comentário
Luiz Carlos Esteves Corrêa, o poeta bilíngue Luis Carlos de Arapey, faleceu em 12 de junho aos 94 anos de idade, em Nova Petrópolis/RS. Deixou, além da esposa, dos 3 filhos e 4 netos, uma obra e um exemplo como poucos.
Sua poesia é reconhecida por intelectuais, críticos, poetas e escritores do porte da imortal Lygia Fagundes Telles:
“Poeta Luis Carlos de Arapey: Acabei há pouco a leitura de seu livro “Poemas do Tempo Frágil”. E devo lhe dizer que este é, sem dúvida alguma, um dos melhores dos muitos livros de poesias que tenho lido ultimamente. “Naufrágios” e “Antecipada Morte”, são, por exemplo, dois poemas belíssimos.
“Meditación en la tarde de Viento” é um poema dotado também de grande força inspiradora. Muito grata pela bela lembrança.
Cordialmente, Lygia Fagundes Telles. S. Paulo, 20-6-1951.”
Amigo do jurista e ex-ministro do Trabalho Almir Pazzianotto Pinto, dos escritores e poetas Mário Quintana, Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade, Lindolf Bell, Pablo Neruda, Lygia Fagundes Telles, entre outros, dos artistas Plínio Bernhardt, Paulo Osório Flores, Glauco Rodrigues, Di Cavalcanti, Aldemir Martins e tantas outras personalidades, Arapey conviveu com valorosas amizades de todas as profissões e convicções. Sempre preferiu a discrição, não fazia questão de maior projeção.
A obra do poeta Arapey,elogiada por Serafin J. Garcia, Carlos de Freitas, Péricles da Silva Pinheiro, Caio Porfírio Carneiro, Antônio Hohlfeldt e outros, dentre as diversas gemas da língua portuguesa, representa uma esmeralda.
Não gostaríamos que esta esmeralda fosse confundida com um fragmento de vidro verde, pois é um acervo comparável às grandes obras de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e tantas outras pedras preciosas da poesia latino-americana.