Os cursos de escrita, especialmente quando envolvem a palavra “criativa”, são os novos hospícios. Uma das coisas que se nota é que, toda vez que ligamos a televisão e um estudante enlouqueceu com uma metralhadora em algum campus dos Estados Unidos, é sempre um aluno de um desses cursos.
Hanif Kureishi, autor do roteiro de “Minha adorável lavanderia” e do romance “O buda do subúrbio”, estava atacado em sua palestra no Festival de Hay, matriz galesa da Flip – notícia completa no “Guardian”, em inglês. Professor de um dos cursos que criticou, na Kingston University, Kureishi deve saber o que diz. E diz o seguinte:
A fantasia é que todos os estudantes vão se tornar escritores de sucesso, e ninguém os desilude. Quando você usa a palavra “criativo” e a palavra “curso”, há algo de enganador nisso.
Os chutes de Kureishi não miraram apenas o pau da barraca das oficinas de ficção. Outros alvos foram a superficialidade da imprensa…
Vêm e tiram fotos das escrivaninhas dos escritores. Eles não vêm e tiram fotos das suas escrivaninhas, vêm? É como se o talento estivesse na escrivaninha.
…e sua própria vida, quando revelou o que pensa ao se sentar para escrever, a cada manhã:
Por que estou fazendo isso? Devo cometer suicídio?
E aí, meninos? Têm certeza de que querem ser colegas desse sujeito?
26 Comentários
“A fantasia é que todos os estudantes vão se tornar escritores de sucesso, e ninguém os desilude.”
Essa fantasia acomete 99% dos escritores publicados também. De resto, Hanif Kureishi deve cometer suicídio.
A propósito: Hanif Kureishi é um escritor de sucesso?
Sérgio, li isso outro dia e lembrei das epígrafes do todoprosa. Vem bem a propósito do assunto de hoje. Aí vai, em tradução caseira: “Coleridge era viciado em drogas. Poe era um alcoólatra. Marlowe foi morto por um homem que ele mesmo tentava esfaquear. Pope aceitou dinheiro para retirar o nome de uma mulher de uma sátira e em seguida escreveu outro texto em que ela ainda podia ser reconhecida. Chatterton se matou. Byron foi acusado de incesto. Você ainda quer ser escritor? E, se ainda quer, por quê?” Bennett Cerf (1898-1971, um dos fundadores da Random House)
Não sei se o Kureishi faz tanto sucesso assim, mas O BUDA DO SUBÚRBIO é engraçadíssimo, e INTIMIDADE é uma novela muito boa.
O texto de Bennet Cerf do comentário ali em cima foi retirado do blog http://www.artsjournal.com/rifftides , um ótimo blog sobre jazz e outras coisas (inclusive literatura), assinado pelo crítico e escritor (não necessariamente nesta ordem) Doug Ramsey.
Não conheço esse Kureishi nem vi Minha adorável lavandeira, mas acho que ele tocou no ponto certo. Lendo a matéria toda, o cara deu lá suas justificativas, plausíveis, para a existência dos cursos. Não fez um libelo contra as tais oficinas de criação, só disse que ninguém deve entrar nelas achando que vai sair escritor de sucesso. Deveria ser óbvio, mas como tem muita gente que, lá no fundo, acredita nisso, um aviso a mais sempre é válido.
“A fantasia é que todos os estudantes vão se tornar escritores de sucesso, e ninguém os desilude”
Mas esta é uma observação que poderia ser estendida para outros cursos: A imensa maioria dos alunos de um MBA de Gestão de Negócios não vai se tornar CEO, a maioria dos alunos dos cursos de empreendedorismo não se tornará um empresário bem-sucedido, etc …
(pensando bem, esta observação pode ser estendida a todos os cursos universitários: a maioria dos estudantes de engenharia não será um engenheiro de sucesso, assumindo que consiga um emprego).
A questão para mim é se os cursos de “escrita criativa” podem cumprir uma premissa mais básica: formar escritores.
Pode ser apenas a opinião de um leigo, e conservador, mas tais cursos me parecem uma grande enganação …
Harpia, não tinha pensado nisso. Realmente, a ilusão que vivem aprendizes de escritor matriculados numa faculdade não é tão diferente (quantitativamente sim, mas não em qualidade) da que existe em qualquer curso – bem sacado. Nesse sentido, a idéia de enganação pode ser estendida, em maior ou menor grau, para todos. O que não se diz jamais é que o curso pode ajudar, sim, mas só se o sujeito tiver uma certa combinação de talento, energia, persistência e sorte. Uma combinação que vai ser sempre meio rara.
O pior é que sim. Eu quero.
Uma vez um amigo me mandou o link de uma oficina literária pela internet. A apresentação do orientador era tão fabulosa que eu guardo o link até hoje: “Enquanto coordenador da oficina, estarei usando minha experiência como autor de literatura pra orientar vocês.” Amei!
Adendo: o Hanif Kureishi parece estar sempre esquentadinho nas palestras. Na Flip de 2003, houve até uma certa saia-justa entre ele e a Patrícia Melo, na primeira fila da platéia. Eu não lembro exatamente o que ela falou sobre sua própria experiência como escritora, mas ele rebateu na hora com algo como “escritor adora se fazer de coitado, dizer que trabalha muito”. Aí ela retrucou, e ele também. Foi divertido (bem, eu não sou exatamente fã dela…).
Sérgio, é o dilema de todos que comem risoto de cavaquinha ao limão siciliano, Não adianta oferecer cachorro-quente. À parte disso eu sempre me perguntei, como se ensina uma pessoa a ser criativa? Eu creio que se ensina alguém a utilizar certas técnicas, concordo que as palavras curso e criatividade são incompátiveis.
Não se preocupem: também existem, aos montes, atores frustrados, cantores frustrados, pintores frustrados, escultores etc., etc., etc.
“Uma das coisas que se notam”, não?
Um curso de escrita criativa (pra gente, oficina literária) com um mínimo de bom senso resulta em: 1) 90% dos participantes se tornam melhores leitores; 2) 10% dos participantes se tornam escritores mais consciente do ofício. Só que ser melhor escritor não significa, necessariamente, ser um escritor de sucesso.
O paradoxo é que o mercado está mais profissional, e, ao mesmo tempo, a procura por livros de ficção vem caindo ou não vem crescendo, sei lá…
Bernardo: não necessariamente ou mesmo não de preferência, dependendo da abordagem. Mas estou com preguiça de explicar agora.
Ricardo: para nós, prefiro oficina de ficção, como também está no texto. A tradução “curso de escrita criativa” deve-se ao fato de Kureishi desmembrar o nome e analisar suas partes. Além disso, ele está se referindo a algo que, com a possível exceção daquela iniciativa lá no Sul, não existe aqui: não oficininhas mas cursos regulares em nível universitário.
Isabel: não fui à Flip 2003 e acho que não soube dessa discussão. Gostei.
Chegando atrasado…
Harpia falou tudo. Qualquer profissão é assim. Essa mania de dizer que ser escritor é um dom, uma maldição, um contato imediato com as musas já deu o que tinha que dar. E o arquiteto é o quê? O médico? O farmacêutico? O carinha do curso de matemática… Só o escritor é um ser iluminado com um dom misterioso que não poderá jamais ser repassado? Talento é talento e ponto. Só que esse ponto vale para qualquer pessoa em qualquer profissão.
A única coisa que a literatura traz de bônus é a desculpa pronta para o escritor, que na pior das hipóteses pode dizer que é um incompreendido. E se vende muito dizer que é um escritor das massas e não dos críticos.
De resto, balela.
Bom, eu adoraria ser escritora porque realmente acho que é um dom mas, assumo que não o tenho, só que eu admiro mesmo quem tem este dom e não acho que se aprenda um dom num cursinho. Parabéns pelo blog, tá lindo!
Você tem razão, sérgio. Pensando melhor, eu misturei as coisas. Realmente, lá o negócio é mais sério, regular, em nível universitário. Acima de tudo, nos EUA e Inglaterra, onde as pessoas estudam para ser escritores profissionais. Aqui, o negócio é amador (no sentido do descompromisso – muitas vezes na desorganização), esporádico e raramente levado a sério. Aqui se estuda Letras para ser professor de portugês ou de literatura. Lá se estuda Literatura para ser escritor profissional. Correto?
acho que é apenas mais um dos sintomas de uma sociedade alienada e alienante.
o que significa de sucesso?… quem consegue escrever o que pensa e publica do jeito que quer (sem interferencias, quaisquer) ?
…ou quem vende tudo o que escreve? Nao importando o aspecto qualitativo de sua producao?
…quem tem material sendo citado na novela das oito…? Ou nos programas de auditorio…?
…ou nos consultórios….?
Ou , “sofisticacao intelectual”, nos exames vestibulares?
O sucesso acho que fica mais embaixo…
é fácil: quantos Pelés saíram das centenas de escolinhas de futebol que existem por aí? tá bem, Pelé é mio “intocável”. quantos Zicos? quantos Romários?
e todo mundo já sabe, mas não custa lembrar: sucesso (na acepção “popular”) não é sinônimo de talento. tem gente boa por aí que não faz sucesso, tem bomba que faz, tem gente boa que faz e bomba que não faz. se é que me entendem.
abraços a todos.
Só uma observação, o Ian McEwan se formou num desses cursos de creative writing.
Eu não acredito que um curso de escrita criativa forme escritores, escrever envolve mais que apenas a vontade de contar uma história. Pode até se afirmar que este ou aquele escritor fez um curso de escrita criativa em algum momento da vida, mas não foi o curso que o tornou um escrito, foi principalmente o talento (inato) e o esforço. Escrever pode ser algo terrivemente prazeirozo e frustrante, e escrever bem exige verdadeira perseverança. Alem do mais criatividade não se aprende, mas se desenvolve por meio de trabalho duro.
Dizer que alguem vai se tornar um novo beletrista porque fez um curso é acreditar em um unicornio pastanto o ibirapuera.
Complementando o que foi dito pelo André Gonçalves: Disseram para o sujeito que ele seria como o Pelé e ele foi apenas Maradona, resultado ficou um pó.
acredito que um universitario se formou em medicina por ter talento antes de qualquer outra coisa, se nao tivesse desmaiaria ao ver sangue, o talento faz arquitetos construirem verdadeiros monumentos, matematicos solucionarem equacoes inimaginaveis e tambem faz um alguem ser tornar um escritor que consegue com palavras comuns construir historias que nos fazem sonhar, chorar, vibrar a cada frase, pois se nao fosse o talento o enteresse em escrever duraria apenas até a primeira virgula.
escritor constroi, atrapalha as palvras e daí nasce a estória