Quem acompanha este blog começou a ouvir falar no ano passado do projeto de romance que o grande Vladimir Nabokov deixou rascunhado em 138 fichas antes de morrer, em 1977 – e que, de acordo com seu desejo, deveria ter virado cinza há muito tempo. Como se sabe, seu filho Dmitri descumpriu a ordem paterna.
“O original de Laura”, sobre um escritor que decide morrer pelo processo inaudito de “autodissolução”, começando pelos dedos dos pés, ganhou o subtítulo “Morrer é divertido” e começa agora a ser resenhado pelo mundo. De modo geral, não tem sobrado ficha sobre ficha, como neste texto (em inglês) de Aleksandar Hemon para a revista eletrônica “Slate”.
Seria ridículo, claro, culpar o falecido pela venda de seu espólio. Nabokov não se limitou a ser inequívoco em seu desejo de que as fichas manuscritas fossem destruídas. Também era intransigentemente claro em seus pontos de vista sobre a arqueologia de manuscritos inacabados ou de rascunhos que precedessem versões finais e publicadas – e também sobre o valor absoluto de uma obra de arte pronta. Na introdução à sua tradução de “Eugene Onegin”, escreveu: “Um artista deve destruir sem dó seus manuscritos após a publicação, para evitar que eles induzam mediocridades acadêmicas a pensar erroneamente que é possível destrinchar os mistérios do gênio por meio do estudo de versões abortadas. Na arte, a intenção e os planos não são nada; só o resultado conta”.
Pode-se dizer com segurança que o que acaba de ser publicado como um romance intitulado “O original de Laura (Morrer é divertido)” não é um resultado que Nabokov desejasse ou fosse aplaudir. Não apenas contraria seu desejo expresso, mas também sua própria sensibilidade estética e sua vida inteira como artista. Doente demais para destruir as fichas que continham “O original de Laura”, o mestre está agora exposto eternamente ao mundo velhaco e ganancioso de acadêmicos, editores e todas as demais mediocridades embaralhadoras de fichas, excitadas pela visão de um gênio indefeso. É improvável que morrer tenha sido tão divertido assim, mas certamente ler “O original de Laura” é devastadoramente triste.
26 Comentários
Muito boa notícia, quero conhecer essa Laura.
E Sérgio, vi que você foi indicado ao prêmio Quem de melhor escritor do ano. Não ia avisar os leitores do Todoprosa? Para quem quiser votar, o caminho é esse:
http://revistaquem.globo.com/Revista/Quem/0,,EMI104121-9531,00-PREMIO+QUEM+VOCE+ESCOLHE+OS+MELHORES+DO+ANO.html
Pois é, Guilherme, fiquei contente com essa indicação, que foi feita por um júri sério. Enfrentar o Chico Buarque no voto popular vai ser dureza, mas quem sabe a galera todoprosaica dá uma força. Um abraço.
Esse todoprosaico já votou. Depois você me manda o livro Elza, que combinamos pelo voto, Sérgio.
Que divertido o site da revista Quem.
Nele descobri uma entidade misteriosa, chamada “o júri” e, às vezes, os “jurados”, que profere, como não poderia deixar de ser, juízos sibilinos sobre os contendores.
Pelo “júri”, ficamos sabendo, por exemplo, que o Chico Buarque, cujo Leite Derramado emula Machado de Assis, “exibe uma escrita rebuscada”. Rebuscada? Taí um adjetivo que jamais pensei que alguém associasse a textos escritos à moda machadiana. Se Chico resolvesse reescrever Os Sertões, tenho até medo de imaginar o adjetivo que o “júri” empregaria…
E não é que o Décio Pignatari está ainda vivo e produzindo? O “júri” é perfeito na escolha das palavras: seu livro tem “inventividade” (o Décio precisa ler imediatamente o livro da Glória Kalil: o experimentalismo, que já foi a tendência do verão, deixou de ser moda há várias estações e hoje é cafonérrimo) e “dialoga” com a Alice no País das Maravilhas (salvo engano, pois não li todas as obras da produtiva Glória Kalil , a metalinguagem não é chic).
Gosto muito da frase que o júri dedica ao livro de Beatriz Bracher: o livro “encontra espaço para o intimismo”. Como o aluguel está nas alturas, sabemos que é importantíssimo dominar a técnica de encontrar espaços. A questão é saber se o “intimismo” foi colocado na área de serviço ou ficou enfiado num canto apertado daquele quarto de empregada, onde só é possível, maravilha da arquitetura moderna, dormir em pé.
Meu único receio é que a prosa do Fabrício Corsaletti, que o júri diz ser “cheia de iluminações poéticas”, não tenha sido afetada com o apagão desta semana.
Ah, sim: parabéns, Sérgio, pela indicação. Desejo-lhe boa sorte!
Vale
Lástima… Lá no além o Nabokov deve estar muito contrariado. :- /
Você escreve melhor que o Chico Buarque, mas vai perder.
No Brasil, o Buarque tem mais moral que Cristo. Culpa da classe média. Como letrista, sou mais Vladique Soriano. Nabokov era um maníaco. Ô, velho chato, por ser gênio, tudo sempre teve quer do seu jeito. A vida é mesmo irônica… f*da-se.
Caramba… Não foi um tal Nabokov que escreveu um tal Fogo Pálido no qual um sujeito se apropria lunaticamente de um punhado de fichas de um autor falecido? Que loucura, isso.
Pois é, Elton. O NYT também destaca isso.
No mais, moçada, vamos derrotar o Chico Buarque! (aqui entraria aquele emoticon que sorri e pisca, se eu usasse emoticon).
Abraços a todos.
Sérgio, você sabe quem vai editar no Brasil? Será que há previsão de lançamento?
Já dei meu voto lá no prêmio.
Ao morto as homenagens cabiveis. Aos “vivos” (muito vivos) as mentiras da maioria.
John, Nabokov é da Companhia das Letras. Não sei de planos de lançar Laura aqui, mas é provável que role logo.
Parabéns, Sérgio, pela indicação. Acabei de ler “Leite Derramado” e o livro é bom. Não vou puxar teu saco só porque simpatizei com você e seu blog, mas acho que você vai precisar de um bom álibi para sair dessa como vencedor. Acho que há tempo para tudo, até para vencer uma dessas… Afinal, tem tantas outras premiações!!
nossa. triste mesmo. já vou votar lá, tá? até porque concordo.
Sérgio, devidamente votado!
Gurizada: o livro do Nabokov sai pela Objetiva, olhaí o link:
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=742
Mas lançar um livro desses é uma sacanagem com o velho!
Abraços.
Sérgio Rodrigues,
Que negócio é esse de ficar chamando gente do mesmo oficio nestes termos: “… o grande Vladimir…”?
Rapaz, esse tipo de abordagem revela uma coisa: você não é páreo nem para a subliteratura do chatérrimo CB .
Fui…
CB é um puta escritor, SR é um puta escritor e VN é um puta escritor. Arruda, cê não tá com nada, meu! Já foi tarde!
Por que ele mesmo não queimou as fichas pra garantir que não fosse publicado o livro? Com Kafka, que passou por situação igual, foi por que ele estava no hospital com tuberculose.
Uma hipótese (meio óbvia), Teresa: Porque achou que não ia morrer…
Parabéns,Sergio, pela indicação… O autor de Lolita é ótimo… Prefiro o Chico fazendo canções…
vá…vá….vá…!!!!!
Não li o livro Leite Derramado de Chico Buarque, e é muito desagradável falar de algo que só ouvimos falar. Bem, pelo menos ouvi o próprio autor falar sobre seu livro na Flip. Vi uma postura simples, humilde, do Chico ao falar sobre seu livro. Um personagem quase a morte relembra histõrias antigas… e me parece que há repetiçoes, idas e vindas… denuncias de um momento acabado na história…]
Bem, mas o que me chamou a atenção foi uma fala descontraída do chico, quando disse que o personagem o perseguia… atribuindo ao personagem um tombo onde quebrou a perna.
Bem, fiquei a imaginar, por tudo o que ele falou ali…
Se fosse eu que tivesse feito o livro… hum…. teria que me mudar para o céu, seria insurpotàvel viver aqui..rsrsrs
QUanto ao S~ergio, gostaria muito de ler Laura e vou providenciar.
Pelas suas postagens, meu voto é seu. Gosto das letras da cançôes de Chico, gosto das canções… gosto muito dele falando e cantando… mas pelo que ele mesmo falou do livro, não me atraiu para ir em busca da leitura…
Ai, desculpa-me Sergio, não é Laura, É Elza… (mico meu…. de onde tirei esta Laura… se fosse Olga… tudo bem… mas …
Bem, gostaria de ler e vou em busca de Elza, a garota do livro de Sergio…( para não esquecer… rsrs)
Nabokov, como confirma o Karan, agora sai pela Objetiva que deve publicar nos próximos anos sua obra completa, incluindo inéditos (sim, Elton, Nabokov relata em Pale Fire parte de seu processo criativo).
Já The original of Laura (ou TOOL) é mais importante em termos de work-in-progress (e, infelizmente, para sempre o será).
É um romance para ‘montar’, tanto que nos EUA (talvez no Brasil também), o livro vem com fichas destacáveis ára poderem ser rearrumadas ao gosto do leitor, o que não é muito diferente da forma como Nabokov afirmava compor seus romances.
Nas palavras de Brian Boyd, principal biógrafo de Nabokov, com quem participei de um evento recente na ABL (no blog do Prosa & Verso, tem uma entrevista que fiz com ele), ‘TOOL traz as jogadas iniciais do que poderia ter sido um grande jogo de xadrez’.
Lembro que Boyd foi um dos primeiros a ver o romance (fora Vera, Dmitri e o próprio Vladimir) e participará na próxima semana de uma leitura pública do romance em NY ao lado de Martin Amis, outro grande fã de Nabokov.
Finalizando, acrescento que os verdadeiros ‘originais de Laura’, ou seja, os 138 index cards manuscritos, citados pelo Sergio neste post, irão a leilão em dezembro. Quem quiser arriscar um lance basta ir no site da Christie’s ( http://ow.ly/Chf4 ).
Abs,
C. S. Soares
PS: Em relação ao concurso da ‘Quem’, Sérgio, meu voto é seu. Boa sorte!
Devidamente votado! Em ti, claro.
Gostei da citação do que o Nabokov escreveu sobre a destruição dos manuscritos. Nunca simpatizei com essa moda da “crítica genética”, mesmo achando que abordar os manuscritos pode talvez dar resultados interessantes em alguns poucos casos.