O jornalista Robert McCrum, que assumiu o cargo de editor de literatura do jornal inglês “Observer” em 1996 e acaba de deixá-lo, escreveu um artigo (acesso livre, em inglês) em que tenta explicar como e por que o mundo literário “virou do avesso” ao longo desses anos:
Tudo isso foi alimentado por uma mistura explosiva de comércio global e tecnologia. Em termos simples, pode-se dizer que Amazon mais Microsoft é igual a uma nova estratosfera literária. Dois fatores complicam essa equação. Primeiro, apesar da consistente evolução da tipografia para a digitalização, o livro impresso conseguiu se manter firme frente às opções eletrônicas. É como se, depois da decolagem, a missão Apollo se revelasse não uma nave espacial, mas um Spitfire.
Em segundo lugar, continua sendo um paradoxo da rede mundial de computadores que, se esta foi a década em que milhões encontraram uma voz por meio da internet, apenas uma minoria descobriu uma platéia. A auto-expressão se democratizou, mas livros e escritores continuam enfrentando a mesma velha batalha ancestral para conquistar leitores. Como chegam lá ainda é um mistério, mas na alquimia do sucesso literário o “boca-a-boca” permanece essencial.
Em seguida vem uma lista de dez tópicos – “capítulos”, segundo o autor – que tentam resumir a história das transformações que sacudiram o mundo das letras nos últimos anos: “Sangue novo: Zadie Smith”, “Amazon”, “JK Rowling”, “Festivais”, “Prêmios”, “Ian McEwan”, “Blogs versus resenhas” são alguns deles.
Tudo muito anglófilo, como se vê. Pudera: os abalos tiveram como epicentro indiscutível a língua de Jeff Bezos. Não é à toa que McCrum termina o texto congratulando sua turma, num tom irritante mas compreensível: “Ser um escritor de língua inglesa hoje é ser um dos mais afortunados entre os seres vivos”. Guardadíssimas as proporções, porém, boa parte dos tópicos encontra tradução para o ambiente brasileiro.
O artigo não traz nenhuma novidade dramática sobre o assunto, mas produz um apanhado interessante. Seu maior mérito é o olhar sensato, inegavelmente otimista, mas sem perder um grão de ceticismo. McCrum não é um apóstolo do cheiro de tinta, cigarro e bebida forte (nas palavras dele) da literatura pré-1996, nem um fanático da “revolução digital”. Acaba nos ajudando a entender como aqui, no mundo histórico de verdade, as grandes eras e suas idéias sempre se misturam nas bordas, promíscuas, velho e novo formando combinações imprevisíveis – como o leite e o sangue do leiteiro confundido com um assaltante no poema de Drummond.
21 Comentários
A analogia com a Apollo é de lascar. Mania, eu acho, de achar que uma coisa só pode se instalar em detrimento ou no lugar de outra. Na minha opinião, livro impresso não briga com Internet e vice-versa. Sequer disputam o mesmo espaço.
E para lembrar que hoje, no Roda Viva, vai ser entrevistado o jornalista MIGUEL SOUSA TAVARES.
Artigo interessante, boa dica, Sérgio.
Uma mudança básica, mas essencial é que hoje é muito fácil saber pela rede quais livros um autor contemporâneo lançou e ter uma idéia da sua recepção. Isso soa banal, mas antes era preciso torcer para que um jornal ou revista fizesse um perfil completo.
No Brasil, temos que lembrar da queda do imposto de importação do livro (foi em 2003, não?), a Amazon e a Livraria Cultura vendo importados pelo site, e, agora nos últimos anos, o dólar barato. Tudo isso ajudou – mas não explica completamente – outra transformação: parece que nunca se falou tanto de literatura contemporânea americana.
Comparado com 1996, parece haver também mais editoras – Cosac, Agir, Objetiva/Alfaguarra – brigando pelo espaço que era ocupado – na verdade, praticamente criado aqui – pela Companhia das Letras
Mas algo parece incontornável: simplesmente não há tempo para ler toda essa gente.
Vcs acham que devo ir ao Brasil em Novembro???
Também não dá para esquecer: livros de bolso da L&PM.
Caro Marco, para ajudar no inventário de mudanças no ambiente local, lembro a Flip, o Portugal Telecom (promessa de um prêmio de real peso cultural) e a facilidade de achar online os livros que todas as livrarias deixaram de ter há anos no estoque – esta é uma mudança espetacular, porque devolve à literatura aquele tempo de maturação que o rodízio maluco nas livrarias lhe roubou.
Em resposta a Madonna.
Venha simmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
Quero q vc venha, será muito bom.
ficarei na fila com um mês de antecedência tentando achar ingresso. venha madonaaaaaaaaaaaaa
Mundo globalizado. Acesso rápido. Escolha e público foco….
O mundo tá de cabeça pra baixo….
Do TK-3000 ao XO e os caiçaras « : SOL FORTE LÁ FORA :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Ainda acho que todas essas discussões e “apanhados gerais”, como o ‘thriller in ten chapters’ de McCrum, se confortam (tenho minhas dúvidas), infelizmente não nos respondem às principais questões.
Há poucos dias, escrevendo sobre a história do ‘@’, ou de como ele foi parar nos endereços de e-mail, e como estes revolucionaram a comunicação dos seres humanos seja no âmbito profissional ou pessoal, me perguntei sobre se alguém ainda veria sentido no envio de cartas em papel.
Sabemos que elas não acabaram, e vão demorar muito para acabar. Mas, em relação aos livros, me parece, a resistência tem sido muito grande em adotarmos uma mentalidade mais “revolucionária”, um novo paradigma.
Literatura, como conhecemos, se “adaptada” ao novo meio, não deixará de ser a mesma literatura de sempre em um meio novo.
Ingenuidade nossa (e de McCrum) achar que “fazer a mesma literatura de sempre” poderia representar algo diferente trocando-se o “dispositivo de armazenamento” em papel por telas.
A internet é antes de tudo um meio de comunicação e multimidia.
Apropriada para a emissão e recepção de qq tipo de msg, seja em que formato digital for. Texto, imagem, áudio, vídeo, escolha.
O workflow das idéias, da imaginação do escritor à imaginação do leitor, está mudado para sempre. As estruturas de poder, de certa forma, mais dia menos dia, tb deverão ser impactadas.
A Microsoft (que incluive, por estes dias, decretou o fim do seu projeto Live Books Search) não será uma editora, mas os editores precisarão entender de tecnologia, afinal todos nós que vivemos nesse raiar da Sociedade da Informação, cada vez mais, seremos exigidos e desafiados como “knowledge workers”.
Os escritores também, claro.
Mas isso, como li recentemente de Rudyard Kipling (a tecnologia, não é de hoje, seduz e angustia), não significará nada, nada mesmo, de novo.
Quer dizer, pelo menos enquanto insistirmos em pensar da mesma (e velha) maneira.
Coitado dese leitero confudido com un asaltante. Naum vi esa notisia en outro lugar.
C.S. Soares,
Eu tenho me perguntado a mesma coisa a respeito das cartas que todo mundo sempre trocou entre si. Acho que a Internet disputa mais esse espaço do que o da literatura propriamente dita. A informação imediata é novidade; a formação da pessoa é outra coisa, maior, que inclui o imediatismo da informação, mas não é dependente dele.
O.T. rapidinho: adorei a entrevista de Miguel Souza Tavares. Não li nada dele, também não sei se você já fez algum comentário aqui. Mas o cara é muito interessante.
“Ser um escritor de língua inglesa hoje é ser um dos mais afortunados entre os seres vivos.” Tô com ele; mas acredito também que se houvesse um Ian McEwan entre nós, com aquela prosa extraordinária de Reparação, ele seria traduzido e ganharia quase o mesmo prestígio do original inglês.
O problema maior, Shilei, é que sempre se perguntou – e agora, penso, inevitavelmente teremos que responder – o que, afinal de contas, é Literatura?
(*) Shirley, claro.
(*) melhor ainda, Shirlei 🙂
Obrigada, C.S. Soares.
E eu não sou louca de arriscar um “o que é” para a literatura.
Felipe,
Acho essa sua suposição meio fantasiosa. Ian McEwan, se escrevesse em português, seria tão célebre mundo afora quanto Machado de Assis e Eça de Queirós. Agora, se ele fosse um escritor afegão e escrevesse “Reparação em Cabul” ou a “Reparação de Pipas”, não tenha dúvidas que se tornaria um best-seller mundial, com vendas superiores ao do Ian McEwan inglês.
Rafael, “Reparação de pipas” é sensacional. O único risco seria acabar na prateleira do faça-você-mesmo.
Que apareça um Ian McEwan entre nós então, Rafael! Porque entre a minha crença e a sua certeza… Mas ele há de aparecer.