Em Viagem ao redor da garrafa (Rocco, tradução de Hugo Langone, 320 páginas, R$ 44,50), a jornalista inglesa Olivia Laing promove uma curiosa – e nem sempre bem-sucedida – mistura de gêneros. Ensaio biográfico, crítica literária, memórias e relatos de viagem são jogados na coqueteleira para tentar revelar “por que os escritores bebem e que efeito essa mistura de bebidas teve sobre o corpo da própria literatura”.
Se o objetivo parece por um lado ambicioso demais e por outro limitado em seu recorte – afinal, escritores bebem porque os seres humanos bebem –, Laing logo dobra a aposta da liberdade autoral ao reduzir a apenas seis os alcoólatras em que está interessada. Todos homens, todos americanos e grandes autores do século XX: os ficcionistas Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, John Cheever e Raymond Carver dividem o balcão do bar com o dramaturgo Tennessee Williams e o poeta John Berryman.
A lista não se destaca pela originalidade e chega a flertar com o clichê ao exibir em posição de destaque a dupla de aliados e rivais Hemingway-Fitzgerald, sobre a qual seria justo dizer que já se escreveu demais. Ocorre que, se houver um único rótulo apto a nomear o coquetel que a autora promove, será aquele que em sua língua chamam personal essay. Em vez de buscar informações de primeira mão ou empreender análises de fôlego, Olivia Laing esvoaça de modo impressionista em torno de seus personagens, encontrando afinidades declaradas ou coincidências fortuitas em suas trajetórias e arriscando paralelos entre dados biográficos e criações artísticas.
O tema tem relevância em sua vida, é claro: numa das inúmeras vezes em que a primeira pessoa rouba a cena, somos informados de que a autora cresceu numa casa assombrada pela imensa capacidade destrutiva de um alcoólatra em parafuso – no caso, a companheira lésbica de sua mãe.
As partes do ensaísmo biográfico e da crítica literária são o que Viagem ao redor da garrafa tem de melhor. Embora tal qualidade apareça aqui e ali embaçada por deslizes de tradução e revisão, Laing exibe talento para construir frases. O garimpo de momentos de grandeza (poucos) e de vileza que promove nas histórias de escritores brilhantes é revelador. “Dei um basta. Nada de álcool. Só cerveja”, disse Fitzgerald no auge da negação, tratando uma bebida fermentada como refrigerante.
Em momento um pouco mais consciente, o monumental contista John Cheever pondera em seu diário que a literatura “me deu dinheiro e fama, porém suspeito de que possa ter alguma relação com meu consumo de bebida. A excitação do álcool e a excitação da fantasia são muito semelhantes”. Somam-se a essas pepitas pequenas sacadas perspicazes de leitura detida, em especial de trechos de Williams, Cheever e Carver. Os dois últimos, aliás, são os que conseguiram passar sóbrios seus anos finais de vida. Williams, como Fitzgerald, morreu de beber. Hemingway e Berryman se suicidaram.
Quando é um livro de memórias e um diário de viagem, Viagem ao redor da garrafa é menos feliz. Desde o início fica claro para o leitor, com mapa e tudo, que ele foi projetado como uma viagem literal pelos Estados Unidos, começando em Nova York e terminando na distante Port Angeles, no frio estado de Washington, depois de passar pelo clima ensolarado de Key West e Nova Orleans. Trata-se de um roteiro concebido para reconstituir os passos daqueles seis escritores alcoólatras, visitar as casas e hotéis onde eles moraram e tomar um drinque nos bares onde eles beberam.
Isso não representa um perigo para a autora, que não parece ter propensão ao alcoolismo, mas expõe o leitor a muitas páginas descritivas de escassa relevância. E quando, na última parada do percurso, em Port Angeles, Laing recebe a visita da mãe, o acerto de contas com a própria infância e o final redentor no balsâmico cenário de águas em que Raymond Carver se curou da bebedeira soam mais falsos que uísque paraguaio.
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Resenha publicada na edição da revista VEJA que está nas bancas.
7 Comentários
Vou rir do arremate o dia inteiro : )
Poxa, que decepção. À primeira vista, me pareceu de fato que se tratava de uma obra interessante, algo na linha daquelas ótimas coletâneas de ensaios que o Alberto Manguel volta e meia publica (“No bosque do espelho”, “Os livros e os dias” etc.). Pelo jeito, também no âmbito da escrita, a melhor resposta à pergunta que intitula a matéria continuará sendo a do velho Jânio Quadros: “Bebo porque é líquido; se sólido fosse, comê-lo-ia.” Uma frase que, aliás, consegue soar mais barrocamente literária do que muita justificativa de autor beberrão por aí…
Que bom te ler. Já passei da metade do livro. Comecei a ler com muito entusiasmo mas, pouco a pouco, o entusiasmo diminuiu, principalmente pelo tradução, que considero ruim. E pelas memórias da autora. Apesar de amar Fitzgerald e Hemingway, ou talvez por isso mesmo, leio novamente o que já cansei de saber, de estudar, de pesquisar em seus próprios livros. Mas gostei de T. Williams, o maravilhoso John Cheever e ainda vou chegar no poeta Carver. Soube que está sendo lançado um novo livro de Laing. Fiquei com medo.
“Embora tal qualidade apareça aqui e ali embaçada por deslizes de tradução e revisão”
Poderias dar exemplos de tais deslizes?
Pois não, Diego. Além de um estilo frequentemente pedregoso e convoluto, há um grande número de vocábulos preciosistas que parecem tirados diretamente do dicionário inglês-português, mas que ninguém mais usa (souto por bosque, achaparrado por atarracado, sículo-americano por siciliano-americano ou americano de origem siciliana etc.) e ainda o emprego francamente equivocado de certas palavras (“defumado” por “fuliginoso”, por exemplo). Muitas vezes ocorre tudo isso junto, como no seguinte trecho da página 80, que dá a impressão incômoda de que o próprio tradutor não entendeu muito bem o que o autor queria dizer: “…montanhas de folhelhos, agregados, depósitos de chapas onduladas com painéis queimados e defumados”. Não li o livro todo no original, mas li o suficiente para saber que a prosa de Laing, se pode ser meio afetada e pretensiosa em certos momentos, é sempre bem acabada e nada tem de obscura.
Obrigado, Sérgio. Enriqueceste muito a crítica com esses exemplos. Mas fiquei pensando, será que o estilo ” pedregoso e convoluto” não está presente também no original? Se for o caso, aí não há tradutor que salve.
Ah, a única palavra que conhecia com dois “lh” era molhelha.
Mas isso eu já respondi, Diego. A autora escreve bem direito.