E o Brasil finalmente acerta o passo com o escritor catalão Enrique Vila-Matas. O lançamento do romance “Dublinesca” (Cosac Naify, tradução de José Rubens Siqueira, R$ 55,00), hoje à noite, em São Paulo, com a presença do autor, marca o momento em que sua obra tão prolífica quanto festejada passa a chegar aos leitores brasileiros em tempo real ou quase isso: o livro saiu ano passado na Espanha e ainda nem está disponível em inglês. É verdade que Vila-Matas, o anti-Bartleby por excelência, já enfileirou outros dois títulos (recapitulando escritos antigos) desde então, mas sobre isso, tradução simultânea à parte, não há nada que se possa fazer.
É a primeira vez que a defasagem entre lançamento original e edição brasileira fica tão curta desde que, em julho de 2004, com “A viagem vertical” (de 1999), a mesma Cosac Naify começou a introduzir os leitores brasileiros à obra daquele que é um dos principais autores da literatura contemporânea e talvez o mais desavergonhadamente metaliterário – de uma metalinguagem lúdica que é o oposto da pompa e da sisudez – da história. Dois meses depois da publicação de “História abreviada da literatura portátil” (tradução de Júlio Pimentel Pinto, R$ 39,00), o mais antigo desse lote (lançado em 1985), fecha-se com o oitavo livro brasileiro de Vila-Matas um painel para lá de representativo de seu estilo.
“Dublinesca” é, de acordo com a sinopse, um romance centrado no personagem fictício de um escritor em crise que, guiado pelo amor a James Joyce, vai a Dublin para celebrar o velório da era de Gutenberg e o nascimento da era digital. Recombina mais uma vez, portanto, os ingredientes principais do banquete de Vila-Matas. Aos 63 anos, ele conseguiu se plantar de forma tão deliberada e firme numa zona de múltiplas fronteiras esfumadas – entre a narrativa e o ensaio, a ficção e a memória, a originalidade e a glosa, a escrita e o silêncio, o livro e o pós-livro – que parece ter tomado posse dela. Tornou-se um falso aliado e o maior inimigo de quem anda apregoando por aí o esgotamento artístico da literatura.
É justamente da crise da letra que sua obra se alimenta desde “História abreviada da literatura portátil”, uma fantasia desvairada em tom de ensaio que reúne uma penca de nomes reais do modernismo e outros tantos fictícios numa sociedade secreta, a dos shandys, dedicada à “exaltação espetacular daquilo que aparece e desaparece com a arrogante velocidade do relâmpago da insolência”, e “cuja principal característica era a de conspirar apenas por conspirar”. O livro é uma engenhosa história enviesada das vanguardas dos anos 1920 ao mesmo tempo que – como me ocorreu em certo momento da leitura, chegando perto de comprometê-la – lembra a atmosfera dos desenhos animados de Hanna-Barbera em sua fase de decadência, a partir do fim dos anos 1970.
Quando o estúdio fundado em 1957 por William Hanna e Joseph Barbera começou a dar sinais de esgotamento criativo, passou a lançar desenhos animados que juntavam astros de diferentes procedências na mesma história carnavalizada: os Flintstones encontravam os Jetsons, Scooby-Doo e Zé Colmeia contracenavam com Tutu Barão e o Urso do Cabelo Duro, coisas assim. A reunião promovida por Vila-Matas – não apenas intelectual, mas física – de Marcel Duchamp, Scott Fitzgerald, Man Ray, Tristan Tzara, Walter Benjamin, Salvador Dalí, Robert Walser, César Vallejo, Louis-Ferdinand Céline e Georgia O’Keefe tem muito a ver com essa autofagia típica dos momentos de decadência. Há algo de ridículo e desesperado ali. Trata-se de uma alegre celebração, claro: “Veja, temos um passado!” Paradoxalmente, é também o sombrio reconhecimento de uma falência: “Teremos um futuro?”
Em livros posteriores, como “Bartleby e companhia” e “O mal de Montano”, Vila-Matas soube evitar o risco desse paralelo pouco lisonjeiro, encontrando formas de reunir de modo mais simbólico e menos literal os escritores que habitam suas obsessões. O desespero, porém, continua lá, e isso talvez ocorra porque não pertence propriamente a Vila-Matas, mas à literatura em si. Precária, absurda, condenada à morte, ela se alimenta de si mesma para se reinventar em busca de salvação. Só que, ao contrário de H-B, emerge desse mergulho na autocelebração de forma gloriosa, engraçada, perspicaz, deliciosa de ler – como provam os livros que estão ali ao alcance dos olhos, encenando todo esse drama. Mérito da alquimia do autor? Tributo ao poder de regeneração da própria literatura? Seja como for, é quando os corvos do “nunca mais”, que em algum momento devem ter imaginado que Vila-Matas estava do lado deles, quebram a cara.
2 Comentários
Nossa, que aproximação besta. Frouxa.
Texto emocionante, Sérgio. (Como são, para mim, os livros de Vila-Matas.) Bjs