Contudo, o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, que morreu esta madrugada no Rio de Janeiro, de embolia pulmonar, aos 73 anos, deixa uma obra-prima incontornável da literatura-brasileira: o romance “Viva o povo brasileiro”, tijolo de 673 páginas lançado em 1984. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1993 e vencedor do Prêmio Camões em 2008, Ubaldo era “imortal” apenas no título honorífico. Seu principal romance – que tem um começo famoso, com a conjunção adversativa “contudo” introduzindo a frase de abertura, como neste artigo – é imortal literalmente.
Épico da nacionalidade, com sua narrativa espalhada por quatro séculos de história do Brasil e amarrada com o fio mítico e lírico, mas também cômico e irreverente, da reencarnação dos personagens segundo a compreendem as religiões afro-brasileiras, “Viva o povo…” é provavelmente a última – e brilhante – tentativa feita por nossa literatura de dar conta do país como um todo, respondendo artisticamente à pergunta que instigou os grandes intérpretes do Brasil no século XX: o que vem a ser este país enorme, ao mesmo tempo fascinante e infantiloide, generoso e cruel? Foi o último relance que tivemos da imagem inteira. Depois disso veio a contemporaneidade, com o estilhaçamento das referências em mil cacos.
Nascido na ilha de Itaparica, que sempre ocupou lugar de destaque em sua ficção e suas crônicas jornalísticas, João Ubaldo não deixa obra extensa. A lista de seus outros romances inclui títulos como “O sorriso do lagarto”, o sucesso de público (pelo tema libertino) “A casa dos budas ditosos” e, principalmente, “Sargento Getúlio”, livro de 1971 que o projetou nacionalmente e lhe valeu comparações com Guimarães Rosa – rechaçadas pelo escritor baiano, que dizia nunca ter conseguido ler o mineiro. “Nossos santos não se cruzam”, declarou em sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2011 (leia mais aqui). Na mesma ocasião, disse que sua motivação ao escrever “Viva o povo…” era apenas “fazer um livro grosso”.
A proeminência do “livro grosso” em sua obra é amplamente reconhecida. Em abril de 2007, este blog conduziu uma enquete com escritores, críticos e editores brasileiros para eleger o melhor/mais importante livro de nossa ficção nos (então) últimos 25 anos – ou seja, desde 1982. Deu o romance de Ubaldo na cabeça. “Dois irmãos”, de Milton Hatoum, e “Quase memória”, de Carlos Heitor Cony, ficaram empatados em segundo lugar. Leia mais sobre a enquete e seu vencedor aqui e aqui.
Concordo com o crítico Wilson Martins quando ele diz que, em sua obra-prima, Ubaldo “propõe uma visão ideológica da nossa história, estruturada no populismo e no nacionalismo (valores para ele indistinguíveis e intercambiáveis)”. Tais traços o aproximam de outro gigante baiano, Jorge Amado, seu mestre evidente e declarado. Mas é preciso reconhecer que, pelo menos no caso desse livro, o discípulo foi mais longe que o professor.
“Viva o povo…” é Jorge Amado sem a ingenuidade, com o maniqueísmo estrutural de povo bom x elite ruim servindo de pretexto para um festim literário conduzido com volúpia narrativa digna de Pantagruel. A genial descrição de uma batalha da Guerra do Paraguai à moda homérica (leia um trecho aqui), em que orixás tomam o lugar dos deuses gregos, dá uma boa ideia da alta voltagem atingida pela travessura e está entre as maiores páginas da literatura brasileira em todos os tempos.
Agora – numa imitação do que o autor escreveu sobre o fim de um valoroso soldado baiano naquela guerra – a morte lhe toldou os olhos com seu véu pardo e lhe aspirou a alma pela boca, boca que nunca mais emitirá seu timbre grave imitando Dorival Caymmi em canções meio desafinadas, nem nunca mais contará das belezas de Itaparica, onde os mimos-do-céu florescem e cantam mais os passarinhos.
Viva João Ubaldo Ribeiro!
21 Comentários
Um dos maiores autores deste país.
Que pena…..morreu sem ver o Brasil que ele sonhava….
Será muito dificil me ver privado das crônicais dominicais do genial
baiano minha leitura obrigatória das manhães de domingo. Ainda bem que sua obra continuará para sempre na minha memória e, acredito, na de
muitos brasileiros pois ela é imortal como êle próprio.
Como entender? Os bons vão embora mais cedo…Ficamos sem ele.Atualmente, invejo quem se vai. Fica livre do que este mundo está se tornando a passos largos.Saudade.
São Paulo, 18 de julho de 2.014
Em um país tão miserável como o nosso, a perda de um talento como João Ubaldo Ribeiro é simplesmente catastrófica! A cultura nacional tão vilipendiada nos últimos trinta anos acaba de receber outro golpe duríssimo com o falecimento de João Ubaldo. Fará muita falta.
Tive a sorte de conhecer, falar, trocar umas palavras com o João.
Leblon, em um balcão de um bar bem simples, que época!!
Depois, por coincidencia, acabava de ler o “Sorriso do Lagarto”, mais um papo rápido. Eu estava meio de pileque e vi o Homem… João, quanto tempo, ele me olhou, não me reconheceu, óbvio, mas abriu um puta sorriso.
Falei, tomei um cowboy e pensei em vc.
Resposta, eu parei.
Porque?
Tive engulho e parei. (SIMPLES, né?)
Assim era o cara.
Eu amei a maneira desse cara, vou ao RJ mes q vem, vou ao Leblon e vou beber um cauboy, que João me proteja.
Como é bom saber que você, João Ubaldo Ribeiro esteve conosco, nos fez sorrir!
… ” O segredo da existência humana reside não só em viver mas também em saber para que se vive”.
( Dostoievski).
Paz!
Contudo, imperdoável. Cedo demais.
A Bahia ainda lá?
Perdemos Caymmi, Amado e hoje Ubaldo, todos fundamentais na criação da identidade do nosso povo, a “Terra da Felicidade”, “Sorria você está na Bahia,” .
A Bahia da alegria, popular, do candomblé, da boa malandragem, da capoeira, do molejo, das mulatas, da boa preguiça… O sentimento de querer pertencer ao mundo todo, nos fez perder nossas próprias raízes, onde estão os novos retratistas da cultura popular? Difícil aceitar, mas acredito que não há o que retratar, a Bahia hoje é como qualquer lugar.
Eu estou muito triste com a morte do Ubaldo. Muito triste. Ele era uma pessoa inteligente e talentosa, coisa que faz falta num país como o nosso. Está difícil hoje. Estou mesmo triste.
Não exagero: estou triste com sua partida. Sua lucidez, seu jeito bonachão e humilde, seu humor e sua imensa qualidade literária deixam um rombo, uma cratera (não consigo fugir do clichê, não consigo achar imagem mais adequada)na já tão pobre literatura brasileira. Apesar de seus enredos regionais era um dos nossos únicos escritores universais. Obrigado João.
Os finais de semana serão diferentes daqui pra frente! Sempre comecei a leitura pela graça, ousadia, inteligência e principalmente pela simplicidade que as palavras traziam. Eu dizia: Vamos ver o que João Ubaldo escreveu prá mim hoje! Vou sentir saudades!
quanta falta voce ja faz nesta terra abandonada.brasil de luto……
Hoje o Brasil ficou mais pobre. Pobre de cultura e de pessoas incríveis. Hoje chorei como se chora quando se perde alguém da família. João Ubaldo era presença constante nas leituras de fim de semana. Meu marido era um apego com ele. Sabia tudo que acontecia em Itaparica das crônicas do João. Se eu não lia o jornal ele separava pelo menos os textos do Ubaldo para eu ler e riamos juntos com a alegria e irreverência desse baiano incrível. Já sinto SAUDADE porque não vamos mais ler sua alegria nos jornais no fim de semana.
Viva!
Mais um rubro-negro no céu. Vai com Deus, amigo.
a literatura não ficará mais pobre, porque a obra do Joao Ubaldo ribeiro permanece. transcenderá o tempo. mas que há uma certa tristeza na cena cultural do brasil. obrigado João Ubaldo ribeiro.
a literatura não ficará mais pobre, porque o homem passa mas o obra permanece
Depois de um Alemanha 7 x 1 Brasil, de ter como opções de voto para presidente(?) os candidatos que ora se apresentam, o país perde um de seus maiores expoentes, seja como cidadão, ou escritor…Pobre Brasil, vá em paz João e de vez em quando olhe por nós que ficamos órfãos de sua presença.
João Ubaldo Ribeiro, o vizinho | Bloghetto / Selma Barcellos & Colaboradores
Ao Ubaldo tudo. Escrevo, porém, para parabenizar o seu texto, Sérgio Rodrigues, que bela crônica!