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Witold Gombrowicz: ‘Ferdydurke’

05/08/2006

“Comece pelo título. Que significa… nada. Não há no romance nenhum personagem chamado Ferdydurke. E isso é apenas um aperitivo da insolência que virá depois.” Assim começa o prefácio – reproduzido na edição brasileira – que a ensaísta americana Susan Sontag, fã de Witold Gombrowicz (1904-1969), escreveu para a primeira edição americana de “Ferdydurke” a ter tradução direta do polonês: antes, vergonhosamente, o francês servira de intermediário. A correção da falha histórica se deu outro dia mesmo, em 2000. E o romance do autor polonês (mais tarde exilado por 24 anos na Argentina) saíra em seu país-natal em 1937. Seis décadas de atraso na metrópole fazem parecer menos grave – ou no mínimo mais compreensível – que só agora essa obra-prima de iconoclastia, anarquismo e nonsense, narrada por um adulto que se vê arrastado de volta à adolescência por um professor, seja lançada aqui na periferia (Companhia das Letras, tradução de Tomasz Barcinski, 352 páginas, R$ 49). Os leitores do mineiro Campos de Carvalho, aquele que matou seu professor de lógica (leia mais aqui), não devem se surpreender com o estilo de Gombrowicz. Em compensação, ficarão felizes de lhe descobrir esse brilhante precursor.

O príncipe dos mais gloriosos sintetistas de todos os tempos era, sem dúvida, o professor doutor de Sintetismo da Universidade de Leyden, o Sintetista Superior Filidor, proveniente da região meridional de Annam. Ele operava de acordo com o espírito patético da Síntese Superior, principalmente por meio da adição + infinito e, em casos extremos, através da multiplicação + infinito. Era um homem baixo, um tanto gordo, com barba desalinhada e rosto de profeta de óculos. Mas, de acordo com a ordem natural das coisas e seguindo o princípio newtoniano de ação e reação, um fenômeno espiritual de tal magnitude não poderia deixar de provocar a aparição de um contra-fenômeno, na pessoa de outro renomado analista, nascido em Colombo e que, tendo recebido o doutorado e a cátedra de Análise Superior na Universidade de Colúmbia, galgou rapidamente os mais altos degraus da carreira acadêmica. Era um homem seco e miúdo, com o rosto barbeado como um cético de óculos, cuja única missão interior era perseguir e derrotar o afamado Filidor.

Trabalhava analiticamente e sua especialidade consistia em decompor pessoas em partes através de cálculos matemáticos, freqüentemente dando piparotes no nariz delas. E assim, com a ajuda do piparote, o nariz adquiria vida própria, mexendo-se espontaneamente para todos lados, para grande espanto de seu proprietário. O Analista aplicava esse método com freqüência dentro dos bondes, principalmente quando se sentia entediado. Seguindo sua mais profunda vocação, lançou-se em perseguição a Filidor, chegando a receber, numa pequenina cidade da Espanha, o título de Anti-Filidor, o que o encheu de orgulho. Filidor – tendo-se inteirado de que aquele o perseguia – também se lançou em sua perseguição e, durante muito tempo, ambos os sábios perseguiram-se mutuamente sem nenhum resultado, já que o orgulho não lhes permitia admitir o fato de não serem apenas perseguidores, mas também perseguidos.

Dessa forma, quando Filidor, por exemplo, estava em Bremen, Anti-Filidor corria de Haia para Bremen, sem querer ou sem poder aceitar o fato de que Filidor, naquele exato momento e com o mesmo propósito, tomava um trem expresso de Bremen a Haia. O impetuoso choque entre os dois sábios – uma catástrofe comparável a uma das maiores catástrofes ferroviárias da história – ocorreu totalmente por acaso, no famoso restaurante Bristol, em Varsóvia. Filidor, na companhia da sra. Filidor e com o livreto com os horários dos trens na mão, estudava a melhor conexão ferroviária, quando de repente, vindo diretamente da estação, entrou no restaurante o esbaforido Anti-Filidor, acompanhado por sua analítica companheira de viagem, Flora Gente, de Messina. Nós, ou seja, as três testemunhas da ocorrência, os drs. Teofil Poklewski, Teodor Roklewski e eu, tendo nos dado conta da importância daquele encontro, logo nos pusemos a tomar notas.

Anti-Filidor aproximou-se da mesa de Filidor e, sem dizer uma palavra, atacou o professor, que se levantara, com um olhar. Ambos se esforçaram para dominar espiritualmente seu oponente: o Analista pressionando friamente de baixo e o Sintetista respondendo de cima com um olhar cheio de resistente dignidade. Como o duelo de olhares não apresentou nenhum resultado evidente, os dois inimigos espirituais iniciaram um duelo verbal. O doutor e mestre da Análise disse:

– Nhoques!

O Sintetista respondeu:

– Um nhoque!

Anti-Filidor berrou:

– Nhoques, nhoques, ou seja, uma combinação de batata, farinha e ovos!

Ao que Filidor replicou de imediato:

– Nhoque, ou seja, o ser superior do nhoque; o Nhoque Supremo!

Seus olhos chispavam, sua barba esvoaçava, e estava claro que obtivera uma vitória.

3 Comentários

  • sonho bom 05/08/2006em11:48

    Nossa! Aguçou minha curiosidade.

  • santinha 05/08/2006em12:01

    Bom sábado, Sérgio. Não sei o motivo que me levou a ficar tão comovida ao ler o que vc. escreveu sobre Campos de Carvalho. Creio que captei suas emoções. Um ab. fraterno.

  • Woody Allen 07/08/2006em14:28

    Woody Allen.