Tempo físico e mental para ler “As mil e uma noites”, “Dom Quixote”, “A comédia humana”, “Guerra e paz”, “Em busca do tempo perdido”, “O quarteto de Alexandria”, “O Senhor dos Anéis”, “O tempo e o vento”, as aventuras completas de Maigret, as obras reunidas de Pynchon, toda a saga de Sandman, Mônica e Cebolinha unabridged – todos estes, um ou outro deles, nenhum, desde que sem sombra daquela sensação de correr contra o tempo para cumprir tarefas. Pelo puro prazer de pular fora do tempo. É o que deseja o Todoprosa a todos os seus leitores em 2007, aproveitando o mote para avisar que vai dar um tempo: o blog volta a ser renovado dia 15 de janeiro. Até lá.
Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras), do qual publiquei um trecho em Primeira Mão aqui, não teve na imprensa literária brasileira a acolhida que merecia. Houve quem o condenasse a nota de colunão, depois se arrependesse. Isso talvez se explique em parte pela força impressionante de uma narrativa que vai para duzentos lados ao mesmo tempo, confundindo o leitor apegado a eixos mais fixos. Romance complexo e excessivo, estilhaçado mas coeso, trágico mas engraçadíssimo, a obra-prima desse chileno que morreu precocemente na Espanha em 2003 é povoada de dezenas de personagens, quase todos, curiosamente, poetas – e menos curiosamente, considerando que Bolaño viveu no país, mexicanos. Engajam-se em disputas às vezes surdas, às vezes escancaradas sobre qual seria a voz capaz de redimir, com seu canto, todo um continente desgraçado – o nosso. Ou estarão apenas atrás do ouro-de-tolo da glória? A ingenuidade dessa fé juvenil no poder da literatura é contrabalançada com folga por um desencanto de gelar a espinha, os dois pólos entre os quais vagam os “detetives” do título. Sua busca de romance metapolicial os leva a errar pelo mundo, arrastando, sempre um ou dois passos atrás, o leitor boquiaberto. Para mim, o livro…
Existe uma segunda vantagem em tentar acompanhar o turbilhão de lançamentos que comentei na nota abaixo: diante da tarefa de eleger os livros mais destacados do ano, basta pescar na memória aqueles que conseguiram fugir do campo gravitacional dessa algaravia-láctea, suspendendo a impaciência e a exasperação da leitura para instaurar seu próprio tempo. Ah, o critério é subjetivo? Evidente que é. O Todoprosa nunca foi outra coisa. (Existe mesmo quem seja?) Os títulos à altura da façanha não foram tantos assim. Em meio ao borrão de velocidade que Thomas de Quincey, com uma argúcia que soa deliciosamente ingênua nestes tempos eletrônicos, identificou no futuro da humanidade ao contemplar em meados do século XIX a carruagem do correio inglês, os livros que carregam suas próprias cápsulas de tempo flutuam nítidos na memória do leitor que leu muito, leu demais, mas ainda se recusa a abrir mão do prazer como princípio básico da brincadeira. Não houve livro brasileiro de ficção que eu tenha lido com mais gosto este ano do que Mãos de Cavalo (Companhia das Letras), de Daniel Galera, resenhado na época aqui. Não estou dizendo que seja uma obra-prima, uma obra irretocável. Uma leitura ranzinza identifica nele pelo menos um…
Em 2006 eu li muito, talvez nunca tenha lido tanto. Não é uma experiência de todo positiva. Ler por obrigação, tentando acompanhar o ritmo cada vez mais desembestado dos lançamentos, deve trair algum princípio formador do gosto pela leitura, desses que ficaram perdidos na pré-história da vida adulta. Tem algo de heresia nessa exasperação, nessa velocidade, e outro tanto de mau gosto e barbárie. Não me queixo. É até possível – embora por enquanto seja apenas uma suspeita a ser ponderada com calma em 2007, eis mais uma resolução para a lista – que tal modo de ler tenha a virtude de reproduzir numa escala individual a aceleração do fluxo de informações que é uma marca do nosso tempo, com todos os penduricalhos da diluição geral dos sentidos, da atenção curta, da impaciência do leitor etc. E por que isso seria uma virtude? Sei lá – porque mergulhar de forma suicida no Zeitgeist deve servir para alguma coisa. Nem que seja para descobrir onde fica o botão que desliga essa joça.
“Mestre da ficção auto-reflexiva”, assim já se chamou Vladimir Nabokov (São Petersburgo, 1890-Montreux, Suíça, 1977). A verdade é que este escritor genial que estava convencido de o ser criou um estilo que, se com certeza é único, paradoxalmente fecundou de maneira extensa a narrativa norte-americana que não depende exclusivamente do realismo. Mesmo assim, Nabokov é um detalhista consumado; a quantidade de gestos, trejeitos e outras coisas extraídas da realidade que utiliza é impressionante; verdadeiramente fascinante é o modo pelo qual as transmuta em literatura, porque é tão minucioso ao selecionar o que seu olhar observa como ao transpor tudo isso para o território da imaginação. O constante fluxo de imagens em sua prosa é resultado de uma poderosa reflexão sobre as qualidades expressivas da linguagem, pois, como assinala seu biógrafo com acerto, “só quando a mente tenta olhar além da generalização ou do lugar-comum as coisas começam de verdade (o grifo é meu) a se tornar reais, individuais, detalhadas, diferenciadas umas das outras”. O melhor realismo seleciona, para o imitar, o que considera significativo da realidade; Nabokov dá a sensação de operar de modo inverso, isto é: só aceita a realidade que sua imaginação iluminou previamente; sua magia – ele…
O “conto de Natal” é um subgênero mortífero. Se for muito natalino, dificilmente escapa de ser má literatura. Se não for nada natalino, pode até ser boa literatura, mas conto de Natal não mais será. Por isso, de vez em quando nessa época eu releio e renovo minha admiração por “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles, o melhor conto natalino que conheço, publicado no livro “Antes do baile verde” (1970). Para ler ou reler, é só clicar aqui. Bom Natal para todos.
“Você vai causar uma ótima impressão.” Esta é a primeira linha de Lunar Park e na sua concisão e simplicidade deveria supostamente ser um retorno à forma, um eco, da frase de abertura do meu primeiro livro, Abaixo de zero. “As pessoas têm medo de mudar de pista nas vias expressas de Los Angeles.” Desde então, as frases de abertura dos meus livros – não importa o quanto artisticamente compostas – tornaram-se supercomplicadas e ornamentadas, com uma ênfase pesada e inútil nas minúcias. Que fique claro: o começo de “Lunar Park” (Rocco, 2006, tradução de Aulyde Soares Rodrigues e Maira Parula) parece ser mais inesquecível para seu próprio autor, o americano Bret Easton Ellis, do que para o leitor. Paciência. Uma seção como esta não poderia deixar passar um início de romance feito de inícios de romance, numa apoteose metalingüística que, se não me deu vontade de ler o livro, tem lá o seu engenho – ainda que cabotino. De Ellis, li nos anos 80 o bom “Abaixo de zero”, que o transformou no jovem da moda nas letras americanas, e nos anos 90 “O psicopata americano”, tão equivocado que me fez desistir do sujeito.
A idéia foi roubada de um post do blog de livros do “Guardian”, blog que foi uma das melhores notícias da – em geral mais louvada do que merece – blogosfera literária em 2006: eleger o livro mais superestimado do ano. Soa antipático? Soa, claro. Uma antipatia à moda inglesa. Mas não deixa de ser uma forma inteligente de retrospectiva. Ao inverter os sinais habituais em busca de identificar aquele livro que ocupou mais espaço em nossas vidas do que – percebemos claramente agora – fazia por merecer, estamos refletindo sobre o passado recentíssimo e nos imunizando contra uma praga comum nas listas que proliferam nesta época do ano, a do “vamos dar uma força para o Zé”. No blog inglês, melhor do que o post em si foi a resposta que ele provocou nos leitores, cada um em busca do seu livro superestimado de eleição. Mãos à obra, portanto, moçada. Fica aqui a minha contribuição: “Mastigando humanos”, de Santiago Nazarian (Nova Fronteira), foi tratado por parte substancial de nossa imprensa literária como um livro de originalidade lancinante, apenas por ser narrado por um jacaré. O papagaio de Verissimo chegou poucas semanas depois, e com prosa bem melhor, mas não…
“Borges”, de Adolfo Bioy Casares, é um livro monstruoso e de alguma forma heróico. Tem a descortesia de somar 1.663 páginas, que podiam ter sido reduzidas, nas mãos de um editor menos preocupado em parir um monumento, facilmente a 600. A maior parte das entradas desse extenso e excessivo diário de vida são listas de pessoas que jantaram na casa de Bioy ou compareceram a um coquetel da sociedade de escritores argentinos. O excesso de páginas é ainda mais aterrador quando se pensa que os protagonistas do livro eram, com justiça, famosos como fanáticos da concisão. (…) Não indicado para almas sensíveis, Borges e Bioy destróem em poucas frases toda a literatura espanhola depois de Quevedo, e Eliot, e Pound, e Aragon, e Sartre, e Eluard, e Beckett, e Neruda, e Mistral, e Camões, e naturalmente Arlt, Sábato (um dos grandes personagens cômicos do livro), Cortázar… O articulista Rafael Gumucio, do suplemento literário do jornal chileno “El Mercurio”, defende a tese de que Adolfo Bioy Casares traiu seu grande amigo e irmão literário, Jorge Luis Borges, ao manter um diário tão minucioso de sua convivência. A traição estaria na exibição de um homem prosaico, fofoqueiro, palavroso, às voltas com as…
Nada melhor para combater o baixo astral de uma acusação de plágio do que publicar um belo texto na “New Yorker”. Ian McEwan sabe disso. A revista adianta um trecho do próximo romance do autor inglês, On Chesil Beach, a ser publicado em junho – aqui. Recomendo efusivamente. A descrição da tensa lua-de-mel de Edward e Florence, ambos virgens, numa década de 60 que ainda não tinha dito com todas as letras a que viera, é puro McEwan na mescla de paisagens interiores e ambientação histórica. E o sexo, com todos os seus conflitos, é quase tão bom – embora bem menos gratificante – quanto o da inesquecível cena da transa na biblioteca em “Reparação”.
Em 2000, dois anos antes de morrer, o pai do escritor turco Orhan Pamuk lhe deu uma mala cheia de escritos que, literato amador, acumulara ao longo da vida. As cenas tensas que se desenrolaram em seguida foram lembradas por Pamuk em seu discurso de agradecimento do Nobel de Literatura, parcialmente publicado no fim de semana pelo “Guardian” – acesso livre, em inglês, aqui. A primeira coisa que me manteve afastado do conteúdo da mala foi o medo de que eu pudesse não gostar do que ia ler. Como meu pai sabia disso, tomara a precaução de fingir que não levava aquilo a sério. Depois de trabalhar como escritor por 25 anos, era doloroso para mim perceber isso. Mas eu não queria ficar irritado com ele por ter fracassado em levar a literatura a sério (…) Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que eu não queria saber ou descobrir, era que ele pudesse ser um bom escritor. É impressionante a semelhança entre a experiência pungente relatada por Pamuk e aquela que inspirou ao inglês Hanif Kureishi seu livro “No colo do pai” – comentado aqui embaixo, na nota de 6/12.
DIÁRIO DE ANDRÉ (conclusão) 18 de… de 19… – (…meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo – “era assim que ela beijava” – naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos – todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido para sempre? Que é, meu Deus, o para sempre – o eco duro e pomposo dessa expressão ecoando através dos despovoados corredores da alma – o para sempre que na verdade nada significa, e nem mesmo é um átimo visível no instante em que o supomos, e no entanto é o nosso único bem, porque a única coisa definitiva no parco vocabulário de nossas possibilidades terrenas… O início de “Crônica da casa assassinada”, romance lançado em 1959 pelo escritor mineiro Lúcio Cardoso (Civilização Brasileira, edição comemorativa dos 40 anos da obra, equivalente à 12a, 1999),…
Juan Carlos Onetti (1909-1994) é um dos menos conhecidos dos grandes escritores latino-americanos. Eu mesmo confesso que demorei demais a conhecê-lo. Mas que é um dos maiores – para muita gente mais nervosa no manejo dos superlativos, o maior – ficou claro para mim ao ler o romance “A vida breve”, na edição de 2004 da editora Planeta, com tradução impecável de Josely Vianna Baptista, que agora nos dá esses “47 contos de Juan Carlos Onetti” (Companhia das Letras, 448 páginas, R$ 42). O mais recente título da coleção de contos da Companhia – aquela com belas capas em estilo retrô de Jeff Fisher – traz todas as histórias curtas escritas por Onetti ao longo de seis décadas, de 1933, em Montevidéu, onde nasceu, a 1993, em Madri, cidade que adotou após ser exilado pelo regime militar, em 1975. Mestre da sutileza e do desencanto, com suas narrativas em que “nada acontece” ocupando quase programaticamente o pólo oposto ao das pirotecnias verbais e simbólicas do chamado realismo mágico, é até compreensível que esse uruguaio que se dividiu entre o jornalismo e a publicidade – sem jamais deixar de ser ficcionista – tenha sido mais lento que tantos de seus contemporâneos…
Acertos de contas do gênero não são novos, e confesso até já ter brincado com a idéia de me vingar de uma ou outra pessoa nefasta da vida real por meio da ficção – embora, felizmente, não tenha levado adiante planos tão mesquinhos. Mas o que o best-seller Michael Crichton, de “O Parque dos Dinossauros”, fez em seu último livro, Next, bate todos os recordes. O caso é contado no “New York Times” de hoje (aqui, mediante cadastro gratuito) e pode ser resumido assim: este ano, um repórter de política formado em Yale e baseado em Washington, chamado Michael Crowley, escreveu um artigo criticando Crichton com violência por suas posições políticas conservadoras; em Next, um personagem secundário chamado Mick Crowley, colunista político formado em Yale, baseado em Washington e – detalhe infame – portador de um pau pequeno, é preso por estuprar um menino de dois anos, “ainda de fralda”. O mesmo nome, a mesma universidade, a mesma cidade, a mesma profissão, não se sabe se a mesma anatomia. E o mais imperdoável dos crimes. Tudo indica que Crichton pirou.
O vetusto e alquebrado escritor permanecia inédito, desprezado por casas editoriais grandes e pequenas, não obstante os tenazes esforços do espírito que lhe haviam consumido a saúde na lida com as exigências da criação, as quais, sendo artista consciente e de talento raro, equacionara de modo tão sutil e original que terminou por se distanciar irremediavelmente de seus contemporâneos. Na hipótese mais benevolente, seria compreendido pela geração de seus bisnetos. Bisnetos que, bem entendido, tinham na frase papel meramente retórico, pois entre os departamentos da vida que o artista mantivera lacrados para se entregar por inteiro à literatura, essa górgona voraz, avultava a paternidade. Tinha um sobrinho; isso tinha. Rapazola tresloucado, boêmio, compunha a figura de um perfeito doidivanas, mas um doidivanas de boa aparência e traquejo social incomum. Sapato bicolor e mecha rebelde desabada sobre os olhos, surgiu-lhe esse sobrinho certa noite, em sonhos, como peça-chave de um plano insensato. O escritor tentou escorraçar a extravagante idéia, decerto germinada no lado negro de sua alma ferida, mas o sonho se repetiu. Noite após noite o sonho se repetiu, até que o juízo combalido do homem lhe desse passagem e ele adentrasse, aos pinotes, a terra da vigília. Não devemos…
Lucas Murtinho, leitor e comentarista habitual aqui do Todoprosa e titular do blog Bom dia, França, ganhou o sorteio de um exemplar autografado do meu romance “As sementes de Flowerville”. Obrigado pela idéia, Saint-Clair. Ainda não foi desta vez.
Uma reportagem de Julie Bosman no “New York Times” (em inglês, mediante cadastro gratuito) discute a moda anglo-americana – pois é de moda que se trata – das longas bibliografias em livros de ficção. A coisa tem atingido níveis ridículos. O novo de Norman Mailer (veja nota abaixo), um romance sobre a infância de Hitler, traz uma lista de 126 títulos e autores consultados por ele. Michael Crichton, mais modesto, fecha a conta em 36 livros, mais 12 artigos e 12 endereços de internet. E a polêmica envolvendo os empréstimos feitos por Ian McEwan em “Reparação” deve pôr ainda mais lenha nessa fogueira. Há quem diga que tudo não passa de exibicionismo dos autores, de uma forma de impressionar o leitor: “Vejam como sou culto”, estariam dizendo. Críticos mais benevolentes falam numa tentativa de trazer para a ficção parte da respeitabilidade acadêmica das obras de não-ficção. E desde quando a ficção precisa disso? Uma listinha razoável de agradecimentos costuma cair bem, sobretudo quando se trata de reconhecer uma dívida palpável com outro autor, mas convém ir com calma. A moda, que eu saiba, ainda não desembarcou por aqui. Questão de tempo?