“Era uma sexta-feira chuvosa e triste quando…”, escreveu, e se deteve. Desde quando um clichê como aquele era um começo digno para o segundo volume? PS: Ops, começamos com problemas técnicos. Quem entrou ontem à meia-noite neste blog encontrou a casa muito mais arrumada. Um tufão de origem ainda desconhecida passou de madrugada, deixou tudo de pernas para o ar. Peço desculpas – e um pouco de paciência.
O Cânone – Documento misterioso (que ninguém jamais viu) idealizado (ninguém sabe quando) secretamente por uma conspiração (ninguém sabe onde) de pouquíssimos machos europeus mortos, a fim de ditar aquilo que todo mundo precisa ler. O divertido Dictionary of Fashionable Nonsense, glossário satírico do “pensamento” (perdão pelo substantivo impreciso) politicamente correto escrito pelo pessoal do ótimo site inglês Butterflies and Wheels, merece uma visita – a dica é do blog de livros do “Guardian”. Pode-se ler online uma amostra da versão de papel, com mais de quinhentos verbetes, que está à venda na Amazon.com. Duvido que a obra esgote o tema – que talvez seja inesgotável – mas, a julgar pelo trailer, deve garantir um bom sobrevôo no território da neoburrice. Outros exemplos: Educação – Introdução violenta e brutal de material arbitrário nas cabeças limpinhas e inocentes das crianças, que deviam ser deixadas vazias. Elitista – Alguém que sabe mais do que eu.
O palavrão aí de cima quer dizer que, com esta, foram publicadas 528 palavras – ou expressões – na coluna A Palavra É…, do extinto site “NoMínimo”, desde sua estréia, no dia 3 de novembro de 2004. Com o fim do “NoMínimo”, que saiu do ar no dia 30 de junho, encerrou-se também o ciclo d’A Palavra É… como coluna independente. Esses pequenos exercícios de crítica cultural baseada na língua – assinados não por um professor, mas por um jornalista e escritor que sempre se recusou a aceitar que a falta de brevê oficial da academia o impedisse de voar pelo idioma – não saem de cena, mas terão de agora em diante periodicidade incerta aqui no Todoprosa. A idéia é renovar a seção sempre que um assunto se impuser. Infelizmente, não foi possível trazer para cá o arquivo d’A Palavra É… As 527 notas anteriores a esta devem fazer sua próxima aparição pública em forma de livro – darei notícias sobre isso aqui. A todo mundo que tomou parte nessa memorável história, fazendo consultas, dando contribuições preciosas, deixando críticas e correções ou simplesmente acompanhando em silêncio o bate-papo, meus agradecimentos sinceros. E um convite para que apareçam sempre aqui…
Primeiro os finais, depois o encontro. A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a sra. Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a Avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos. (Marcel Proust, “No caminho de Swann”) Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia. (Guimarães Rosa, “Grande sertão: veredas”) Convido os leitores do Todoprosa a seguir o blog em sua travessia para um novo endereço, www.todoprosa.com.br, que estará funcionando a partir de sábado. Atualizem seus favoritos e espalhem a notícia, por favor. Espero todo mundo lá. Sim, a área de comentários vai sobreviver à viagem. Nada muda, embora tudo mude. (Mas que ninguém se surpreenda se o NoMínimo renascer com algum novo formato – os caminhos, afinal, são fugitivos – dentro de um ou dois…
O NoMínimo vira história – em todos os sentidos – dentro de poucos dias, mas a frase de Tom Stoppard não está aí em cima por acaso. O Todoprosa ficará no ar. Aguardem notícias de seu novo paradeiro. Não gosto de choradeira (não em público, pelo menos), mas não custa tentar corrigir algumas distorções na reta final. No fim de semana, pensando nesta etapa que se encerra, me ocorreu o desequilíbrio gritante em que o blog incorreu. Sabemos que o mundo é feito de tal forma que o número de começos, no fim das contas, é sempre exatamente igual ao número de fins. Por definição. Se não é igual, é porque o “fim das contas” ainda não chegou. Traduzindo: depois de tantos Começos Inesquecíveis, me ocorreu o tamanho da dívida de Finais Inesquecíveis que acumulei. Tento saldar parte dela agora, enquanto é tempo. Com algum atropelo e, naturalmente, sem pretender fazer uma lista de “melhores” – como nunca foi a intenção dos Começos Inesquecíveis, aliás –, aí vai uma pequena antologia descaradamente impressionista. No mínimo, ficamos no clima da semana. Alguns finais são melancólicos: E assim prosseguimos, barcos contra a corrente, arrastados incessantemente para o passado. (F. Scott Fitzgerald, “O…
Sou um homem de certa idade. A natureza das minhas ocupações, nestes últimos trinta anos, me levou a entrar permanentemente em contato com uma espécie de homens interessantes e um tanto singulares, da qual, que eu saiba, nada até agora se tem escrito: refiro-me aos copistas, escriturários ou escreventes a serviço de homens de leis. Conheci muitos, quer profissional quer particularmente, e poderia, se quisesse, contar sobre eles inúmeras histórias que fariam sorrir afáveis cavalheiros e levariam às lágrimas as almas sentimentais. Mas renuncio às biografias de todos os demais escriturários para relatar algumas passagens da vida de Bartleby, o mais estranho de todos que jamais vi e de quantos tive notícia. Aproveitando o mote da nota “O nosso Bartleby”, aí embaixo, que sirva o início de “Bartleby, o escriturário” (Rocco, 1986, tradução de Luís de Lima) como convite para quem ainda não conhece essa brilhante novelinha – ou conto alentado – que o escritor americano Herman Melville (1819-1891) publicou anonimamente numa revista em 1853, dois anos depois de sua obra-prima “Moby Dick”, e em livro, já com seu nome, três anos mais tarde.
É boa a temporada. Praticamente numa fornada única, a Companhia das Letras pôs nas livrarias novos títulos de três dos maiores autores de língua inglesa da atualidade. Logo depois de “Casa de encontros”, de Martin Amis, e colado em “Na praia”, de Ian McEwan, chega o romance “Homem lento”, de J.M. Coetzee, principal atração da iminente Flip (tradução de José Rubens Siqueira, 280 páginas, R$ 46). Além de uma manifestação de louvor (para a tradução) e outra de absoluto a$$ombro, nada tenho a acrescentar ao que já comentei sobre esse curioso livro aqui.
O “caso JT Leroy” foi tão embaraçoso para o establishment literário em geral que acabou sendo muito menos discutido do que merece. Levantou-se uma orelha do tapete, varreu-se o assunto, uma pena. Vale aproveitar o fato de a confusão ter finalmente chegado aos tribunais na forma de uma acusação de fraude – leia a reportagem do “New York Times”, mediante cadastro gratuito – para recordar a história. Para quem não se lembra, o escritor-personalidade JT Leroy, apresentado como um jovem travesti drogado, prostituído e soropositivo, salvo por um triz da ruína por sua genialidade literária, entrou em cena em 2000 nos Estados Unidos para virar uma celebridade instantânea. A questão constrangedora é: quanto da imediata e festiva adoção de JT pela imprensa literária se devia à sua biografia e quanto à literatura em si? Porque a biografia provou-se mais falsa do que uma prestação de contas do presidente do Senado. E se o texto era mesmo tão espetacular quanto andaram dizendo, que importância tinha um nom de plume? Por que, do dia para a noite, todo mundo que o cobrira de elogios saiu assobiando para cima? JT Leroy, soube-se há dois anos, era na verdade uma dona de casa quarentona…
…a minha impressão sugere que Raduan é um caso atípico de Bartleby. Seu silêncio literário aparentemente não se origina das tensões internas da modernidade literária, não veio de um drama autoral frente ao um desafio extremo, Raduan apenas se encaminhou para fora. A estranheza vem do nosso olhar, acostumados que estamos a descrições de “literatura como destino”, “relação orgânica texto-autor” e a escritores que lançam livros a cada dois ou três anos sem ter nada a mostrar. O ‘caso Raduan’ é um problema para nós, não para o próprio. Em seu blog, Marco Polli comenta com perspicácia o “caso Raduan Nasssar” à luz de “Bartleby e companhia”, do espanhol Enrique Vila-Matas – um estudo literário sobre escritores que, a exemplo do escriturário de Herman Melville, em algum momento se recusam a contribuir para o excesso de letrinhas no mundo e avisam: “Prefiro não fazer”. A nota me fez pensar numa razão para que o “silêncio dos escritores”, que não foi inventado ontem e pode obedecer a um milhão de razões particulares, nos pareça, neste início de século, um tema cultural cada vez mais relevante e desafiador. Deve ser porque vivemos – e não apenas na literatura – dentro de uma…
O título de cavaleiro que o governo britânico concedeu a Salman Rushdie no último sábado está provocando reações de profunda insatisfação em diversos países islâmicos. Nenhuma que chegue perto, no tom de ameaça aberta, destas palavras de Mohammed Ijaz ul-Haq, ministro de Assuntos Religiosos do governo do Paquistão, em discurso no parlamento: É hora de 1,5 bilhão de muçulmanos considerarem a gravidade dessa decisão. O Ocidente tem acusado os muçulmanos de extremismo e terrorismo. Se alguém explodir uma bomba atada ao corpo, estará certo em fazê-lo, a não ser que o governo britânico peça desculpas e retire (de Rushdie) o título de Sir. A reportagem do “Guardian”, em inglês, pode ser lida aqui. O escritor passou a década de 90 entocado, ameaçado de morte pela fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini, do Irã, depois que seu livro “Os versos satânicos” foi considerado ofensivo ao Islã pelas autoridades religiosas do país. Vai começar tudo outra vez?
Qualquer livro novo do inglês Ian McEwan é, hoje, um grande evento, que está para a literatura “séria” como o novo “Harry Potter” está para a literatura de entretenimento. Evidentemente, a comparação não se refere ao impacto quantitativo ou financeiro de cada um, mas ao nível de burburinho e inquietação que ambos geram em seus respectivos públicos. Não é à toa que a Companhia das Letras correu – e como – para pôr nas livrarias a versão brasileira do romance curto ou novela On Chesil Beach, “Na praia” (tradução de Bernardo Carvalho, 136 páginas, R$ 33), pouco mais de dois meses depois do lançamento britânico e num honroso empate com o americano. Se a pressa pode ter provocado alguns problemas de acabamento, o resultado geral é correto e tem o mérito de pôr o livro em circulação entre os leitores brasileiros enquanto ele ainda está, por assim dizer, quente. Em tempos globalizados de Amazon.com, talvez isso seja, mais do que luxo, uma necessidade. (Publiquei em dezembro, aqui, um link para o primeiro capítulo do livro na “New Yorker” – o excerto aí de baixo está lá no original.) No quadro da produção recente de McEwan, “Na praia” não tem –…
Outro dia falamos do assunto aqui, a propósito do divertido “trailer cinematográfico” do livro “A guerra dos bastardos”, de Ana Paula Maia (Língua Geral), uma das poucas iniciativas do gênero no Brasil. No site BookVideos.tv, ligado à editora Simon & Schuster, o barato é um pouco diferente, mais interessado em glamourizar autores e seduzir o leitor com uma espiada nos “bastidores da criação”. Qualquer que seja o conteúdo, porém, a forma parece ir além do mero modismo. Para começar, a produção é barata. E a veiculação é mais ainda, pois a internet fornece um ambiente em que as peças mais bem recebidas se espalham, por assim dizer, sozinhas. Não duvido que editoras e autores se vejam, em breve, obrigados a pegar a onda do videoclipe como peça promocional de livros.
Onde é que uma história começa, propriamente? Qualquer começo de história é sempre um tipo de contrato entre o escritor e o leitor. Há, é claro, todo tipo de contrato, incluindo aqueles que são insinceros. (…) Há começos que funcionam mais como um papel pega-mosca: primeiro você é seduzido por uma fofoca maliciosa, ou por uma confissão reveladora, ou por uma aventura de gelar o sangue, mas finalmente descobre que não fisgou um peixe, mas sim um peixe empalhado. Em Moby Dick, por exemplo, há muitas aventuras, mas também muitos artigos de delicatéssen não mencionados no menu, nem mesmo insinuados no contrato inicial (“Pode me chamar de Ishmael”), mas conferidos a você como um bônus especial – como se comprasse um sorvete e ganhasse uma passagem para viajar pelo mundo. Há contratos filosóficos, como o famoso trecho inicial de Anna Karenina, de Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem umas às outras; cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira.” Na verdade, o próprio Tolstói, em Anna Karenina e em outras obras, contradiz essa dicotomia. Às vezes somos confrontados com um contrato inicial ríspido, quase intimidante, que alerta o leitor logo de início: as passagens são bem caras aqui….
O movimento BookCrossing lançou há seis anos nos Estados Unidos a idéia de abandonar livros em lugares públicos para que outros os leiam e depois, por sua vez, também os “esqueçam” por aí. Agora o metrô de Londres criou um programa semelhante, o London Book Project, com a diferença básica de que os livros são fornecidos pela empresa e não por leitores voluntários. Exemplares de segunda mão foram espalhados nos assentos dos trens para que os passageiros comecem a lê-los na viagem. Se for fisgado pelo autor, qualquer um pode levar os volumes para casa à vontade, mas sempre tendo o cuidado de, ao fim da leitura, deixá-los de volta no metrô. Dos dois lados do Atlântico, cada exemplar é numerado para permitir que seus leitores relatem – e acompanhem – a trajetória do livro na internet. Idéias muito, muito simpáticas. E inviáveis no Brasil, infelizmente. Ou não?
O romancista, poeta e ensaísta marroquino Tahar Ben Jelloun, nascido em 1944, foi educado em francês em sua terra natal e se mudou em 1971 para Paris, onde vive até hoje. Mais do que informação biográfica, a adoção do francês como língua literária é fundamental na obra de Ben Jelloun, pois o situa numa zona de fronteira cultural que o torna um dos escritores africanos de maior expressão da atualidade e, ao mesmo tempo, um alvo fácil para a parcela mais xiita da crítica internacional, que o acusa de traição aos valores autênticos da “Magreb de raiz” ou coisa parecida. Bobagem. Ben Jelloun não usa o deslocamento para fazer macumba-para-turista e sim para refletir, com real talento e sem proselitismo, sobre as muitas faces da guerra cultural surda que foi (re)inaugurada pelo mundo pós-colonial e globalizado entre a Casa Grande e a Senzala do planeta. O romance “Partir” (Bertrand Brasil, tradução de Mônica Cristina Corrêa, 288 páginas, preço a definir), que ele lançou ano passado, é mais um mosaico desse desenraizamento, denunciado no trecho abaixo pelo louco lúcido que faz as vezes de consciência crítica do livro – personagem retomado de outro título de Ben Jelloun, “Moha o louco, Moha…
O melhor que se pode fazer pela “Enciclopédia de Literatura Brasileira” que o Instituto Itaú Cultural pôs no ar em seu bonito site na terça-feira é não visitá-la. Não por enquanto. Vamos ser justos e, até por respeito aos seus “consultores editoriais” – os escritores Luiz Ruffato e Flávio Carneiro e a professora Regina Dalcastagné –, esperar que a aprimorem. Do jeito que está, o trabalho é um perigo para leitores desavisados. Não é que Ivana Arruda Leite, uma escritora interessante, não mereça um verbete. Deve merecer. Mas de modo algum poderia furar uma fila em que Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst ainda aguardam a vez. Este é só um dos 277 furos que contei em três minutos e meio na “Enciclopédia”, um espantoso conjunto de 106 nomes de “todos os tempos” cuja única defesa parece ser a precipitação de pôr no ar um trabalho maciçamente inacabado e sem apreço a prioridades. O blogueiro exagera? Julgue você mesmo. Que o meu colega de site Daniel Galera, talentoso que só, é um bom nome para uma enciclopédia dessas, estou pronto a defender com veemência. Mas se Campos de Carvalho não aparece, nem Lúcio Cardoso, nem Rubem Fonseca, nem…
Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores. A primeira frase de “As cidades invisíveis”, obra-prima lançada em 1972 por Italo Calvino (Companhia das Letras, tradução de Diogo Mainardi, 1990), pode não parecer, em si, inesquecível. É preciso ler esse espantoso conjunto de relatos de viagem por cidades imaginárias para descobrir que é, sim.