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Pirataria ou obscuridade?
NoMínimo / 31/08/2007

Nos últimos anos eu me tornei, para minha considerável surpresa, romancista em tempo integral. Como ganho a vida com a venda de meus livros, pode parecer estranho que eu esteja neste momento publicando em capítulos na internet um novo romance, Beasts of New York, para quem quiser ler, inteiramente grátis. Por quê? Porque, para citar o editor Tim O’Reilly, “a maior ameaça que um artista enfrenta é a obscuridade, não a pirataria”. Não me preocupo com as pessoas que lêem meu trabalho sem pagar. Preocupo-me com as que não sabem que meus livros existem. O escritor canadense Jon Evans, um autor de “thrillers de viagem” desconhecido no Brasil, deve ter ficado menos popular entre as editoras por este artigo no blog de livros do “Guardian”, mas é difícil negar que o raciocínio tem fundamento. Me lembrou a reação curiosa do espanhol Enrique Vila-Matas quando descobriu que um de seus primeiros títulos tinha sido pirateado e estava disponível online: ficou agradecido, porque o livro, sendo do tempo da máquina de escrever, ainda não existia em arquivo digital. Claro que resta a questão, inteiramente aberta, de como o escritor profissional do futuro comprará o leitinho das crianças. John Updike já declarou temer…

Mensalão
A palavra é... / 30/08/2007

A entrevista do deputado Roberto Jefferson publicada pela “Folha de S. Paulo” naquela segunda-feira, 6 de junho de 2005, marcou um fato raro no mundo das palavras: o momento exato em que nascia uma nova acepção, um novo sentido. No caso, um sentido destinado a fazer tanto sucesso que hoje deixa num pálido segundo plano a acepção até então exclusiva de mensalão – “recolhimento facultativo que pode ser efetuado pelo contribuinte para antecipar o pagamento do imposto devido na Declaração de Ajuste Anual”, segundo o site da Receita Federal. Pouco antes de Jefferson detonar sua bomba, o mensalão já circulava fora do jargão tributário, mas apenas como gíria brasiliense para um novo esquema de corrupção centrado na compra – prática antiga, mas talvez nunca tão literal – de apoio parlamentar pelo governo. Tinha feito uma breve aparição no “Jornal do Brasil” em 2004, mas faltava ganhar as ruas, a corrente principal da língua. Tudo indica que ganhou. Pouco mais de dois anos depois de nascer, a palavra acaba de ser reconduzida ao posto de grande estrela do vocabulário político pelo Supremo Tribunal Federal. É razoável supor que a aparência bonachona contribuiu para o sucesso do termo mensalão. Fascinado pela intimidade…

Começos inesquecíveis: Michel Laub

Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989. “O segundo tempo”, de Michel Laub (Companhia das Letras, 2006), um dos bons livros brasileiros do ano passado, tem uma frase inicial ainda melhor. Digna de antologia ou manual para escritores, ela consegue condensar em pouquíssimas palavras, com a falsa simplicidade que a ocasião exige, uma apresentação clássica de tom, tema e marcos temporais (de passado e presente) entre os quais se estenderá a corda da narrativa. Não falta ainda uma sutil estranheza – como assim, o futebol está morto? – que fica zumbindo ao fundo enquanto nos damos conta de que o defunto pode ser outro.

Entre em forma com Harold Robbins
NoMínimo / 27/08/2007

Imperdoável. Depois de séculos de procura, o pessoal finalmente descobre uma utilidade clara para a ficção – sobretudo para a ficção cheia de ação e sexo, o que é uma forma de unir o útil ao agradável – e este blog franga a notícia. Única desculpa para minha distração: por aqueles dias eu andava envolvido com um programa de musculação baseado no levantamento de The Complete Pelican Shakespeare.

A estrada antes do asfalto
NoMínimo / 24/08/2007

De toda a fanfarra pelo aniversário de 50 anos da publicação de On the road (“Pé na estrada”, na tradução de Eduardo Bueno para a L&PM), de Jack Kerouac, a parte realmente interessante do ponto de vista literário é a publicação do manuscrito original, não editado, com pontuação esparsa e dando aos personagens seus nomes verdadeiros. On the road: the original scroll, que acaba de sair nos EUA, reproduz o livro exatamente como, segundo a lenda, ele foi batucado freneticamente à máquina num único rolo de papel, ao longo de três semanas e tendo como combustível um caminhão de anfetamina – parece que a parte química não foi bem assim, mas lenda é lenda. É uma história antiga a suposta superioridade da versão bruta, escrita em 1951, sobre a que acabou publicada em 1957, depois de penteada e domesticada por Kerouac sob a orientação de seus editores, com alguns cortes e a adição de incontáveis pontos, vírgulas e floreios “literários”. Um ano depois, quando o livro já era um sucesso arrasador, o poeta Allen Ginsberg lamentou num artigo o que teria sido um crime de lesa-literatura. É claro que o mito da pureza de um texto incendiário conspurcada por editores…

Desastre na primeira curva
NoMínimo / 23/08/2007

Crash, evidentemente, não tem a ver com um desastre imaginário, embora iminente, mas com um cataclismo pandêmico que a cada ano mata centenas de milhares de pessoas e fere milhões. Será que enxergamos, no desastre de carro, um sinistro presságio de um casamento de pesadelo entre o sexo e a tecnologia? A moderna tecnologia nos proporcionará meios até hoje não sonhados de dar vazão a nossas próprias psicopatias? (…) Ao longo de Crash, usei o carro não apenas como uma imagem sexual, mas como uma metáfora total da vida do homem na sociedade de hoje. Assim, o romance tem um papel político bem separado de seu conteúdo sexual, mas eu ainda gostaria de pensar que Crash é o primeiro romance pornográfico baseado na tecnologia. Quando peguei ontem o romance “Crash”, lançado em 1973 pelo inglês J.G. Ballard (Companhia das Letras, tradução de José Geraldo Couto, 240 páginas, R$ 42), com a tranqüila disposição de lê-lo, o livro tinha muito a seu favor: o rasgo de imaginação perverso e possivelmente brilhante de retratar desastres automobilísticos como experiências cheias de tesão, reputação cult, adaptação para o cinema (chatíssima, mas…) assinada David Cronenberg e o diabo. Sobretudo o diabo. Infelizmente tinha também, logo…

O leitor morreu. Viva o escritor!
NoMínimo / 22/08/2007

Agora é quase oficial. Há alguma coisa poderosa e ainda pouco estudada corroendo os alicerces da milenar relação entre escritores (poucos) e leitores (muitos, ou pelo menos não tão poucos). Uma tendência que aponta para a mais edênica utopia internética ou a mais louca distopia tragicômica, dependendo do ponto de vista: a transformação de cada leitor-lagarta do mundo em escritor-borboleta. Um escritor-borboleta sem leitores, é claro – por definição. Lançado o narigão-de-cera, vamos aos fatos. Uma pesquisa feita na Grã-Bretanha (em inglês, acesso livre) pelo instituto YouGov acaba de esbarrar numa descoberta bizarra: o trabalho de escritor é o mais cobiçado pela população. Sim, o mais cobiçado. Cerca de 10% dos entrevistados declararam sonhar com ele em primeiro lugar, quando imaginam uma forma de fugir de suas vidas medíocres. Na lista de preferências, vêm em seguida ídolo esportivo, piloto de avião, astronauta e organizador de eventos (!!). Reparem que astro de cinema não pegou top five. Sim, todo mundo por lá está dizendo que a gata borralheira J.K. Rowling tem muito a ver com isso. E não, ninguém é ingênuo de acreditar que essa multidão conseguirá transformar seu sonho maluco em realidade – embora uma parte tente mesmo, provocando a…

A blogueira e o estruturalista
Sobrescritos / 20/08/2007

O DJ retrô contratado pelo shopping center enchia os corredores com a voz grossa de Renato Russo cantando “Eduardo e Mônica” quando a blogueira perguntou as horas ao estruturalista na fila do caixa da megalivraria. Mais tarde, ao se lembrar desse momento e observar que a trilha era simplesmente perfeita, ela o ouviria responder corado com a falta de prática que não, não, perfeita é você. Quando a blogueira o abordou, fingindo não saber quem ele era, o estruturalista tinha meia dúzia de livros fora de catálogo e uma reputação longamente esquecida de analista rigoroso de João Cabral, Guimarães Rosa e Osman Lins. A aposentadoria federal como professor titular de literatura lhe propiciava uma vida tediosa mas tranqüila de viúvo sem ambição, sem desejo e sem arrependimento, como achava que devia ser. Se alguma coisa incomodava o estruturalista àquela altura, além de certos padecimentos próprios da idade como dor nas costas e insônia, era o fato de já não conseguir ler. Poesia, prosa, clássico, contemporâneo, coisa nenhuma. E não por ter ficado cego como Borges: nada havia em sua visão que lentes bifocais não emendassem, era interna a escuridão do estruturalista. Que jamais tocava no assunto, tentando ser estóico diante…

Literatura é uma caixinha de surpresas
NoMínimo / 18/08/2007

Não deixe de ler as resenhas e de comentar os resultados, mesmo que você não tenha lido os concorrentes (eu mesmo só li dois), discursa Lucas Murtinho, o cartola. E, se uma resenha despertar seu interesse, não confie no jurado nem nos comentaristas, compre os livros e decida por si mesmo. E divirta-se. Nós, aqui dos bastidores, já estamos nos divertindo. Está no ar o site da Copa de Literatura Brasileira.

Os guardanapos
NoMínimo / 17/08/2007

Não sei se o Napkin Fiction Project (Projeto Ficção no Guardanapo), uma idéia da revista Esquire, rendeu algum miniconto genial. Só visitei um punhado deles, e seria preciso ler as dezenas de textos disponíveis no site da revista para saber se algum escritor conseguiu rabiscar em seu guardanapo de papel mais do que pura diversão. De qualquer modo, por ser o tipo de pretexto que consegue reunir à mesa dois irmãos cada vez mais distantes – apelo jornalístico e charme literário –, vale divulgar a idéia. Já copiamos piores.

Precisa-se de editor
NoMínimo / 16/08/2007

No admirável mundo novo da autopublicação, os editores são uma espécie ameaçada. Isso não é de todo ruim. É bom que qualquer pessoa que queira publicar e tenha acesso a um computador não encontre hoje barreira alguma. E certos blogueiros não precisam mesmo de editores: sua prosa é fluente, coloquial, e os leitores não esperam que o trabalho seja elegante ou finamente cinzelado. Sua função principal é comunicar com clareza. Não tem o objetivo de durar. Mesmo assim, os editores e a edição se tornarão cada vez mais importantes à medida que a era da Internet avançar, em sua velocidade de foguete. O mundo online não tem apenas milhões de escritores recém-nascidos exultando com seus poderes. Tem também milhões de leitores que precisam se orientar nesse universo infinito e decidir que escritores vale a pena ler. Quem vai selecionar os excepcionais? Editores de alguma espécie. Algum grupo esperto de pessoas terá que separar o joio do trigo. E quanto mais refinado for o processo de separação, mais talento – e talvez mais experiência – ele exigirá. Nós já usamos outros leitores para classificar as coisas por nós: meus bookmarks são, em sua maioria, de escritores em quem aprendi a confiar….

Da arte de não colecionar autógrafos
NoMínimo / 14/08/2007

Sempre fui – e digo isso sem orgulho, apenas uma daquelas constatações plácidas que vêm com o autoconhecimento – impermeável à emoção de pedir, que dirá colecionar, autógrafos. Uma dedicatória sincera garatujada por um amigo de fama literária restrita a dois quarteirões e meio sempre teve, na escala afetiva das minhas estantes, muito mais valor do que uma assinatura fria e carrancuda que possa ser arrancada de, sei lá, J.M. Coetzee himself numa noite memorável em Parati. Se essa inapetência me poupa de uma extensa quilometragem em filas, sem dúvida desvalorizará minha biblioteca em sebos futuros. A troca parece justa. O desapego aos rabiscos famosos, porém, não impedirá ninguém de se divertir com essa coleção online (via blog da Amazon). Dedicada quase exclusivamente ao universo da literatura anglo-americana, com alguns escritores de outras nacionalidades e nomes nada literários engrossando o caldo, ela permite o exercício deliciosamente barato de comparar, por exemplo, a assinatura ilegível de Thomas Pynchon, com seus traços que tentam se esconder atrás de si mesmos, com o floreado todo pimpão de H.G. Wells. Mais do que dois autógrafos, duas atitudes diante da literatura?

Publicar, verbo reflexivo?
NoMínimo / 13/08/2007

Não é novidade: fazer e escrever livro no Brasil é um péssimo negócio. Autores, editores e livreiros vivem de um mercado sem lógica. Para cada sucesso há incontáveis fracassos. Incontáveis e injustificáveis. Livros muito bons, com ótimo apelo comercial e qualidade literária passam nas mais brancas nuvens e dois anos depois do lançamento são vendidos a quilo ao papeleiro, porque nem as lojas americanas nem as superbancas de jornal se interessaram em adquirir aquele título para revender a 9,90. Então eu queria entender melhor por que tantos autores-blogueiros, por exemplo, gostariam tanto de ter os seus livros publicados por uma editora grande. Em que isso contribui, exatamente? Eu não consigo achar que ter o seu livro exposto numa boa livraria por alguns dias (porque as livrarias são pouco mais do que hotéis onde os livros dormem um dia ou dois) faça muito mais pelo seu sucesso literário do que divulgá-lo na internet, por exemplo. O que se quer? Ser lido ou fazer da literatura o seu ganha-pão? Hmm, e se a resposta for “nem uma coisa nem outra, mas ser carimbado oficialmente como escritor num mercado em que a informalidade costuma se confundir com a irrelevância” – não ficaria mais…

Literatura brasileira com merchandising (II)
Sobrescritos / 09/08/2007

“Das mais surpreendentes é a vida de tal faca: faca, ou qualquer metáfora, pode ser cultivada. E mais surpreendente ainda é sua cultura: medra não do que come porém do que jejua. Podes abandoná-la, essa faca intestina: jamais a encontrarás melhor que Tramontina.” *** “Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Mas um dia hei de ir – nas asas da Air France, ça va sans dire!” *** “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. Ao pé deles, degustaram com delícia sua cota de Maxi Goiabinha.” *** “Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no…

Cristovão Tezza: ‘O filho eterno’
Resenha / 08/08/2007

Acaba de sair o melhor romance brasileiro do ano – sim, em minha módica opinião e até o momento, será preciso fazer a ressalva? O fato é que 2007 vem me dando poucos argumentos para discordar dos leitores que, aqui mesmo na caixa de comentários do Todoprosa, insistem em situar nossa literatura contemporânea numa faixa de (in)competência entre a da Anac e a do beisebol praticado em campos nacionais. E como o blog, com raras exceções, prefere manter silêncio sobre livros que não possa elogiar, a literatura brasileira pouco tem dado as caras neste Primeira mão, o que é uma pena. Mas ficou mais fácil combater a versão literária do que Nelson Rodrigues chamava de nosso “complexo de vira-lata” depois de ler o romance “O filho eterno”, de Cristovão Tezza (Record, 240 páginas, R$ 36). Escritor curitibano nascido em Santa Catarina, Tezza, de 54 anos, é quase um autor consagrado – embora os limites dessa quase-consagração sejam tão constritos que ele continue sendo novidade para muita gente num ambiente cada vez mais marcado pela baixa condutividade de mérito. Livros como “Trapo”, “Breve espaço entre cor e sombra” e “O fotógrafo” garantiram a esse professor da Universidade Federal do Paraná, além…

Caixa-preta
A palavra é... / 07/08/2007

A caixa-preta são duas – uma para gravar conversas na cabine de comando, a outra para registrar dados técnicos do vôo – e não é preta, mas laranja-cheguei. Em certo sentido, é o avesso da mitológica caixa que Zeus confiou a Pandora, aquela que jamais deveria ser aberta porque continha todos os desastres do mundo: depois do desastre é que se abre a caixa-preta. Mas a velha fixação da humanidade em receptáculos lacrados e cheios de segredos ajuda a explicar o sucesso da palavra na linguagem comum. A tese mais aceita sobre a origem de “caixa-preta” (palavra composta, com hífen) aponta para um equipamento usado na Segunda Guerra Mundial pela Royal Air Force, a força aérea britânica. Não era um gravador, mas um radar que, nos bombardeiros, permitia “ver através das nuvens ou no escuro”. Como outros itens eletrônicos na aviação da época, era acondicionado numa caixa preta. Ao batizá-lo, porém, o jargão da RAF parecia destacar sobretudo a aura de mistério e respeito que cercava uma tecnologia obscura até para quem a usava. Com esse sentido, black-box estreou na língua inglesa por volta de 1945. O sentido que se tornaria o principal – “aparelhagem que grava dados sobre o…

Começos inesquecíveis: James Joyce

Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando pela estrada e a vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou um garotinho engrachadinho chamado bebê tico-taco. Seu pai lhe contava aquela história: seu pai olhava para ele através dos óculos; ele tinha um rosto peludo. Não deixa de ser uma prova de que não há palavras proibidas, apenas maior ou menor habilidade no uso delas, o fato de “Um retrato do artista quando jovem” (Alfaguara, 2006, com bela tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro), romance lançado por James Joyce em 1916, começar com a mais batida das fórmulas, “era uma vez” (once upon a time).