– Ele está fotografando há três anos, dá só uma olhada no trabalho – disse Maurice. – Aqui, esse cara. Repara na pose, na expressão. Quem ele te lembra? – Parece um pilantra – disse a mulher. – Ele é um pilantra, o cara é um cafetão. Mas não é disso que eu estou falando. Aqui, essa. Dançarina de cabaré nos bastidores. Te lembra alguém? – A garota? – Dá um tempo, Evelyn: a foto. A sensação que o cara captura. A garota tentando parecer adorável, exibindo a mercadoria, que aliás não é nada má. Mas repara no camarim, nas tralhas brilhosas todas, essa pobreza de papel laminado. – Você quer que eu diga Diane Arbus? – Eu quero que você diga Diane Arbus, isso seria bem legal. Eu quero que você diga Duane Michaels, Danny Lyon. Eu quero que você diga Winogrand, Lee Friedlander. Quer voltar alguns anos no tempo? Eu gostaria muito que você dissesse Walker Evans também. – Seu velho chapa. – Muito, muito tempo atrás. Antes até do seu tempo. Não sei por que o diálogo que abre “LaBrava”, de Elmore Leonard, que li há uns vinte anos, nunca me saiu da cabeça – nem todo…
“Se porrada educasse as pessoas, bandido saía da cadeia santo.” Que o presidente Lula fala a língua do povo já se sabia. O que ainda choca muita gente – mas talvez não devesse, num país capaz de transformar em febre a grotesca coreografia do “créu” – é ouvir de tão alta autoridade um palavrão desse quilate. “Porrada” e “porra” são tabuísmos tão velhos quanto o português, mas, mesmo sendo figurinhas fáceis na linguagem cotidiana, ainda não ganharam acesso aos salões do discurso educado. Por quê? Como se sabe, porrada tem dois sentidos principais: o de “pancada, cacetada”, que Lula usou, e o de “grande quantidade”. O primeiro não deveria, a rigor, ser considerado palavrão. Vem da acepção mais antiga de porra, hoje em desuso, que nada tinha de grosseira: clava, maça, cacete, arma dotada de cabeça redonda e haste alongada. Segundo o filólogo Corominas, deve seu nome – acredite quem quiser – ao alho-porro ou poró, com o qual tinha semelhanças de forma, por meio do latim porrum (alho). Se a porrada-pancada não é bem um palavrão, a associação de porra e seus derivados com sentidos chulos tornou-se tão dominante que contaminou tudo – até o alho, chamado de “poró”…
Começou a escrever porque tinha quinze anos, porque ninguém parecia querê-lo por perto e porque o que ele mais desejava na vida era reencenar para o mundo o velho número do patinho que se revela cisne no final. Cinqüenta e cinco anos depois, pegando com a faca uma pasta rosada extraordinariamente suspeita, espalhando-a numa torrada quadrada de pacote e jogando tudo na boca de poucos dentes verdadeiros remanescentes, o escritor se lembrou de sua juventude, do princípio daquela ciranda maluca de ler, escrever, ser lido, ler, escrever de novo… Vinham chamá-lo para cantar parabéns, uma das três coisas que mais abominava no mundo; as outras eram dentista e – o quê mesmo? Tentou não parecer um perfeito débil-mental enquanto entoavam aquelas palavras hediondas, às quais sua idade acrescentava agora o pecado do cinismo: muitos anos de vida, essa era muito boa. Aos quinze anos, não era ainda sequer um escritor: ridículo ter saudade daquilo. E, no entanto, havia alguma coisa ali, no fundo do papel em branco, na relação da palavra com a coisa ou dele mesmo com a coisa, sabia lá ele, mas alguma coisa havia ali, sim, de belo e bom que se perdera por inteiro e que,…
É literário como poucos o Oscar deste domingo. Não apenas porque três dos cinco candidatos a melhor filme são baseados em romances, mas também – e principalmente – porque pelo menos dois deles são adaptações muito acima da média de livros excelentes. O “pelo menos dois” da frase anterior cumpre a função de evitar uma injustiça com “Sangue negro”, de Paul Thomas Anderson, baseado no livro Oil!, lançado em 1927 pelo escritor americano Upton Sinclair. Destes nada posso falar, nem livro nem filme, pois não vi um nem li o outro – o professor Bayard que me desculpe. Posso falar de “Desejo e reparação”, de Joe Wright, baseado no romance “Reparação” (Companhia das Letras), do inglês Ian McEwan, e de “Onde os fracos não têm vez”, adaptação feita pelos irmãos Coen do thriller “Onde os velhos não têm vez” (Alfaguara), do americano Cormac McCarthy. São dois belos e raros filmes, que bagunçam por completo aquela velha máxima – maldosa, mas freqüentemente aplicável – de que quanto melhor o livro, pior o filme e vice-versa. “Reparação” é forte candidato a grande romance deste início de século. O longa-metragem não chega perto disso, mas é notável como consegue ser fidelíssimo a um…
A origem do nome Cuba é uma zona conflagrada em que teses eruditas se enfrentam há tempos, sem um vencedor à vista. Se essa guerra língüística de guerrilhas não se compara em ardor àquela outra, política e reavivada pela renúncia de Fidel Castro, entre castristas a anticastristas, ostenta em compensação um número maior de lados na disputa. Embora cuba seja uma palavra espanhola (e também portuguesa) de bom pedigri latino – derivada de cuppa e com o sentido de tonel, recipiente grande, especialmente para guardar bebida –, o nome do país caribenho nada tem a ver com isso. Todas as teses etimológicas buscam a origem de Cuba em termos indígenas: coa + bana (“lugar grande”), ciba (“montanha”) e ainda cubanacan (“lugar central”). O Houaiss registra que a palavra aparece no diário de Colombo em 1492. Isso não impediu o navegador de batizar a ilha à moda européia, chamando-a Juana em homenagem a Juan de Castilla, herdeiro do trono espanhol. Mais tarde, os colonizadores ainda tentaram emplacar os nomes de Fernandina, Santiago e Ave María. Acabou prevalecendo Cuba mesmo. O interesse da questão escapa de ser simplesmente acadêmico devido à transformação pela qual passou a palavra a partir da revolução de…
Pouco depois da morte de Mãe, a Brepe deu para pular dentro do sono de Carmona. Fitava o homem enquanto ele se despia e, quando ele apagava a luz, arqueava as costas e ia se erguendo nas patas, pronta para caçar o sonho de Carmona e depená-lo assim que levantasse vôo. Mas os sonhos de Carmona não eram pássaros, e sim gatos: ásperas trevas de gatos, línguas de gato movendo-se entre tições de negra luz. O homem dormia de boca aberta e, quando ele adentrava o cone de escuridão onde pairavam os sonhos, uma manada de gatos saía de sua boca rasgada por berros de cio e mergulhava no rio dos engenhos de açúcar. É a primeira vez que promovo aqui o cruzamento das duas seções citadas no título acima, mas tenho um bom motivo. Normalmente, a eleição de um Começo inesquecível exige um tempo de maturação de leitura que é, por definição, incompatível com o espírito apressadinho abrigado sob a rubrica Primeira mão. Certo, mas as frases iniciais da recém-lançada edição brasileira de “A mão do amo” (Companhia das Letras, tradução de Sérgio Molina e Lucas Itacarambi, 168 páginas, R$ 36), romance publicado em 1991 pelo argentino Tomás Eloy…
A cara-de-pau não é apenas um regionalismo brasileiro, usado com o mesmo sentido – de descaramento, desfaçatez, cinismo, desembaraço diante dos maiores apertos – que, em algumas regiões de Portugal, tem a expressão “cara estanhada”. Mais que um jeito de falar, trata-se de uma instituição, como provam mais uma vez casos como a farra dos cartões corporativos e o escândalo que envolve o reitor da UnB. É difícil dizer quando surgiu a cara-de-pau – e aqui estamos falando do termo, naturalmente, visto que o comportamento nomeado por ele é tão velho quanto a humanidade. Ausente de dicionários antigos, a palavra composta, que tanto pode exercer o papel de substantivo quanto o de adjetivo, aparece nos léxicos modernos como uma forma subsidiária de “caradura”, vocábulo hoje menos usado, do qual é provavelmente uma variação cômica. Se caradura foi registrada pela primeira vez por um lexicógrafo em 1913, as abonações literárias de cara-de-pau que aparecem no bom “Dicionário de Usos do Português do Brasil”, de Francisco S. Borba, datam dos anos 1960 e 1970 e foram extraídas de obras célebres por fixar a linguagem falada no submundo de grandes cidades brasileiras, como “Navalha na carne”, de Plínio Marcos, e “Malagueta, Perus e…
Conheceram-se na oficina de ficção coordenada por um escritor de barba espessa e fama rala. O que primeiro chamou a atenção dela foi a qualidade do diálogo que ele conseguia escrever, vozes se cruzando com uma espontaneidade e um fio inacessíveis a ela, aos outros alunos e talvez até, quem sabe, ao professor. Já a atenção dele foi despertada primeiro por aquele olhar, o olhar morno e lento que ela ficava revezando entre ele e seus próprios pés, como se seu pudor viesse em ondas, enquanto o ouvia ler em voz alta o diálogo habilmente plagiado do Sabino. Foi depois desse dia, a princípio num espírito de retribuição mas logo com curiosidade genuína, que ele expandiu sua atenção dos olhos para o texto, e não demorou a se impressionar com a força dos adjetivos luxuriantes que ela espalhava aqui e ali numa narrativa de resto seca, feito plantas carnívoras de estufa em vasos perdidos no deserto. Não é incomum, especialmente em ambientes artificiais como o de uma oficina de ficção, que metáforas ganhem vida: ele logo descobriu que estava projetando no corpo dela, sardento e quebradiço nos trechos que o decote e a saia deixavam entrever, a expectativa de uma…
Fujo do carnaval há muitos anos, mas mesmo a indiferença tem gradações. Dando uma espiada no arquivo do Todoprosa, constato – não sem surpresa – que ano passado fiz alguns acenos para Momo, entre eles uma discussão sobre a presença do ziriguidum na ficção brasileira e, passando da teoria à prática, nada menos que um conto de carnaval feito em casa. Mas não, este ano não vai ser igual àquele que passou. A menos que se considere como parte do delírio carnavalesco a história bizarra de Philip M. Parker (em inglês), que já publicou mais de 85 mil livros e diz que leva em média vinte minutos para escrever cada um. Aproveito que saí de fininho do salão para tirar umas curtas férias. O blog volta a ser renovado dia 13. Até lá.