Hoje, como todo mundo deve estar cansado de saber, faz cem anos que morreu Machado de Assis. Entre os incontáveis eventos comemorativos, cadernos especiais, exposições, tombamentos, livros sobre esse ou aquele aspecto de vida e obra do escritor genial, é bom tomar cuidado – o risco de enfado é grande. Vale a pena resistir a esse sentimento para ouvir a melhor notícia da temporada: o lançamento da nova – revista e ampliadíssima – edição das obras completas de Machado pela Nova Aguilar. O que antes cabia em três volumes agora precisa de quatro, depois do acréscimo de 66 contos (a melhor novidade), uma atualizada fortuna crítica (que corrige o maior defeito da edição anterior) e mais uma enormidade de crônicas, cartas e peças de teatro. Passada a espuma da efeméride, são esses quatro livros de capa dura que deixarão o Brasil melhor do que era antes de 2008. Pena que o pacote só seja vendido inteiro, nada de volumes avulsos, e custe R$ 550. Mais detalhes sobre o lançamento podem ser lidos no “Globo” de hoje – lamentavelmente, com acesso fechado no site do jornal. Mas para não deixar o blog alheio ao único assunto literário possível nesta segunda-feira, e…
Uma dobra no tempo traz de volta este post publicado em 18/10/2006: * Devo à conjunção de um espelho e uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. A primeira frase de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, o primeiro conto da coletânea “O jardim de caminhos que se bifurcam”, lançada em 1941, resume Jorge Luis Borges. Ou pelo menos o Borges dos labirintos, da erudição absurda, lúdica e ardilosa, dos tempos paralelos – tudo aquilo que daria origem ao borgianismo. O livro ganhou três anos depois o acréscimo de outros contos fundamentais, entre eles “Funes, o memorioso”, e o nome de “Ficções”. O melhor título do escritor argentino, na minha opinião. (Cito aqui a tradução que consta das “Obras completas”, editora Globo, 1998, mas com uma liberdade: no título do livro, prefiro “caminhos” a “veredas”, que pode até ser uma tradução mais precisa do original senderos, mas soa meio pesado.)
Voto, do latim votum, é uma palavra que veio do vocabulário religioso para entrar no da política. Seu sentido original, que ainda conserva, é o de promessa, desejo íntimo, e por extensão o de oferenda com que se paga tal promessa, consagração. Do voto de castidade dos padres aos votos de boas festas, das velas votivas aos ex-votos com que os fiéis agradecem as graças que acreditam ter recebido de Deus ou de algum santo, não faltam exemplos da permanência desse núcleo semântico religioso na linguagem moderna. De forma menos evidente, as bodas (casamento) também têm a mesma origem, segundo a maioria dos etimologistas. E a própria palavra devoção é descendente de votum, particípio do verbo latino vovere (obrigar-se, prometer), um termo de raiz indo-européia aparentado de outros do sânscrito e do grego. Se a história do voto devocional vem de muito longe, seu sentido político hoje dominante – “modo de manifestar a vontade ou opinião num ato eleitoral ou assembléia”, segundo o Houaiss – é bem mais recente. Registrada em inglês a partir do século 15 ou 16, consta que essa acepção da palavra vote nasceu no parlamento da Inglaterra e logo foi importada pelas línguas latinas, a começar…
Imagine o processo de fazer um livro como se estivéssemos na indústria automobilística. Só faz sentido fabricar um carro se for para ele andar, certo? O livro também precisa andar, quer dizer, cumprir sua própria função. E qual é a função do livro, me diz? Vender? Que vender! Se fazer ler, é óbvio. Ser lido. Esta é a viagem, o passeio. Carros precisam andar. Podem se destacar por serem velozes, lentos mas confiáveis, elegantes, econômicos, seguros, bonitos, espaçosos, baratinhos, o escambau. O mundo dos quatro-rodas, como o da literatura, é infinitamente vário. Mas uma característica todos os carros compartilham: precisam andar. Se não andam, não são carros. Não são nada. Sei. O problema é que, quando você vai construir o seu carro, ou seu carrinho de rolimã, como quiser, ou puder, você tem que fabricar peça por peça. Tem o design, naturalmente: o projeto geral, a cara do bicho, a distância entre eixos, a, digamos, proposta. Isso é importante e até divertido. O problema que pouca gente leva em conta é que, para o carro andar, tem também um monte de parafusos e porcas e bielas e rolamentos e correias e engrenagens e travas e juntas e molas e rebites…
O choque, o luto e o avassalador sentimento de perda que dominaram a comunidade da Stock Car após a morte, aparentemente por suicídio, do escritor David Foster Wallace levou a NASCAR a cancelar o restante da temporada de 2008 em respeito ao aclamado mas atormentado autor de Infinite Jest, A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again e Brief Interviews With Hideous Men. (…) “Estou sendo invadido por sentimentos de – à falta de um conceito melhor – incongruência”, disse Jimmie Johnson, piloto do Chevrolet número 48 da equipe Lowe, que é conhecido no mundo das corridas por seu hábito de presentear os fãs com exemplares dos livros de Wallace. O trecho acima é do jornal satírico The Onion, um “Planeta Diário” americano que se recusa a morrer. Beirando o mau gosto, como de hábito, acerta, também como de hábito, na mosca ao ampliar pela lente da caricatura um sentimento generalizado de luto pela morte do escritor americano de 46 anos. O Arts & Letters Daily de hoje compila 22 links, entre eles o do “The Onion”, que dão uma idéia do alcance dessa epidemia de tristeza, confusão e – sim, parece ser o caso – leitura e releitura de…
O prêmio Jabuti de melhor romance foi anunciado agora há pouco para “O filho eterno”, de Cristovão Tezza, que sempre foi tratado aqui como o grande livro brasileiro do ano passado. A notícia merece comemoração: não é sempre que prêmios acertam assim. É meio chato lembrar isso, mas há menos de três semanas fiz um exercício besta aqui no blog, constatando que apenas três romances lançados no Brasil em 2007 eram finalistas tanto do idoso Jabuti quanto do jovem Portugal Telecom: além do de Tezza, favoritíssimo, eram eles “O sol se põe em São Paulo”, de Bernardo Carvalho, e “Antonio”, de Beatriz Bracher. Uma magra faixa de interseção em meio a tiros para todos os lados. E não é que o galardão quelônio escalou os três títulos no pódio, nessa ordem e tudo? O que isso prova? Talvez nada. Mas torço para que reflita uma revalorização da convergência crítica, da busca de um solo comum de referências em que o debate literário possa voltar a rolar direito. Nada a ver com consensos autoritários, mas, depois de tantos anos de w.o. acadêmico e pulverização blogueira, um idioma comum tem nos feito falta.
Com a partida entre “O amor não tem bons sentimentos”, de Raimundo Carrero, e “O sol se põe em São Paulo”, de Bernardo Carvalho, um clássico apitado por Nelson de Oliveira, começou finalmente a segunda edição da Copa de Literatura Brasileira.
Como esquecer o dia em que Marte atacou? Post publicado em 14/4/2007: * Ninguém teria acreditado, nos últimos anos do século XIX, que este mundo era atenta e minuciosamente observado por inteligências superiores à do homem e, no entanto, igualmente mortais; que, enquanto os homens se ocupavam de seus vários interesses, eram examinados e estudados, talvez com o mesmo zelo com que alguém munido de um microscópio examina as efêmeras criaturas que fervilham e se multiplicam numa gota d’água. O começo do clássico de ficção científica “A guerra dos mundos” (Alfaguara, tradução de Thelma Médici Nóbrega, 2007), romance lançado em 1898 pelo escritor inglês H.G. Wells (1866-1946), impressiona pela precisão “científica” da prosa. A frieza do tom torna ainda mais sinistra a ameaça de invasão marciana que prenuncia.
“Que crise?”, perguntou o presidente Lula. Bom, que tal essa crise-mamute que ameaça engolfar o mundo, levantando até especulações de que a de 1929, em comparação, pode acabar parecendo um piquenique? Provando que a interdependência global, embora tenha se acelerado nas últimas décadas, não é uma invenção contemporânea, a palavra saiu do grego krísis para o latim crisis e daí para o mundo. Chegou ao francês no século 15, ao inglês e ao alemão no 16, ao italiano no 17 e ao português no 18. Sem mencionar o sueco, o holandês, o turco etc. Globalização é isso. A diferença é que, hoje, a vertigem eletrônica tornaria o contágio lingüístico mais rápido, como tem tornado o financeiro. A palavra nasceu no vocabulário da medicina. Referia-se ao momento na evolução de uma doença em que se definia para o médico o caminho que o paciente tomaria numa encruzilhada: de um lado a cura, do outro a morte. O grego krísis quer dizer decisão, definição e, por extensão, momento decisivo. O que explica também o sentido da palavra crítico (de arte, por exemplo), um profissional encarregado de decidir, de julgar o mérito de algo (no caso, uma obra). Foi apenas no século 19,…
Na América Latina e na Espanha, o mais próximo que temos de um Deus da literatura se chama Paul Auster. Essa frase do escritor boliviano Edmundo Paz Soldán em seu blog no site “Boomeran(g)” me fez engasgar com a pipoca. Está certo que opinião é mercadoria baratinha – um dos dramas da blogosfera. Está certo também que, do ponto de vista literário, o Brasil não fica exatamente na América Latina, embora faça fronteira com ela. Por fim, não é menos certo que o escritor do Brooklyn merece mais respeito do que ultimamente tem recebido da crítica: mesmo tendo parado de acompanhar seus lançamentos há alguns anos, quando seu lado mais pesadamente alegórico – seu pior lado, a meu ver – começou a prevalecer, já tive minha fase austeriana compulsiva; até hoje considero “Leviatã” um grande romance e “Trilogia de Nova York”, um livro-chave para entender a literatura dos anos 80. Feitas todas essas ressalvas, estarei exagerando ou “Deus da literatura”, com inicial maiúscula e tudo, soa como um dos maiores despautérios dos últimos anos? Em tempo: um amigo meu, que de bobo não tem nada, gostou muito do último livro de Auster, “Homem no escuro” (Companhia das Letras). Estou coletando…
A elegante revista literária “Arte e Letra”, de Curitiba, estreou em maio deste ano e, como tem periodicidade trimestral, está apenas no número dois – ou edição B, como preferem os editores. Mas já é um desses milagres ou acidentes editoriais que, sendo inteiramente imerecidos por nosso mercado leitor, só nos resta torcer para que não se acabem depressa demais. (O critério alfabético sugere uma expectativa de vida de no máximo vinte e poucas edições, ou seja, em torno de seis anos. É coisa à beça no gênero, mas acho que eu consideraria a infinitude dos números mais reconfortante.) Embora o timing seja obviamente fortuito, o fato de a edição B trazer uma rara tradução de David Foster Wallace para o português é também eloqüente. Num momento em que o luto pesado pela morte prematura do talentoso escritor americano vai se espalhando para nublar o horizonte até de quem nunca o leu, os fragmentos do ensaio sobre o cineasta David Lynch (que consta do livro A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again), com tradução de Caetano Waldrigues Galindo, lembram a importância de uma coisa chamada edição inteligente – ou inteligência editorial, tanto faz. Nunca é demais lembrar que DFW…
Nem foi preciso citar Woody Allen entre os admiradores americanos de Machado de Assis. Outro Allen, o Ginsberg, cumpriu para minha surpresa esse papel, com uma frase de 1961 em que compara o escritor carioca a Kafka – no que discorda de Philip Roth, que prefere o paralelo com Samuel Beckett. A esses nomes bastou juntar os suspeitos de sempre, como Susan Sontag e Harold Bloom, além de algumas vozes brasileiras, e o resultado foi a honesta e otimista reportagem sobre Machado que o “New York Times” (cadastro gratuito, em inglês) publicou na última sexta-feira. Com o gancho da Semana Machado em Nova York, em que seminários se alternam com exibições de filmes para lembrar o centenário da morte do autor, o título “Depois de um século, uma reputação literária enfim floresce” anuncia um texto em que o correto Larry Rohter, o homem que Lula quis expulsar do Brasil, trata Machado como o gênio que ele é e especula sobre as razões de sua demora em penetrar no cânone internacional – por internacional entenda-se anglófono, of course. Quando digo que a reportagem é otimista, refiro-me à presunção de que a longa batalha esteja vencida, como se, um século depois, Machado…
Essa página do “Los Angeles Times” reúne algumas entrevistas de David Foster Wallace disponíveis no YouTube – imagens que estão destinadas a serem vistas e revistas pelos fãs em busca de uma inexistente “explicação” para o fato de o escritor americano de 46 anos, um dos mais festejados de sua geração, ter se enforcado em sua casa na sexta-feira. Se David Foster Wallace já era um tipo de escritor que, mais que leitores, tinha seguidores, adeptos, conversos, o culto a seu nome deve ter vida longa garantida pelas circunstâncias de sua morte. Seu único livro lançado no Brasil é a coletânea de contos “Breves entrevistas com homens hediondos” (Companhia das Letras, 2005). O romance que o transformou numa estrela da nova literatura americana dos anos 90, Infinite Jest, permanece inédito por aqui. Talvez por ser um tijolo de mais de mil páginas, ou quem sabe pelo mesmo motivo que, antes da página cem, me levou a abandonar – ou adiar para um futuro indeterminado, o que dá no mesmo – sua travessia: dono de um talento inegável, exuberante, Wallace era tão apaixonado por sua própria voz que fazia da auto-indulgência uma arte. Há quem goste, mas, definitivamente, sou de outra…
Quando morre um poeta, todos choram. Post publicado em 12/11/2006. * Antes tenho de fazer a barba, disse ele, não quero ir ao hospital com uma barba de três dias, por favor, vá chamar o barbeiro, mora na esquina, é o senhor Manacés. Mas não temos tempo, senhor Pessoa, replicou a zeladora, o táxi já está na porta, seus amigos já chegaram e estão à sua espera na entrada. Não importa, respondeu ele, sempre há tempo. Ajeitou-se na poltronazinha onde o senhor Manacés habitualmente lhe fazia a barba e pôs-se a ler as poesias de Sá-Carneiro. O singelo início da novelinha “Os três últimos dias de Fernando Pessoa”, do italiano Antonio Tabucchi (Rocco, tradução de Roberta Barni, 1996), talvez não seja memorável para qualquer um. É para mim. E o que vem em seguida não é menos: no hospital, Pessoa é visitado por um séquito de heterônimos antes de morrer.
O conto A fruta por dentro, inédito em livro, que publiquei na “piauí” deste mês, está com acesso livre no site da revista.
Quem levantou a bola foi o Pedro Curiango, leitor das antigas aqui do blog: o prêmio Juan Rulfo concedido ontem ao escritor português António Lobo Antunes teve até agora na imprensa brasileira um tratamento semelhante ao da morte de Luciana Stegagno Picchio – algo que talvez se possa chamar de escola Bartleby de jornalismo, eufemismo para essa indiferença espessa, bovina, que vai transformando nossa imprensa cultural num mero puxadinho das seções de celebridades. É possível que aquele meu pesadelo recorrente – um mundo pautado, iluminado, fotografado e paginado à semelhança da revista “Caras” – tenha, mais uma vez, me levado a acordar apocalíptico. Peço desculpas se estiver cometendo alguma injustiça, mas o que encontrei nas folhas que percorri hoje foi um bruto silêncio. Um silêncio confirmado pelo Google, que traz incontáveis páginas sobre o fato. Todas da imprensa e da blogosfera de Portugal (com uma única exceção para confirmar a regra). E, na boa, ainda que um ou outro escriba brasileiro tenha repicado a notícia, o resultado até o momento é, na melhor das hipóteses, anoréxico. Sim, óbvio: o Todoprosa também silenciou ontem, mas ele tem um álibi – notícia nunca foi o negócio do blog. Quando se divulga algo…
Luciana nos deu uma “História da Literatura Brasileira”; o Brasil retribuiu com um silêncio ensurdecedor na hora de sua morte, em 28 de agosto. Soube da notícia por um leitor do blog de Luis Nassif e, na rede, há o emocionado texto da professora Vera Lúcia de Oliveira, que ensina na Itália. Em Portugal, o presidente Cavaco Silva pronunciou-se oficialmente lembrando seu papel para a cultura portuguesa. E eu, mais atrasado ainda, só soube agora, por esse post no blog-por-um-mês que o editor e escritor Paulo Roberto Pires está tocando no site da revista “Bravo!”, que morreu a professora italiana Luciana Stegagno Picchio, apaixonada organizadora da poesia completa de Murilo Mendes e uma das maiores divulgadoras da literatura de língua portuguesa na Europa. Sua “História da Literatura Brasileira”, lançada nos anos 70 na Itália e, revista, publicada aqui em 1997 numa bonita edição da Nova Aguilar, é um livro que vale a pena conhecer. Não por conter análises originais, que nunca foram seu objetivo, mas por uma ambição de dar conta de tudo, todos os séculos e escolas, em apenas 744 páginas – algo que talvez só um estrangeiro pudesse ousar. O silêncio em torno da morte de Luciana no…