A correspondência entre J.M. Coetzee e Paul Auster, que começou em 2008 e que os teria transformado em “grandes amigos”, será lançada em maio sob o título Here and now (Aqui e agora) pela editora Faber. * Não sou um grande fã de cartas de escritores, embora reconheça o valor de algumas correspondências, mas adorei essa que Honoré de Balzac escreveu em 1840 para sua noiva, a condessa polonesa Hanska, no meio de uma de suas famosas crises financeiras: Cheguei ao fim da minha resignação. Penso deixar a França e levar meus ossos ao Brasil numa empresa louca, e que escolho por causa da sua loucura. Não quero mais suportar a existência que levo; basta de trabalhos inúteis. Vou queimar todas as minhas cartas, todos os meus papéis (…). Darei procuração a alguém, deixá-lo-ei explorar minhas obras e irei buscar a fortuna que me falta: ou voltarei rico ou ninguém poderá saber o fim que eu tiver levado. É este um projeto excessivamente fixo, que será posto em execução este inverno, com tenacidade, sem remissão. O projeto não foi posto em execução, nem naquele inverno nem nunca. Foi só por meio de seus personagens, como lembra Paulo Rónai no delicioso…
A internet é aliada da inteligência, mas ama a burrice De um lado, a internet traz a promessa concreta de um novo Iluminismo. Do outro, acena com as sombras de uma nova Idade Média. Qual dos lados vai prevalecer nesse cabo-de-guerra? E quem disse que um deles vai prevalecer? (Leia mais.) Entre Narciso e o suicídio, a literatura balança A literatura é hoje um campo que se questiona de modo histérico, com resultados entre o suicida e o narcísico. O discurso literário parece sentir, de alguma forma, que perdeu o direito à existência. O que quer que o justificasse perante si mesmo não o justifica mais. (Leia mais.) Ser universal é um direito que se conquista Os sinais de desparoquialização do ambiente literário brasileiro estão por toda parte, mas deve-se levar em conta que, numa desconstrução da máxima atribuída a Tolstói, ninguém estará disposto a acreditar na universalidade de uma literatura que não seja reconhecida em sua aldeia. (Veja mais.) Mamilogate, o momento mais ridículo do Facebook Se existe um lado bom no neopuritanismo do Facebook, ele acaba de ser encontrado. O tom de falsa seriedade com que a revista “New Yorker” expôs em seu site o ridículo de quem…
Millôr Fernandes A morte de Millôr Fernandes – frasista, cronista, cartunista, artista plástico, dramaturgo, tradutor, pensador, poeta, filólogo, inventor do frescobol, gênio do humor e do pessimismo anarco-humanista – atacou a cultura brasileira na esquina da inteligência com a alegria. (Leia mais. E mais.) Antonio Tabucchi Dois cancelamentos seguidos nos impediram de ver na Flip o maior aliado da língua portuguesa nascido em um país não lusófono. Em sua novela “Os três últimos dias de Fernando Pessoa”, o poeta português que era o ídolo literário do escritor italiano adia a morte, dizendo: “Sempre há tempo”. Até não haver mais. (Leia mais.) Ivan Lessa Uma das burrices nacionais que levaram Ivan a virar um londrino de bengala e sobretudo foi a nossa mania, cada vez mais saidinha, de achar que a inteligência – inseparável do senso de indignação moral, embora isso muita gente não entenda – pode se subordinar a conveniências políticas sem virar burrice. (Leia mais.) Gore Vidal Vidal venerava as Letras com L maiúsculo a ponto de, mesmo sofrendo com seu declínio – como evidentemente sofria com o declínio americano – não admitir desistência: “Idealmente o escritor só precisa ter como audiência os poucos que o entendem. É cobiça…
httpv://www.youtube.com/watch?v=OAEhjkSgmFc&feature=player_embedded Achei bonitinho e simpático esse vídeo recém-lançado pela editora Intrínseca, em que um jovem casal representa no dia a dia a polêmica livro analógico x livro digital. Seu maior trunfo é não reduzir a questão a um desses duelos maniqueístas em que nossa inteligência adora se afogar, como se a complexidade do mundo pudesse ser compreendida em termos de anjos e demônios, mas em vez disso brincar com o lado bom e o lado ruim de cada suporte. Parece óbvio – e é. Mas não deixa de ser também um sinal de que o atraso tecnológico do mercado editorial brasileiro começa finalmente a ser deixado para trás.
Será ou não um preconceito pensar que não há exceções à regra segundo a qual nada de bom se pode esperar de quem responde ‘Fernão Capelo Gaivota’ à pergunta ‘Qual é o seu livro preferido?’. A disposição retrospectiva do fim do ano me leva longe: desencavei aqui o comentário que fiz em 2009 sobre um saboroso artigo (trechinho acima) publicado no jornal espanhol “El País” acerca dos riscos de dar livros de presente. Assinado por Leila Guerriero, o texto satiriza com humor afiado a tendência a um certo esnobismo que costuma atacar em maior ou menor grau todo mundo que se considera bom leitor. Trata-se de terreno pantanoso: para alguns, o nome desse esnobismo é simplesmente bom gosto, enquanto para outros é preconceito mesmo. De uma forma ou de outra, multiplicam-se as armadilhas no caminho de quem, inocente e bem intencionado, escolhe um título para dar de presente. Quando acerta na mosca, um livro provavelmente conta mais pontos do que qualquer outro regalo em sua faixa de preço. No entanto, o mesmo exemplar de “Cinquenta tons de cinza” que seria de bom tom dado a cinquenta pessoas pode reduzir seu filme a cinzas nas mãos da quinquagésima primeira. A verdade…
O ano que está terminando foi feliz para quem ama livros propriamente ditos – de papel e tinta, cola e costura – e tem grandes buracos na estante que gostaria de preencher. O que significa dizer que também foi generoso com aqueles que tiverem disposição e fundos para investir num presentaço natalino que o personagem mencionado acima não esquecerá jamais. O grande acontecimento do fim do ano é o início do relançamento, pelo selo Biblioteca Azul da editora Globo, da famosa edição do gigantesco painel ficcional “A comédia humana”, de Honoré de Balzac, organizada pelo crítico húngaro-brasileiro Paulo Rónai. Em capa dura, com mais de 800 páginas em média, os quatro primeiros de dezessete volumes chegaram este mês às livrarias ao custo de R$ 74,90 cada um. Acompanha-os o volume mais magro (248 páginas, R$ 39,90) “Balzac e a comédia humana”, coleção de ensaios do próprio Rónai que traz em cada linha aquela combinação rara de erudição, legibilidade e gentileza que era sua marca e que faz dele o melhor cicerone que um leitor poderia desejar ao se aventurar pelo universo (poucas vezes a palavra foi tão apropriada a um conjunto de ficções) criado pelo escritor francês ao longo de…
httpv://www.youtube.com/watch?v=h1DDndY0FLI Mmh, yes. Inspirada pelo famoso monólogo de Molly Bloom que encerra “Ulisses”, o romance de James Joyce, essa bela e hipnótica canção de Kate Bush (faixa-título do álbum The sensual world, de 1989) é forte candidata ao posto de realização mais alta da fusão de pop e literatura que é a razão de ser desta seção. Referências literárias nunca faltaram na obra personalíssima da cantora e compositora inglesa, que conheceu seu primeiro sucesso em 1978 com Wuthering Heights (“O morro dos ventos uivantes”). Mas aqui temos uma espécie de culminância. “…e aí ele me perguntou se eu sim diria sim minha flor da montanha e primeiro eu passei os braços em volta dele sim e puxei ele pra baixo pra perto de mim pra ele poder sentir os meus peitos só perfume sim…”, diz Molly (na tradução de Caetano Galindo). A versão de Kate: “Ele disse que eu era uma flor da montanha, sim/ Mas agora eu tenho poderes sobre um corpo de mulher, sim/ Saindo da página para dentro do mundo sensual”. E mais à frente: “Eu disse, hmmm, sim”. O gemido antes do sim marca a passagem da letra para a sensação. Aprimorar Joyce é difícil, mas…
“Ficção completa”, de Bruno Schulz: O escritor polonês (1892-1942) ficou marcado pela sombra de Franz Kafka, que como ele era um judeu europeu desenraizado. A ligação entre os dois foi estimulada pelo próprio Schulz, que chegou a assinar uma tradução de “O processo” que não fez, mas tem valor dúbio. A verdade é que sua literatura de estonteante originalidade não deve nada a ninguém. O principal indício da diferença entre os dois escritores está no modo como tratam a linguagem. Em Kafka ela mantém uma superfície lisa, homogênea e próxima do tédio dos relatórios, enquanto a narrativa enlouquece por baixo. Em Schulz o enlouquecimento poético da prosa é o próprio espetáculo. Os dois são alucinógenos, mas Kafka é uma substância injetável e Schulz, uma bebida de estalar a língua e lamber os beiços (leia mais). . “O espírito da prosa”, de Cristovão Tezza: Livro corajoso e único no cenário brasileiro, em que um escritor de sucesso reflete sobre sua formação, expõe dúvidas e fraquezas e defende teoricamente suas escolhas estéticas no quadro histórico da prosa de ficção. Tezza faz uma defesa enfática de algo que grande parte de nossa inteligência literária tem gostado de tratar como defunto, muitas vezes com…
A dar fé ao viajante inglês William Boyd Sennett, que em 1819 teria tido diante dos olhos as memórias posteriormente perdidas do então recém-falecido bispo Antônio Simão das Neves (e não vejo por que não lhe dar mais fé do que à arenga anticlericalista e factualmente vaga que no fim daquele século publicaria em São Paulo o anarquista Vicenzo Cucco, outra fonte habitualmente consultada pelos estudiosos da história de Simão), a dar fé a Sennet, como eu ia dizendo, no rigoroso inverno mineiro de 1777 o então jovem padre baiano viu-se com a alma “toda em farrapos”, numa crise de fé que teria como fulcro o amor (se platônico ou carnal, nunca se pôde comprovar) por dona Maricota, esposa de um comerciante de pedras preciosas de Vila Rica chamado Olegário, o que bem poderia configurar incidente banal ou ao menos não muito destoante das provações sensuais enfrentadas por tantos homens de batina ao longo dos séculos, porém (ai, porém), naquele instante demoníaco o futuro bispo se pôs a febrilmente deitar palavras ao papel em surto logorreico de todo semelhante a um transe de possessão, ao qual não faltavam olhos revirados, gemidos de dor excruciante e uma espuminha a borbulhar nas…
Cheguei ao romance Damage (“Perdas e danos”), com o qual a irlandesa Josephine Hart debutou na literatura em 1991, por meio de sua adaptação cinematográfica. O filme dirigido por Louis Malle e estrelado por Jeremy Irons e Juliette Binoche me parece até hoje – tratei de revê-lo recentemente – uma obra rara em sua combinação de simplicidade narrativa com capacidade de cavucar o fundo do poço. É difícil tirar da cabeça certas cenas do explosivo triângulo amoroso que tem no vértice a bela Anna Barton, figura misteriosa e sombria, e nos cantos da base seu jovem noivo Martyn, jornalista e gente boa, e o pai dele, Stephen Fleming, importante político inglês e narrador da história. Lançado no Brasil pela editora Record com tradução de Ana Deiró, o livro deixa claro que Malle, longe de extrair leite de matéria rochosa (como acontece algumas vezes no trânsito tumultuado entre literatura e cinema), apenas foi feliz ao transpor para a tela a atmosfera perturbadora criada pela autora. A linguagem do romance é simples a ponto de ser convencional, mas o que Hart consegue dizer com ela tem uma força notável. Nem só de alta literatura vive a seção “Que cena!” A cena abaixo,…
Curioso pela migração de gênero e público, comecei a ler “Morte súbita”, o primeiro “romance adulto” de J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter. Pouco mais de meia hora depois tinha parado de ler “Morte súbita”, o primeiro “romance adulto” de J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter. A leitura teve morte súbita – e vale registrar que eu tinha optado pelo original, The casual vacancy, o que inocenta do crime a tradução brasileira recém-lançada pela Nova Fronteira – por doses cavalares de academicismo e clichê na trama e na linguagem. Não, claro que isto não é uma resenha. Só quem lê uma obra inteira, e com ponderação, pode se atrever a resenhá-la. Mas é um toque: a vida é curta para tanto livro, e “Barba ensopada de sangue” está aí mesmo. * Todos sabemos que juízos estéticos baseados em ideias como “belo” e “sublime” pertencem ao passado. Mas o que significa a predominância contemporânea de categorias como “fofo” e “interessante”? O recém-lançado livro Our aesthetic categories (Nossas categorias estéticas), da poeta e crítica literária Sianne Ngai, acha que significa muito. Resenha da Slate, em inglês, aqui. * A entrevista dada à “Folha de S. Paulo” pelo crítico Rodrigo Gurgel,…
O blog vizinho “Veja Meus Livros” está recebendo até o próximo dia 9 inscrições para um concurso de microcontos no formato Twitter, em parceria com a editora Globo. Os vencedores receberão como prêmio uma pequena montanha de livros. O desafio é resumir, em até 140 caracteres, a saga de Sherazade, a contadora de histórias das “Mil e uma noites”. Tarefa dura: na verbosidade obrigatória da moça que noite após noite entretinha o sultão com suas narrativas para não morrer, 140 caracteres dariam conta de uns poucos segundos. Estarei entre os jurados. O microconto ultrassintético continua sendo, a meu ver, o maior desafio de quem pretende usar o Twitter para fazer ficção. É estranho que tenha sido um gênero definitivamente menor – com trocadilho, claro – no primeiro festival de ficção do Twitter, que durou cinco dias e terminou ontem. Há mais Sherazades do que Daltons no mundo. O Twitter Fiction Festival teve um grande e indiscutível mérito: reunir gente de todo o planeta em torno da hashtag #twitterfiction. O clima – exagerado, como é comum nesses casos – era de urgência e fervor. “A literatura nunca mais será a mesma depois disso”, chegou a dizer alguém. O que é cômico,…