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Entre Narciso e o suicídio, a literatura balança

A literatura é hoje um campo que se questiona de modo histérico, com resultados entre o suicida e o narcísico. O discurso literário parece sentir que perdeu o direito à existência. O que quer que o justificasse perante si mesmo não o justifica mais. Entre as atitudes que o discurso literário toma diante disso, destaco duas que me parecem especialmente significativas: deitar no caixão e declarar-se morto, como um personagem de Nelson Rodrigues, procedendo então à auto-autópsia; ou, feito uma drag queen de quermesse, se montar inteiro com maquiagem, bijuterias, próteses, piscando muito para o espelho e dizendo: “Eu existo, ói eu ali”. (Seria interessante – mas foge aos propósitos deste artigo, para não falar da minha competência – investigar o que haverá de analogia estrutural e especularidade simbólica entre duas crises culturais contemporâneas, a “do macho” e a da literatura de ficção.) A verdade é que, além daqueles que a fazem e da pequena seita que a consome sistematicamente, ninguém no mundo está prestando lá uma terrível atenção à ficcão literária, como diriam em inglês – literatura artisticamente ambiciosa, digo eu. A ficção comercial vai bem, mas o público da ficção dita séria míngua ao mesmo tempo que se…

Textos com franjinha

Num dos curtos ensaios de crítica cultural que escreveu entre 1954 e 1956, reunidos no livro “Mitologias” (Difel), o semiólogo francês Roland Barthes se detém com especial crueldade nas franjinhas exibidas por todos os personagens masculinos do filme “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz, adaptação hollywoodiana da peça de William Shakespeare, com Marlon Brando (foto) no papel de Marco Antônio e James Mason no de Brutus. Declarando o cabeleireiro o “principal artesão do filme”, Barthes registra a variedade das franjas exibidas pelos atores, dizendo que “umas são frisadas, outras filiformes, outras em forma de topete, outras ainda oleosas, todas bem penteadas; os calvos não foram admitidos, embora abundem na história romana”. No entanto, encontra para todas elas um propósito único, que chama de “ostentação da romanidade”: A madeixa na testa torna tudo bem claro; ninguém pode duvidar de que está na Roma antiga. E esta certeza é constante: os atores falam, agem, torturam-se, debatem questões “universais”, sem que, graças à bandeirinha suspensa na testa, percam seja o que for da sua verossimilhança histórica. Mas o que Barthes tem contra franjas romanas, afinal, se nenhuma representação artística pode prescindir de artifícios desse tipo ao propor seu jogo de faz-de-conta? A resposta…

Três histórias de fim
Antologia , Sobrescritos / 19/09/2015

Este post, minha despedida do portal Veja, fica apenas como registro. O fim lá é um recomeço aqui, no velho Todoprosa de sempre. Seja bem-vindo(a)! A MULHER DE BOTERO João Pontes, o escritor, olhou um dia pela janela ao lado de sua mesa de trabalho, no nono andar de um edifício na Gávea, e viu na cobertura do outro lado da rua, bem à sua frente, entre vasos de planta, uma mulher de Botero. A visão o desagradou, como o desagradavam as mulheres de Botero. Mas logo João a decompôs numa ilusão de folhas amarelas e vasos escuros, tela nublada pela lâmina de vidro que tudo recobria, com seus reflexos e sombras. Terminou por achar graça: a assombração era um incrível trompe-l’oeil produzido pelo acaso. Concentrou-se então no trabalho por mais meia hora – escrevia seu quinto romance, uma ficção histórica sobre o bando de Lampião – e, mal deixou o olho escapar pela janela atrás de um nome próprio, a palavra cardo, o adjetivo ressequido, lá estava a mulher de Botero outra vez. Era uma visão súbita, perfeita, de uma nitidez que dava náusea. E de novo, o que era estranho, João a recebeu com a surpresa de um…

‘A garota na teia de aranha’: há vida após a morte?
Resenha / 12/09/2015

Com mais de 80 milhões de exemplares vendidos e uma adaptação hollywoodiana de sucesso, a trilogia de suspense e ação Millennium, do escritor e jornalista sueco Stieg Larsson, ganha agora um quarto volume: “A garota na teia de aranha” (Companhia das Letras, tradução de Guilherme Braga e Fernanda Sarmatz Akesson, 472 páginas, RS 44,90). Se a notícia é boa ou má para sua legião de fãs, eis um mistério que, como nos bons thrillers, só a leitura atenta do livro pode resolver. Ocorre que Larsson não escreveu o quarto romance da série nem poderia tê-lo feito: morto aos 50 anos, vítima de um ataque cardíaco, não teve tempo sequer de ver o primeiro título, “Os homens que não amavam as mulheres”, ser publicado em 2005. A continuação da saga do jornalista investigativo Mikael Blomkvist e de sua aliada sociopata, a jovem hacker pós-punk Lisbeth Salander, é assinada por David Lagercrantz, também sueco e também dono de uma carreira equilibrada entre o jornalismo e a literatura. A fidelidade de Lagercrantz ao universo de Larsson é meticulosa. O idealista Blomkvist, sócio da revista Millennium, continua determinado a usar seus talentos de repórter para defender os oprimidos e atacar o que, às vezes…