De hoje até o fim da Copa do Mundo, que cobrirei para VEJA, o Todoprosa trará uma seleção de colunas de outras jornadas. As duas abaixo foram publicadas em 9 e 11 de janeiro de 2012.
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“A geração superficial – O que a internet está fazendo com os nossos cérebros” (Agir, 384 páginas) é o livro que consolidou a posição do jornalista americano Nicholas Carr como principal crítico cultural do mundo digital.
O livro nasceu de um artigo polêmico que Carr publicou em 2008, chamado “O Google está nos deixando burros?”, comentado na época aqui no blog. A tese central é a mesma: ao nos ensinar a ler de outra forma – veloz, horizontal, volúvel, interativa, baseada na satisfação imediata –, a tecnologia digital está reprogramando nossas mentes no nível bioquímico, devido a uma característica do cérebro chamada neuroplasticidade. Em consequência disso, a capacidade da espécie de acompanhar raciocínios longos e mergulhar sem distração na solução de um problema complexo pode estar simplesmente em vias de extinção.
Se a ideia central já constava do artigo de 2008, “A geração superficial” sustenta o pessimismo de seu autor com uma impressionante variedade de informações históricas, científicas, econômicas etc. Consegue manter no ar todos esses malabares sem perder a atenção do leitor – isto é, daquele leitor que ainda for capaz de prestar atenção em um texto com mais de cinco linhas.
Carr não é um luddita, um reacionário. Sabe que voltar ao império da cultura livresca em que vivemos por séculos, com sua leitura linear e sua concentração em uma tarefa mental de cada vez, é impossível. Tanto quanto teria sido, para os contemporâneos de Gutenberg, desinventar a imprensa.
Essa inevitabilidade histórica não o impede de recuar dois passos em busca de uma visão distanciada daquilo que a maioria de nós percebe apenas como vertigem, quando percebe: ao revolucionar profundamente, em poucos anos, o modo como lemos, aprendemos, trabalhamos, nos divertimos, nos relacionamos, consumimos, a cultura digital está mexendo profundamente em… nós mesmos. Estamos ganhando algo, obviamente: ninguém entrou nisso a contragosto. Mas estamos perdendo algo também.
Evidentemente, Nicholas Carr não é o único a pensar assim. À medida que reflui o deslumbramento com as inegáveis maravilhas do mundo digital, tem crescido nos últimos anos a sensação de que a capacidade de concentração é um bem que merece ser preservado a qualquer custo. Há alguns meses, publiquei aqui um artigo chamado “Concentração dividirá o mundo entre senhores e escravos”, que trata justamente disso. Do outro lado do ringue, não faltam também os que abraçam sem reservas todos os impactos psicossociais das novas tecnologias.
Esse debate vai render por muito tempo. É difícil enxergar com clareza os efeitos de uma revolução quando se está no meio dela. O notável livro de Carr tenta fabricar luz na escuridão mantendo um pé no novo ambiente e o outro no velho: o fôlego argumentativo e a qualidade do texto são típicos da era livresca, enquanto a mobilização de informações ecléticas paga tributo ao jeito Google de absorver o mundo.
É o Google, aliás, o personagem principal daquele que me pareceu o mais luminoso argumento de Carr – e também o mais assustador. Trata-se de uma analogia simples entre as ideias de Frederick Winslow Taylor, engenheiro industrial do século 19 responsável pela criação do método de repetição mecânica de tarefas que viria a dar na linha de montagem de Henry Ford, e a filosofia de processamento de informações que norteia a mais bem sucedida empresa da era digital. Como um operário cuja única função é apertar determinado parafuso, o bom internauta tem a função de clicar, quanto mais depressa melhor, e manter a máquina girando. Parar para pensar não é só um luxo: é contraproducente.
E ainda nem falamos de como fica a velha literatura nesse quadro.
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Na resenha acima, faltou falar justamente do que está no foco do Todoprosa: livros, e dentro dos livros a literatura, e dentro da literatura a prosa de ficção. Como ficam essas coisas arcanas, o texto enquanto arte e tal, no mundo colorido, afogado em informação, compulsivo e desatento que Nicholas Carr vê na internet? Um mundo em que todos os textos – e não só os feitos de palavras – viram “conteúdo” indexado, imediatamente acessível na forma de excertos, caquinhos interligados de modos imprevisíveis, tão descontextualizados quanto certo microfragmento triangular de louça cartaginesa azul num caleidoscópio que tende ao infinito.
A literatura não é abordada diretamente em “A geração superficial”. Não é este seu foco. Uma exceção é o capítulo em que seu autor discorre sobre o Google Book Search (mas aí está falando mais de mercado editorial, política cultural e biblioteconomia que de literatura). A outra é o momento em que ele fulmina o triunfalismo digital anencefálico de um articulista que nega todo valor à leitura de “Guerra e paz”, um romance que estaríamos na obrigação histórica de finalmente admitir ser uma chatice. Carr saca uma boa citação de Alberto Manguel e lembra que o filistinismo não nasceu no Vale do Silício: a leitura de “Guerra e paz” do início ao fim nunca foi e jamais será um valor para – assim como nunca esteve ao alcance de – gente à beça neste mundo. Para certas pessoas, porém, pode ser o que de melhor lhes aconteça na vida.
Será que a tribo daqueles que têm o dom de abraçar um livro e carregá-lo na alma se tornará cada vez menos numerosa, até um dia, para todos os efeitos, desaparecer? Eis uma questão que Carr não ataca. Ou será que a ideia de livro vai ser completamente revolucionada, e quem quiser ler “Guerra e paz” no futuro poderá se apaixonar pela obra num ambiente multissensorial infinitamente mais excitante que uma página cinza – mas isso ainda será, e na verdade de forma melhorada, “Guerra e paz”? Ou não, nada disso: já não haverá “Guerra e paz” nenhum, a não ser como um item no museu da cultura, um arquivo palavroso em que ninguém jamais se aventurará sem um buscador que lhe permita chegar, abiscoitar uma moedinha – digamos, certo pensamento de Pierre ao ser iniciado na maçonaria, caso seu interesse seja pesquisar “maçonaria” – e voltar em meio segundo.
Embora não o diga com todas as letras, “A geração superficial” parece apostar suas fichas no declínio inexorável da leitura de romances. Ao afirmar que uma maciça reprogramação sináptica da espécie está em curso neste exato instante, diante de bilhões de telas de computador, Carr aponta para um futuro – certamente exagerado no negativismo – em que a capacidade mental de ler um texto de centenas de páginas desaparecerá. Já não se trata apenas do fato de que é mais divertido brincar numa máquina de distrações em série do que se recolher a um canto por horas e horas, acompanhando só com os olhos e a imaginação uma longa fieira de palavras. Mesmo que tente, preferindo inexplicavelmente o regato verbal ao oceano das mídias, o ser humano do futuro pintado por Carr terá uma dificuldade quase intransponível para fazê-lo – a menos que se dedique, com esforço e disciplina, a reprogramar seu cérebro de volta a uma faixa de onda livresca, algo que a mesma neuroplasticidade que o levou até ali sempre deixará ao seu alcance. De todo modo, a esta altura estamos falando de uma pequena tribo de excêntricos. Talvez mais numerosa que a dos esperantistas, mas menos que a galera do piercing na língua.
Se diretamente o livro pouco trata disso, a leitura de “A geração superficial” me trouxe uma ou duas ideias novas sobre a tão debatida – e bastante cansada, vamos combinar – questão do que muda na literatura na era digital, um dos temas recorrentes deste blog desde que ele existe. Até então eu acreditava firmemente que diversos modos alternativos de narrar seriam explorados no ambiente virtual, dando origem a novas artes que já não teriam por que conservar o nome de literatura – e em paralelo, mantendo a preferência de uma parcela do público, as histórias contadas com palavra pura jamais haveriam de desaparecer, pois propiciam algo único que nenhuma plataforma multimídia suporta, uma tela perfeita para a imaginação. Foi mais ou menos isso que eu disse numa tarde memorável do Parque Lage em setembro do ano passado, no Fórum Autor 2.0 (em vídeo, aqui).
Ainda é mais ou menos isso que penso. O que mudou um pouco foi minha confiança no futuro das narrativas digitais crossover – isto é, multimeios, interativas, hipertextuais, wiki etc. Carr cita um caminhão de pesquisas na área de psicologia cognitiva que apontam para uma queda acentuada da compreensão e do aprendizado em ambientes carregados de links, popups, imagens, sons. Isso se daria por simples stress cognitivo, a necessidade de processar mais informação gerando paradoxalmente a capacidade de processar menos informação. O que ele não diz, mas digo eu, é que a essa queda da compreensão e do aprendizado corresponde simetricamente outra, menos lembrada mas crucial para a literatura de ficção: a queda da capacidade do leitor de, ao ler, se transportar para outro mundo. Sem encontrar no receptor certa predisposição calma e introspectiva que parece, esta sim, em vias de extinção, será que as histórias podem ganhar vida, reverberar? Videogames – a mais avançada forma de narrativa 2.0 – são legais, mas não seria tolice imaginar que um dia chegarão à altura de Tolstói? Estaremos prestes a descobrir que, no caso das artes narrativas, menos é mais?
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