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Começos inesquecíveis: Virginia Woolf

Ele – pois não havia a menor dúvida a respeito de seu sexo, embora a moda da época contribuísse para dissimulá-lo – empenhava-se em desferir golpes de espada numa cabeça de mouro que pendia das vigas do teto. Faltava Virginia Woolf nesta seção. Não mais: eis a primeira frase do magnífico “Orlando”, romance publicado em 1928 (Grafton Press, 1986, tradução caseira). O gancho de suspense plantado ali entre os travessões só vai se explicar lá pelo meio do livro, quando Orlando acorda de um sono mórbido de dias: Ele se espreguiçou. Levantou-se. Ficou de pé diante de nós, inteiramente nu, e enquanto as trombetas ressoavam, Verdade! Verdade! Verdade!, não nos resta outra saída senão confessar – era uma mulher.

Começos inesquecíveis: Ernesto Sabato

Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo esteja na lembrança de todos e que não seja necessário dar maiores explicações sobre minha pessoa. E assim, violentamente, entramos no túnel, ou melhor, em “O túnel” (Ballantine Books, edição bilíngüe, espanhol-inglês, 1988 – aqui em tradução da casa), romance lançado em 1948 pelo argentino Ernesto Sabato. Festejada por Albert Camus e geralmente classificada como “existencialista”, a narrativa seca e muitíssimo bem escrita do amor infeliz do misantropo Juan Pablo por María – “só existiu um ser que entendia minha pintura” – ainda conserva uma força sinistra. Luz no fim do túnel? Não tem nenhuma. A última frase, não menos inesquecível que a primeira, é prova disso: E os muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos.

Começos inesquecíveis: Ricardo Piglia

Dá uma história? Se dá, começa há três anos. Em abril de 1976, quando é publicado meu primeiro livro, ele me manda uma carta. Com a carta vem uma foto, eu no colo dele: nu, estou sorrindo, tenho três meses e pareço um sapinho. Ele, em compensação, saiu bem na fotografia: paletó cruzado, chapéu de aba fina, o sorriso franco – um homem de trinta anos que olha o mundo de frente. Ao fundo, apagada e quase fora de foco, aparece minha mãe, tão moça que no início quase não a reconheci. A foto é de 1941; atrás ele havia escrito a data e depois, como se quisesse orientar-me, transcreveu as duas linhas do poema inglês que agora serve de epígrafe a este relato. O começo do romance “Respiração artificial”, lançado em 1980 pelo crítico e ficcionista argentino Ricardo Piglia (Iluminuras, 2006, tradução de Heloísa Jahn), marca o fim – ou seria a suspensão temporária? – do clima de retrospectiva que tem dominado esta seção nos últimos meses. Os tais versos da epígrafe, que obrigam o leitor a voltar duas folhas rumo ao passado do volume, são de T.S. Eliot, do terceiro de seus “Quatro quartetos”, e estão em inglês…

Começos (ainda) inesquecíveis: Graciliano Ramos

Eis um belo exemplo de como (não) começar um livro. Publicado em 20/6/2006: Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho. Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa. “São Bernardo” (1934), de Graciliano Ramos (39a edição, Record, 1983).

Começos (ainda) inesquecíveis: Rodrigo Lacerda

Publicado em 10/12/2006: Eu, Valfredo Margarelon, subscrevo esta declaração no intuito de recolocar a justiça acima dos boatos e restaurar a fachada honrosa do brasão de minha família, sordidamente maculada por três elementos nocivos à ordem e aos bons costumes do reino inglês. Meu espírito simples, desabituado à lida com as palavras, vem a público para desmentir as ignominiosas calúnias feitas contra minha prima, Maria Margarelon, por um desclassificado de nome João Manningham, em conluio com o autor teatral Guilherme Shakespeare, integrante da companhia Homens do Lorde Camarista, e outro chamado Ricardo Burbage, ator na mesma companhia. Juntos, os três espalharam boatos deturpados e desonrosos, que alteram o curso da verdade e mancham a honra de minha prima e irmã de criação. Eu afirmo, perante Deus e a justiça real, que tais aleivosias nasceram de suas mentes imundas e tiveram divulgação a partir de tavernas e bordéis, sítios tão infectos quanto indecorosos. Provarei aqui como sua versão dos fatos é caluniosa, além de muito deturpada pela arrogância que caracteriza o círculo teatral e os que nele perambulam. O primeiro parágrafo anuncia com todas as letras a delícia que é a novelinha farsesca “O mistério do leão rampante” (Ateliê Editorial, 1995),…

Começos (ainda) inesquecíveis: James Joyce

Era uma vez um post publicado em 6/8/2007: * Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando pela estrada e a vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou um garotinho engrachadinho chamado bebê tico-taco. Seu pai lhe contava aquela história: seu pai olhava para ele através dos óculos; ele tinha um rosto peludo. Não deixa de ser uma prova de que não há palavras proibidas, apenas maior ou menor habilidade no uso delas, o fato de “Um retrato do artista quando jovem” (Alfaguara, 2006, com bela tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro), romance lançado por James Joyce em 1916, começar com a mais batida das fórmulas, “era uma vez” (once upon a time). Technorati Profile

Começos (ainda) inesquecíveis: Ernest Hemingway

Post publicado em 1/10/2006: * Robert Cohn fora campeão de boxe na categoria dos pesos-médios em Princeton. Não pensem que esse título me impressione. Mas significava muito para Cohn. Os jabs em seqüência com que Ernest Hemingway (1899-1961) abre seu primeiro romance, “O sol também se levanta” (Bertrand Brasil, 2001, tradução de Berenice Xavier), são mais do que o começo de um livro. Desferidos em 1926, quando o autor tinha 27 anos, marcam a fundação de um mito pessoal e outro coletivo, o da “geração perdida” de escritores americanos que viveram em Paris nos anos 20. Mas isso é marketing literário, não literatura. Importa mais reconhecer que a prosa do homem, tão seca que faz o adjetivo “seca” soar úmido, continua poderosa. Lamento que esteja meio demodê apreciá-la, mas sei que essas coisas de prestígio literário são cíclicas. Acho difícil que qualquer escritor, mesmo um de estilo barroco, diluvial, chegue muito longe se não tiver em algum momento da vida trocado com Hemingway uns golpes desses de quebrar o nariz – como Robert Cohn quebrou o dele.

Começos (ainda) inesquecíveis: Ivan Ângelo

Post publicado em 22/4/2007: Quem estivesse na praça da Estação na madrugada de hoje veria um nordestino moreno, de 53 anos, entrar com uns oitocentos flagelados no trem de madeira que os levaria de volta para o Nordeste. Veria os guardas, soldados e investigadores tangendo-os com energia mas sem violência para dentro dos vagões. E veria que em pouco mais de quarenta minutos estavam todos guardados dentro do trem, esperando apenas a ordem de partida. E, a menos que estivesse comprometido com os acontecimentos, não compreenderia como o fogo começou em quatro vagões ao mesmo tempo. Apenas veria que o fogo surgiu do lado de fora dos vagões, já forte, certamente provocado. Assim começa, pegando fogo literalmente e num tom de “jornalismo literário” que logo será explicitado, o romance “A festa”, lançado em 1976 pelo mineiro Ivan Ângelo (Summus Editorial, 4a edição, 1978). Na página seguinte, a explicação: “Trecho da reportagem que o diário ‘A Tarde’ suprimiu da cobertura dos acontecimentos da praça da Estação, na sua edição do dia 31 de março de 1970, atendendo solicitação da Polícia Federal, que alegou motivos de segurança nacional”. Forte candidato a melhor retrato literário do Brasil nos anos da ditadura militar e…

Começos (ainda) inesquecíveis: Jorge Luis Borges

Uma dobra no tempo traz de volta este post publicado em 18/10/2006: * Devo à conjunção de um espelho e uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. A primeira frase de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, o primeiro conto da coletânea “O jardim de caminhos que se bifurcam”, lançada em 1941, resume Jorge Luis Borges. Ou pelo menos o Borges dos labirintos, da erudição absurda, lúdica e ardilosa, dos tempos paralelos – tudo aquilo que daria origem ao borgianismo. O livro ganhou três anos depois o acréscimo de outros contos fundamentais, entre eles “Funes, o memorioso”, e o nome de “Ficções”. O melhor título do escritor argentino, na minha opinião. (Cito aqui a tradução que consta das “Obras completas”, editora Globo, 1998, mas com uma liberdade: no título do livro, prefiro “caminhos” a “veredas”, que pode até ser uma tradução mais precisa do original senderos, mas soa meio pesado.)

Começos (ainda) inesquecíveis: H.G. Wells

Como esquecer o dia em que Marte atacou? Post publicado em 14/4/2007: * Ninguém teria acreditado, nos últimos anos do século XIX, que este mundo era atenta e minuciosamente observado por inteligências superiores à do homem e, no entanto, igualmente mortais; que, enquanto os homens se ocupavam de seus vários interesses, eram examinados e estudados, talvez com o mesmo zelo com que alguém munido de um microscópio examina as efêmeras criaturas que fervilham e se multiplicam numa gota d’água. O começo do clássico de ficção científica “A guerra dos mundos” (Alfaguara, tradução de Thelma Médici Nóbrega, 2007), romance lançado em 1898 pelo escritor inglês H.G. Wells (1866-1946), impressiona pela precisão “científica” da prosa. A frieza do tom torna ainda mais sinistra a ameaça de invasão marciana que prenuncia.

Começos (ainda) inesquecíveis: Antonio Tabucchi

Quando morre um poeta, todos choram. Post publicado em 12/11/2006. * Antes tenho de fazer a barba, disse ele, não quero ir ao hospital com uma barba de três dias, por favor, vá chamar o barbeiro, mora na esquina, é o senhor Manacés. Mas não temos tempo, senhor Pessoa, replicou a zeladora, o táxi já está na porta, seus amigos já chegaram e estão à sua espera na entrada. Não importa, respondeu ele, sempre há tempo. Ajeitou-se na poltronazinha onde o senhor Manacés habitualmente lhe fazia a barba e pôs-se a ler as poesias de Sá-Carneiro. O singelo início da novelinha “Os três últimos dias de Fernando Pessoa”, do italiano Antonio Tabucchi (Rocco, tradução de Roberta Barni, 1996), talvez não seja memorável para qualquer um. É para mim. E o que vem em seguida não é menos: no hospital, Pessoa é visitado por um séquito de heterônimos antes de morrer.

Começos (ainda) inesquecíveis: Jorge Amado

Cada qual cuide de sua memória. Post publicado em 1/4/2007: * Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranqüila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a Lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de nosso tempo). E já que andamos falando por aqui de novela, que a preferência do mercado editorial por romances anda transformando numa espécie de “formato que não ousa dizer seu nome”, eis o começo da pequena obra-prima “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”, novelinha lançada em 1958 por Jorge Amado (Record, 41a edição,…

Começos (ainda) inesquecíveis: Albert Camus

Logo depois de seu primeiro aniversário (hoje está perto de completar dois anos e meio), o blog zerou uma dívida importante. Post publicado em 23/5/2007: * Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. O Todoprosa completou um ano no início deste mês e paga agora uma dívida que tem a mesma idade: foi nas férias, pensando na vida, que me ocorreu o absurdo (palavrinha apropriada) de ainda não ter publicado nesta seção o primeiro parágrafo de “O estrangeiro” (Record, tradução de Valerie Rumjanek), novela lançada em 1942 pelo escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Parece que todo esse atraso teve algo a ver com a determinação de fugir do óbvio ou coisa parecida. Desculpa porca. Mais do que proporcionar ao leitor um começo realmente inesquecível, o narrador Mersault, ao anunciar a morte de sua mãe em tom tão frio, está escrevendo a epígrafe de uma época que ainda é a nossa.

Começos (ainda) inesquecíveis: Machado de Assis

Para que 2008 fosse o ano do homem também por aqui, faltava republicar este post de 3/9/2006: * AO LEITOR Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor…

Começos (ainda) inesquecíveis: Franz Kafka

E já que falamos no homem… Post publicado em 23/9/2006: * Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto. Eis o primeiro parágrafo de “A metamorfose” (Civilização Brasileira, tradução de Brenno Silveira, 5.a edição, 1988), do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Sem comentários.

Começos (ainda) inesquecíveis: Will Self

Nem só de clássicos vivem os começos inesquecíveis. Post publicado em 11/3/2007: * Bull, um rapaz encorpado e musculoso, acordou certa manhã e não levou muito tempo para se dar conta de que, enquanto dormia, adquirira uma outra característica sexual primária: a saber, uma vagina. A vagina brotara atrás de seu joelho esquerdo, dentro da covinha macia e flexível localizada no ponto onde terminam os tendões. É quase certo que Bull não a perceberia tão cedo, não tivesse ele como prioridade, logo ao despertar, o hábito de se inspecionar, explorando cuidadosamente todas as suas curvas e fendas. Qualquer semelhança com Kafka não é coincidência. Nem plágio. Este é o início do primeiro capítulo, chamado justamente A metamorfose, da novela “Bull, uma farsa”, que compõe com “Cock, uma noveleta” o livro “Cock & Bull – Histórias para boi dormir”, do escritor inglês Will Self (Geração Editorial, tradução de Hamilton dos Santos, 2.a edição, 2002). Em “Cock”, em perfeita simetria, é a protagonista que um belo dia descobre entre as pernas um recém-brotado pau. Satirista feroz e, nos melhores momentos, brilhante em sua mistura de erudição, grosseria e delírio pop, Self é um autor bem estabelecido na literatura britânica, mas nunca deu…

Começos (ainda) inesquecíveis: Vladimir Nabokov

Pensamento ameno para alegrar o domingo: é claro que um dia – daqui a trezentos anos? três mil? – os começos inesquecíveis serão todos esquecidos. Mas este deverá ser um dos últimos. Post publicado em 24/7/2006: * Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita. De uma família aristocrática que deixou a Rússia fugindo da Revolução de 1917, Vladimir Nabokov (1899-1977) se mudou para os Estados Unidos em 1940, depois de passar por Berlim e Paris. Já então um escritor maduro – e finíssimo – em sua língua materna, embora pouco conhecido do grande público, dedicou-se tanto a dominar literariamente o inglês que em 1955 lançou nada menos que “Lolita” (Companhia das Letras, 1994, tradução de Jorio Dauster). O escandaloso teor sexual…