“Você vai causar uma ótima impressão.” Esta é a primeira linha de Lunar Park e na sua concisão e simplicidade deveria supostamente ser um retorno à forma, um eco, da frase de abertura do meu primeiro livro, Abaixo de zero. “As pessoas têm medo de mudar de pista nas vias expressas de Los Angeles.” Desde então, as frases de abertura dos meus livros – não importa o quanto artisticamente compostas – tornaram-se supercomplicadas e ornamentadas, com uma ênfase pesada e inútil nas minúcias. Que fique claro: o começo de “Lunar Park” (Rocco, 2006, tradução de Aulyde Soares Rodrigues e Maira Parula) parece ser mais inesquecível para seu próprio autor, o americano Bret Easton Ellis, do que para o leitor. Paciência. Uma seção como esta não poderia deixar passar um início de romance feito de inícios de romance, numa apoteose metalingüística que, se não me deu vontade de ler o livro, tem lá o seu engenho – ainda que cabotino. De Ellis, li nos anos 80 o bom “Abaixo de zero”, que o transformou no jovem da moda nas letras americanas, e nos anos 90 “O psicopata americano”, tão equivocado que me fez desistir do sujeito.
A idéia foi roubada de um post do blog de livros do “Guardian”, blog que foi uma das melhores notícias da – em geral mais louvada do que merece – blogosfera literária em 2006: eleger o livro mais superestimado do ano. Soa antipático? Soa, claro. Uma antipatia à moda inglesa. Mas não deixa de ser uma forma inteligente de retrospectiva. Ao inverter os sinais habituais em busca de identificar aquele livro que ocupou mais espaço em nossas vidas do que – percebemos claramente agora – fazia por merecer, estamos refletindo sobre o passado recentíssimo e nos imunizando contra uma praga comum nas listas que proliferam nesta época do ano, a do “vamos dar uma força para o Zé”. No blog inglês, melhor do que o post em si foi a resposta que ele provocou nos leitores, cada um em busca do seu livro superestimado de eleição. Mãos à obra, portanto, moçada. Fica aqui a minha contribuição: “Mastigando humanos”, de Santiago Nazarian (Nova Fronteira), foi tratado por parte substancial de nossa imprensa literária como um livro de originalidade lancinante, apenas por ser narrado por um jacaré. O papagaio de Verissimo chegou poucas semanas depois, e com prosa bem melhor, mas não…
“Borges”, de Adolfo Bioy Casares, é um livro monstruoso e de alguma forma heróico. Tem a descortesia de somar 1.663 páginas, que podiam ter sido reduzidas, nas mãos de um editor menos preocupado em parir um monumento, facilmente a 600. A maior parte das entradas desse extenso e excessivo diário de vida são listas de pessoas que jantaram na casa de Bioy ou compareceram a um coquetel da sociedade de escritores argentinos. O excesso de páginas é ainda mais aterrador quando se pensa que os protagonistas do livro eram, com justiça, famosos como fanáticos da concisão. (…) Não indicado para almas sensíveis, Borges e Bioy destróem em poucas frases toda a literatura espanhola depois de Quevedo, e Eliot, e Pound, e Aragon, e Sartre, e Eluard, e Beckett, e Neruda, e Mistral, e Camões, e naturalmente Arlt, Sábato (um dos grandes personagens cômicos do livro), Cortázar… O articulista Rafael Gumucio, do suplemento literário do jornal chileno “El Mercurio”, defende a tese de que Adolfo Bioy Casares traiu seu grande amigo e irmão literário, Jorge Luis Borges, ao manter um diário tão minucioso de sua convivência. A traição estaria na exibição de um homem prosaico, fofoqueiro, palavroso, às voltas com as…
Nada melhor para combater o baixo astral de uma acusação de plágio do que publicar um belo texto na “New Yorker”. Ian McEwan sabe disso. A revista adianta um trecho do próximo romance do autor inglês, On Chesil Beach, a ser publicado em junho – aqui. Recomendo efusivamente. A descrição da tensa lua-de-mel de Edward e Florence, ambos virgens, numa década de 60 que ainda não tinha dito com todas as letras a que viera, é puro McEwan na mescla de paisagens interiores e ambientação histórica. E o sexo, com todos os seus conflitos, é quase tão bom – embora bem menos gratificante – quanto o da inesquecível cena da transa na biblioteca em “Reparação”.
Em 2000, dois anos antes de morrer, o pai do escritor turco Orhan Pamuk lhe deu uma mala cheia de escritos que, literato amador, acumulara ao longo da vida. As cenas tensas que se desenrolaram em seguida foram lembradas por Pamuk em seu discurso de agradecimento do Nobel de Literatura, parcialmente publicado no fim de semana pelo “Guardian” – acesso livre, em inglês, aqui. A primeira coisa que me manteve afastado do conteúdo da mala foi o medo de que eu pudesse não gostar do que ia ler. Como meu pai sabia disso, tomara a precaução de fingir que não levava aquilo a sério. Depois de trabalhar como escritor por 25 anos, era doloroso para mim perceber isso. Mas eu não queria ficar irritado com ele por ter fracassado em levar a literatura a sério (…) Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que eu não queria saber ou descobrir, era que ele pudesse ser um bom escritor. É impressionante a semelhança entre a experiência pungente relatada por Pamuk e aquela que inspirou ao inglês Hanif Kureishi seu livro “No colo do pai” – comentado aqui embaixo, na nota de 6/12.
DIÁRIO DE ANDRÉ (conclusão) 18 de… de 19… – (…meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo – “era assim que ela beijava” – naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos – todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido para sempre? Que é, meu Deus, o para sempre – o eco duro e pomposo dessa expressão ecoando através dos despovoados corredores da alma – o para sempre que na verdade nada significa, e nem mesmo é um átimo visível no instante em que o supomos, e no entanto é o nosso único bem, porque a única coisa definitiva no parco vocabulário de nossas possibilidades terrenas… O início de “Crônica da casa assassinada”, romance lançado em 1959 pelo escritor mineiro Lúcio Cardoso (Civilização Brasileira, edição comemorativa dos 40 anos da obra, equivalente à 12a, 1999),…
Acertos de contas do gênero não são novos, e confesso até já ter brincado com a idéia de me vingar de uma ou outra pessoa nefasta da vida real por meio da ficção – embora, felizmente, não tenha levado adiante planos tão mesquinhos. Mas o que o best-seller Michael Crichton, de “O Parque dos Dinossauros”, fez em seu último livro, Next, bate todos os recordes. O caso é contado no “New York Times” de hoje (aqui, mediante cadastro gratuito) e pode ser resumido assim: este ano, um repórter de política formado em Yale e baseado em Washington, chamado Michael Crowley, escreveu um artigo criticando Crichton com violência por suas posições políticas conservadoras; em Next, um personagem secundário chamado Mick Crowley, colunista político formado em Yale, baseado em Washington e – detalhe infame – portador de um pau pequeno, é preso por estuprar um menino de dois anos, “ainda de fralda”. O mesmo nome, a mesma universidade, a mesma cidade, a mesma profissão, não se sabe se a mesma anatomia. E o mais imperdoável dos crimes. Tudo indica que Crichton pirou.
Lucas Murtinho, leitor e comentarista habitual aqui do Todoprosa e titular do blog Bom dia, França, ganhou o sorteio de um exemplar autografado do meu romance “As sementes de Flowerville”. Obrigado pela idéia, Saint-Clair. Ainda não foi desta vez.
Uma reportagem de Julie Bosman no “New York Times” (em inglês, mediante cadastro gratuito) discute a moda anglo-americana – pois é de moda que se trata – das longas bibliografias em livros de ficção. A coisa tem atingido níveis ridículos. O novo de Norman Mailer (veja nota abaixo), um romance sobre a infância de Hitler, traz uma lista de 126 títulos e autores consultados por ele. Michael Crichton, mais modesto, fecha a conta em 36 livros, mais 12 artigos e 12 endereços de internet. E a polêmica envolvendo os empréstimos feitos por Ian McEwan em “Reparação” deve pôr ainda mais lenha nessa fogueira. Há quem diga que tudo não passa de exibicionismo dos autores, de uma forma de impressionar o leitor: “Vejam como sou culto”, estariam dizendo. Críticos mais benevolentes falam numa tentativa de trazer para a ficção parte da respeitabilidade acadêmica das obras de não-ficção. E desde quando a ficção precisa disso? Uma listinha razoável de agradecimentos costuma cair bem, sobretudo quando se trata de reconhecer uma dívida palpável com outro autor, mas convém ir com calma. A moda, que eu saiba, ainda não desembarcou por aqui. Questão de tempo?
Eu, Valfredo Margarelon, subscrevo esta declaração no intuito de recolocar a justiça acima dos boatos e restaurar a fachada honrosa do brasão de minha família, sordidamente maculada por três elementos nocivos à ordem e aos bons costumes do reino inglês. Meu espírito simples, desabituado à lida com as palavras, vem a público para desmentir as ignominiosas calúnias feitas contra minha prima, Maria Margarelon, por um desclassificado de nome João Manningham, em conluio com o autor teatral Guilherme Shakespeare, integrante da companhia Homens do Lorde Camarista, e outro chamado Ricardo Burbage, ator na mesma companhia. Juntos, os três espalharam boatos deturpados e desonrosos, que alteram o curso da verdade e mancham a honra de minha prima e irmã de criação. Eu afirmo, perante Deus e a justiça real, que tais aleivosias nasceram de suas mentes imundas e tiveram divulgação a partir de tavernas e bordéis, sítios tão infectos quanto indecorosos. Provarei aqui como sua versão dos fatos é caluniosa, além de muito deturpada pela arrogância que caracteriza o círculo teatral e os que nele perambulam. O primeiro parágrafo anuncia com todas as letras a delícia que é a novelinha farsesca “O mistério do leão rampante” (Ateliê Editorial, 1995), livro de estréia…
Nos suplementos literários da América do Norte, nada importa mais do que o conflito de interesse. Ele deixa os editores temerosos e os autores amargos. Ninguém se queixa se os resenhistas não sabem escrever, pouco entendem de seus temas, põem os leitores para dormir ou superestimam absurdamente a qualidade de um livro. Mas se existe uma chance de que a violenta demolição promovida por Bruce do romance de Samantha tenha sido motivada pela resenha podre que o marido de Samantha fez do livro de Bruce seis anos atrás, aí é um escândalo. Trata-se de uma área popular de polêmica, em parte porque é uma questão literária que até os iletrados acham que entendem. Ano passado, o “Washington Post” publicou um abjeto pedido de desculpas por ter permitido que Marianne Wiggins falasse mal do romance de John Irving, Until I find you. Irving é amigo do ex-marido de Wiggins, Salman Rushdie. O excelente artigo dela passou longe de ser a única crítica negativa do livro. Não importa. Os editores do “Post” decidiram que não deviam ter confiado nela para lidar honestamente com o romance do amigo de seu ex-marido. O artigo (acesso livre, em inglês) de Robert Fulford no jornal canadense…
O primeiro romance de Norman Mailer em mais de uma década, The castle in the forest (“O castelo na floresta”), com lançamento marcado para 23 de janeiro e já à venda na Amazon, abre o artigo sobre literatura – chamado, numa tradução de telemarketing, “O que os americanos estarão lendo”, não disponível online – da edição em que a “Economist” faz suas previsões para 2007. Mailer puxa a fila de apostas da revista, seguido de Dan Brown e J.K. Rowling, o que não é pouco em termos de prestígio jornalístico. Mas será que tanta gente vai se interessar? Provavelmente, sim. Manchetes, pelo menos, devem ser garantidas: o novo livro do autor de “A canção do carrasco” conta a história de uma família austríaca problemática ao longo de três gerações, até o nascimento de… Adolf Hitler, ele mesmo. Parido o menino, Mailer acompanha seu crescimento pelos olhos de Dieter, um demônio escalado pelo próprio Satã para estimular o futuro ditador nazista no caminho do Mal Absoluto. Instigante? Deve haver quem goste. Eu, que nunca tive paciência para a mescla maileriana de alta ambição literária com baixo marketing, acho que vou passar.
Pelo que sei, os escritores são os únicos artistas que não têm uma tradição de aprendizado. Por meio de leitura, educação e conversa, eles têm que criar seus próprios cânones e objetivos. O que um professor poderia fazer? Já notei que jovens escritores freqüentemente supõem que a livre produção de suas próprias imagens e sentimentos machucará os outros, que sua criatividade é uma forma de agressão a que outros – principalmente os pais – não sobrevivem. Um professor pode mostrar a eles que a sobrevivência é provável, que há um vínculo forte e útil entre agressividade e criatividade. Além disso, os escritores precisam de bons leitores, amigos que compreendam o que eles estão tentando fazer. Isso é essencial, pois se você disser a alguém que pretende se tornar artista, receberá uma resposta dolorosa e complexa. A outra pessoa também quer ser artista. Os outros estão a ponto de começar, mas ainda não deu. E, claro, você não parece ser artista, para eles. Quanto talento você acredita ter? Crê realmente que os outros estejam interessados em você? O escritor inglês Hanif Kureishi, roteirista do filme “Minha adorável lavanderia” e autor do romance “O buda do subúrbio”, produz algumas das reflexões mais…
Na área de comentários da nota abaixo, o leitor Felipe Lenhart lembra uma discussão que andou empolgando alguns comentaristas do Todoprosa há pouco tempo: se a literatura brasileira teve ou não teve força para produzir personagens que se tornassem ícones culturais, parte do nosso imaginário, referências para a população em geral – e não apenas para aquela meia dúzia de apaixonados por literatura. Felipe justifica sua volta ao assunto com a edição de dezembro da revista “Entrelivros”, que elege os “50 personagens que são a cara do Brasil”. E pede minha opinião. Não sei se ele se refere à minha opinião sobre a escolha da revista ou sobre a questão de termos ou não termos personagens tão fortes em nossa literatura – então comento ambas. Minha opinião é que temos personagens emblemáticos aos montes: Macunaíma, Jeca Tatu, Emília, Capitu, Policarpo Quaresma, Diadorim, Gabriela e Iracema são alguns. A penetração social deles seria maior se não fosse contida pela grave limitação do nosso letramento, mas não faz sentido culpar os escritores por isso. Quanto à lista da “Entrelivros”, fica claro que não se trata de relacionar apenas os personagens que transbordaram dos livros para impregnar o imaginário nacional – desconfio que…
A lista dos vinte melhores livros do ano da revista francesa “Lire” é encabeçada por – adivinhou? Pois é: o romance “Les Bienveillantes”, de Jonathan Littell, best-seller que acumulou o Goncourt, o grande prêmio da Académie Française e um volume absurdo de especulações contra e a favor. Picaretagem? Obra-prima? Marketing puro? Foi Littell mesmo quem escreveu aquilo? Bom, vale registrar que a benevolência do – digamos – sistema literário francês vai se mostrando praticamente unânime.
Eu nasci duas vezes: primeiro como uma menininha, num dia excepcionalmente despoluído de Detroit, em janeiro de 1960; e depois outra vez como um rapaz adolescente, num ambulatório de emergência perto de Petoskey, Michigan, em agosto de 1974. Os leitores especializados talvez tenham esbarrado comigo no estudo do dr. Peter Luce, “Identidade sexual em pseudo-hermafroditas com 5-alfa-redutase”, publicado no Journal of Pediatric Endocrinology em 1975. Ou talvez tenham visto minha fotografia no capítulo 16 do hoje tristemente ultrapassado Genetics and Heredity. Sou eu lá na página 578, sem roupa, diante de um gráfico que indica minha altura, com uma tarja preta sobre os olhos. É a primeira vez que repito um autor nesta seção, mas o americano de origem grega Jeffrey Eugenides merece. Como o início de “Virgens suicidas”, narrado na primeira pessoa do plural, o de “Middlesex” (Rocco, 2003, tradução de Paulo Reis) também usa o velho mas eficaz expediente de deixar entrever o fim de sua história, e que história – mas apenas o suficiente para que o leitor não consiga mais abandonar o livro antes de descobrir como chegaremos lá.
Quando Brahms compôs sua primeira sinfonia, foi acusado de usar um grande tema da Nona de Beethoven. Sua resposta foi que qualquer idiota podia ver isso. A frase do romancista inglês Julian Barnes não se aplica ao caso de Ian McEwan, que passou longe de usar um “grande tema” de outro autor em “Reparação” (veja nota abaixo). Barnes escreveu isso em defesa de outro compatriota, Graham Swift, acusado em 1997 de plagiar ninguém menos que William Faulkner. Quem quiser se aprofundar um pouco mais no assunto pode se interessar por este artigo de Jan Dalley no “Financial Times” (acesso livre, em inglês), que recupera a tirada de Barnes/Brahms. O caso de Yann Martel e sua mão grande no bolso do brasileiro Moacyr Scliar também é lembrado lá, mas sem que o escritor gaúcho mereça uma citação nominal. Feio. Até por não ter o nomão de Beethoven ou Faulkner, o que Scliar sofreu foi mais grave.