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O dia em que Pelé desafiou Deus

httpv://www.youtube.com/watch?v=-UzRsvCsC4c Adianto abaixo o primeiro capítulo de meu novo romance, “O drible”, que será lançado no dia 26 de setembro pela Companhia das Letras. Antes, durante ou depois da leitura, recomenda-se assistir (acima) ao mais famoso quase-gol da história do futebol. Outro trecho do livro foi publicado pela “Folha de S.Paulo” no caderno Ilustríssima de domingo passado, aqui. Para os leitores do Rio: estarei hoje às 18h30 no Placar Literário da Bienal do Livro para falar de “O drible” e os dribles que a literatura pode dar. Apareçam. * A TV é uma velha trambolhuda de tubo de imagem. O lance não deve ter mais de dez segundos, mas com as interrupções de Murilo enche minutos inteiros enquanto ele narra sem pressa, play, pause, rew, play, o que na época foi narrado com assombro. O que você vê primeiro é uma imagem parada que logo identifica como da Copa de 1970 pelo short da seleção brasileira, que é de um azul mais claro que o habitual, além de escandalosamente curto para os padrões de hoje. Tostão, cabeçudo inconfundível, número 9 às costas, conduz a bola observado a certa distância por um sujeito de camisa azul-clara e calção preto. Murilo solta…

Leia um trecho de Mo Yan, Nobel de Literatura de 2012
Pelo mundo , Primeira mão / 11/10/2012

O chinês Mo Yan, que ganhou hoje o Nobel de Literatura, aparecia em todas as listas de favoritos – na preferência dos apostadores da casa londrina Ladbrokes, estava em quarto lugar –, mas isso não quer dizer que sua obra seja fartamente conhecida no Ocidente. Como quase todo mundo, saí correndo atrás de informações sobre o homem, que não tem nenhum livro lançado no Brasil e que, na loja do Kindle, conta com apenas um título (em pré-venda!). As notícias da premiação (aqui e aqui) e o comentário de Maria Carolina Maia no vizinho “Veja Meus Livros” satisfazem a maior parte da curiosidade que se possa ter sobre o homem, uma escolha que tem inegável dimensão política, daquelas que o Nobel gosta de fazer. A partir do pseudônimo que adotou para escrever, e que significa “Não fale”, Mo Yan mantém relações tensas com o mundo oficial de seu país, onde a liberdade de expressão é restrita. A Academia Sueca o saudou por seu “realismo alucinatório” e o comparou a William Faulkner e Gabriel García Márquez. A melhor forma de conhecer um escritor, porém, é lê-lo. Por isso decidi traduzir o trecho inicial do romance Life and death are wearing me…

Entrevistas do ‘Rascunho’: o que é bom merece bis

RASCUNHO: Como você avalia a entrada do Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras? CARLOS HEITOR CONY: Tendo uma vaga, qualquer um pode entrar. O Paulo Coelho namorava a Academia havia bastante tempo. É uma figura polêmica, sua literatura é muito questionada. Mas há uma coisa que não se pode negar: ele é um homem de letras. Ele escreve letras. Escreveu letras para o Raul Seixas. Nunca li nada dele, realmente. Mas ele tem um sucesso comercial muito grande. Está entrando na Rússia. Já vendeu dois milhões de livros no Japão. É impressionante isso. Shakespeare não vendeu, até hoje, dois milhões de exemplares no Japão. Há outra coisa: o Paulo Coelho é uma pessoa muito fina, muito educada. Não responde ninguém, não agride ninguém. Não se vangloria por vender tanto. É muito cavalheiro. Agora, há as evidências. No Salão do Livro em Paris, em março de 1998, a homenagem foi ao Brasil. Havia lá uma réplica do 14-bis, um busto do Machado de Assis. Foram mais de cem figuras da literatura nacional. O (Jacques) Chirac era o presidente, na época. E ele entrou, para inaugurar o Salão do Livro, de braço dado com o Paulo Coelho. Disse que queria prestar…

A aura da ironia (final)
Primeira mão / 24/12/2010

Terceira e última parte do trecho de um ensaio de David Foster Wallace, tradução minha. Na verdade, a postura de tédio anestesiado e sem expressão – aquilo que um amigo meu chama de cara-de-garota-que-está-dançando-com-você-mas-obviamente-preferia-estar-dançando-com-outra-pessoa” – que se tornou a versão da minha geração para o cool tem tudo a ver com a TV. “Televisão”, afinal, significa literalmente o ato de “ver longe”; e nossas seis horas diárias não só nos ajudam a sentir proximidade e envolvimento pessoal com os Jogos Pan-Americanos ou a Operação Escudo do Deserto como, inversamente, nos adestra para lidar com aquilo que é realmente pessoal e próximo da mesma forma que lidamos com o distante e o exótico, como se estivesse separado de nós pela física, por uma chapa de vidro, válido apenas como performance, aguardando nossa resenha cool. A indiferença é na verdade, para os jovens americanos, apenas a versão anos 90 da frugalidade: cortejados muitas deliciosas horas por dia em troca de nada além de nossa atenção, consideramos tal atenção nossa principal mercadoria, nosso capital social, e relutamos em gastá-la. Da mesma forma, considere-se que, nos anos 90, a neutralidade apática e a postura cínica tornaram-se formas claras de transmitir a atitude televisiva de…

A aura da ironia (II)
Primeira mão / 22/12/2010

Segunda parte do trecho de um ensaio de David Foster Wallace, com tradução minha. Eu já afirmei – por enquanto de maneira um tanto vaga – que o que torna a televisão tão resistente às críticas da nova Ficção da Imagem é o fato de que ela cooptou as formas distintivas da própria literatura cínica, irreverente, irônica e absurdista do pós-Segunda Guerra que os novos Imagistas usam como pedras de toque. Ocorre que a reciclagem, pela TV, do cool pós-moderno evoluiu como uma solução inspirada para o problema de manter-João-ao-mesmo-tempo-alienado-da-e-integrado-à-multidão-de-um-milhão-de-olhos. A solução implicou uma gradual mudança de expressão, do excesso de candura para uma espécie de irreverência de menino mau, na Grande Face que a TV nos exibe. Isso por sua vez refletiu uma transformação mais ampla na percepção americana sobre como a arte deve funcionar, uma transição da arte como representação criativa de valores reais para a arte como rejeição criativa de valores fajutos. E essa transformação mais ampla, por seu lado, caminhou em paralelo ao desenvolvimento da estética pós-moderna e a certas mudanças graves e profundas no modo como os americanos optaram por encarar conceitos como autoridade, sinceridade e paixão em termos de nosso desejo de satisfação. Não…

A aura da ironia (I)
Primeira mão / 20/12/2010

Como presente de Natal aos leitores do Todoprosa, publico esta semana, em três partes, o trecho de um longo e brilhante ensaio de David Foster Wallace sobre as relações entre a televisão e a nova ficção americana que traduzi para a revista “Serrote” – e que teve apenas um pequeno naco aproveitado. O ensaio integral, E unibus pluram, encontra-se na coletânea A supposedly fun thing I’ll never do again, ainda não lançada no Brasil. O presente trecho foi batizado pelo próprio DFW de “A aura da ironia” e contém seu argumento central: o de que a ironia da ficção pós-moderna foi apropriada e esvaziada pela TV. Certos nomes de atrações televisivas à parte, o texto parece-me não ter envelhecido substancialmente desde os anos 90, quando o ensaio foi escrito. Espero que o aperitivo sirva de estímulo a quem quiser correr atrás do livro em inglês (disponível aqui) ou a editoras que se disponham a lançar a obra no Brasil. É fato amplamente reconhecido que a televisão, com sua bateria de estatísticos e pesquisadores de aros de tartaruga, sai-se terrivelmente bem na tarefa de discernir padrões no fluxo das ideologias populares, absorvendo-os, processando-os e em seguida reapresentando-os como estímulos para assistir…

A ironia segundo David Foster Wallace
Primeira mão / 26/11/2010

…a TV americana dos primeiros tempos fazia uma apologia hipócrita de valores cuja realidade tornara-se atenuada num período dominado por grandes corporações, entrincheiramento burocrático, aventureirismo além-fronteiras, conflito racial, bombardeios secretos, assassinatos, escutas telefônicas etc. Não se trata de nenhum acidente que a ficção pós-moderna tenha ajustado sua mira irônica sobre o banal, o ingênuo, o sentimental, o simplista e o conservador, pois essas eram precisamente as características que a TV dos anos 60 parecia celebrar como distintamente americanas. A ironia rebelde da melhor ficção pós-moderna não era apenas plausível como arte; parecia ter plena utilidade social em sua capacidade de fazer o que os críticos da contracultura definiram como uma “negação crítica que deixasse evidente para todos que o mundo não é o que parece ser”. A sombria paródia dos hospícios feita por Kesey sugeria que os árbitros de nossa sanidade eram frequentemente mais malucos que seus pacientes; Pynchon reorientou nossa visão da paranoia, promovendo-a de desvio psicológico marginal a fibra principal no tecido corporativo-burocrático; DeLillo expôs a imagem, o signo, a informação e a tecnologia como agentes do caos espiritual e não da ordem social. As doentias investigações de Burroughs sobre o torpor americano detonavam a hipocrisia; a denúncia…

Reinaldo Moraes: ‘Pornopopéia’
Primeira mão / 10/06/2009

É difícil dar uma idéia, para quem não estava na área naquele momento, do que significou o lançamento do livrinho “Tanto faz”, de um então recém-balzaquiano Reinaldo Moraes, pela editora Brasiliense em 1981. Para nós, a quem cabia desempenhar o papel de “novíssima geração” do momento, era como se a história do desbunde de um bolsista brasileiro em Paris finalmente introduzisse na literatura brasileira uma sintaxe, um vocabulário, um humor, uma sujeira, uma inteligência e uma falta de modos que atualizavam por aqui, de um golpe só, todo o lado B do século 20, de Knut Hamsun aos Beats. Sim, tínhamos coisas pop como “PanAmérica” de José Agrippino e “Catatau” de Leminski, entre outras, mas “Tanto faz” era diferente. Lia-se sem nenhum tropeço, puro prazer. Não soava como experimentalismo ou como a busca consciente – e inevitavelmente impostada – de uma voz “jovem”. Aquilo parecia natural no cara. Ainda parece. O caminho aberto por “Tanto faz” teve seguidores em penca, a ponto de a “sujeira” ter se tornado um terreno minado por seus próprios clichês, numa espécie de beletrismo em negativo. Demorou (pelo menos para mim, que passei batido por “Abacaxi”, seu segundo romance), mas o que já li do…

Milton Hatoum: ‘Órfãos do Eldorado’
Primeira mão / 14/03/2008

Um novo livro do amazonense Milton Hatoum é sempre uma notícia a ser festejada. Foram poucos desde que ele estreou em 1990 com “Relato de um certo Oriente”: até este “Órfãos do Eldorado” (Companhia das Letras, 112 páginas, R$ 29) eram apenas três romances, todos de alguma forma substanciais, carnudos no vocabulário e na simbologia, com algo de amazônico e transbordante em sua fé na arte de narrar – “como os romances de antigamente”, ouvi certa vez de um leitor, e era elogio. Aliada ao talento de Hatoum, a falta de pressa se traduziu num padrão de qualidade elevado que o transformou em bicho-papão de prêmios literários. Com justiça. No novo livro, lançado apenas três anos depois de “Cinzas do Norte”, os temas habituais de Hatoum – o território conflagrado das relações familiares, a paisagem amazônica como pano de fundo e metáfora de um profundo desencanto, o acerto de contas com um passado perigoso que a memória busca mas teme empreender – são retomados em chave diferente. Novela curta, escrita por encomenda para uma série internacional sobre temas mitológicos, “Órfãos do Eldorado” se deixa ler velozmente e com prazer. Só no fim é que me vi às voltas com uma…

Começos inesquecíveis: Tomás Eloy Martínez

Pouco depois da morte de Mãe, a Brepe deu para pular dentro do sono de Carmona. Fitava o homem enquanto ele se despia e, quando ele apagava a luz, arqueava as costas e ia se erguendo nas patas, pronta para caçar o sonho de Carmona e depená-lo assim que levantasse vôo. Mas os sonhos de Carmona não eram pássaros, e sim gatos: ásperas trevas de gatos, línguas de gato movendo-se entre tições de negra luz. O homem dormia de boca aberta e, quando ele adentrava o cone de escuridão onde pairavam os sonhos, uma manada de gatos saía de sua boca rasgada por berros de cio e mergulhava no rio dos engenhos de açúcar. É a primeira vez que promovo aqui o cruzamento das duas seções citadas no título acima, mas tenho um bom motivo. Normalmente, a eleição de um Começo inesquecível exige um tempo de maturação de leitura que é, por definição, incompatível com o espírito apressadinho abrigado sob a rubrica Primeira mão. Certo, mas as frases iniciais da recém-lançada edição brasileira de “A mão do amo” (Companhia das Letras, tradução de Sérgio Molina e Lucas Itacarambi, 168 páginas, R$ 36), romance publicado em 1991 pelo argentino Tomás Eloy…

Leonardo Sciascia: ‘A cada um o seu’
Primeira mão / 20/07/2007

O grande escritor siciliano Leonardo Sciascia (1921-1989) andava negligenciado pelas editoras brasileiras há alguns anos. Terá saído de moda a literatura engajada, sempre às voltas com temas políticos, de um escritor que acabaria mesmo se lançando na política partidária – inicialmente pelo PCI e depois pelo Partido Radical? É possível. Quantos leitores jovens saberão sequer que seu sobrenome é pronunciado Xaxa ? Seja como for, essa ausência temporária torna ainda mais digno de comemoração o lançamento do romance “A cada um o seu” (Alfaguara, tradução de Nilson Moulin, R$ 26,90, 136 páginas). Na superfície, trata-se de uma história policial de leitura compulsiva, curta e seca, imperdível para os fãs do gênero. Mas basta cavar um palmo para encontrar um estudo penetrante e uma denúncia feroz da lógica mafiosa, com sua rede de silêncios, corrupção e violência – tema em que o autor não tem rival. Lançado na Itália em 1966, “A cada um o seu” traz Sciascia em grande forma e em dose concentrada. A carta chegou com a entrega da tarde. O carteiro apoiou antes no balcão, como de costume, o maço colorido dos folhetos de propaganda; depois, com cuidado, como se houvesse perigo de vê-la explodir, a carta:…

Ian McEwan: ‘Na praia’
Primeira mão / 16/06/2007

Qualquer livro novo do inglês Ian McEwan é, hoje, um grande evento, que está para a literatura “séria” como o novo “Harry Potter” está para a literatura de entretenimento. Evidentemente, a comparação não se refere ao impacto quantitativo ou financeiro de cada um, mas ao nível de burburinho e inquietação que ambos geram em seus respectivos públicos. Não é à toa que a Companhia das Letras correu – e como – para pôr nas livrarias a versão brasileira do romance curto ou novela On Chesil Beach, “Na praia” (tradução de Bernardo Carvalho, 136 páginas, R$ 33), pouco mais de dois meses depois do lançamento britânico e num honroso empate com o americano. Se a pressa pode ter provocado alguns problemas de acabamento, o resultado geral é correto e tem o mérito de pôr o livro em circulação entre os leitores brasileiros enquanto ele ainda está, por assim dizer, quente. Em tempos globalizados de Amazon.com, talvez isso seja, mais do que luxo, uma necessidade. (Publiquei em dezembro, aqui, um link para o primeiro capítulo do livro na “New Yorker” – o excerto aí de baixo está lá no original.) No quadro da produção recente de McEwan, “Na praia” não tem –…

Tahar Ben Jelloun: ‘Partir’
Primeira mão / 08/06/2007

O romancista, poeta e ensaísta marroquino Tahar Ben Jelloun, nascido em 1944, foi educado em francês em sua terra natal e se mudou em 1971 para Paris, onde vive até hoje. Mais do que informação biográfica, a adoção do francês como língua literária é fundamental na obra de Ben Jelloun, pois o situa numa zona de fronteira cultural que o torna um dos escritores africanos de maior expressão da atualidade e, ao mesmo tempo, um alvo fácil para a parcela mais xiita da crítica internacional, que o acusa de traição aos valores autênticos da “Magreb de raiz” ou coisa parecida. Bobagem. Ben Jelloun não usa o deslocamento para fazer macumba-para-turista e sim para refletir, com real talento e sem proselitismo, sobre as muitas faces da guerra cultural surda que foi (re)inaugurada pelo mundo pós-colonial e globalizado entre a Casa Grande e a Senzala do planeta. O romance “Partir” (Bertrand Brasil, tradução de Mônica Cristina Corrêa, 288 páginas, preço a definir), que ele lançou ano passado, é mais um mosaico desse desenraizamento, denunciado no trecho abaixo pelo louco lúcido que faz as vezes de consciência crítica do livro – personagem retomado de outro título de Ben Jelloun, “Moha o louco, Moha…

Javier Cercas: ‘A velocidade da luz’
Primeira mão / 02/06/2007

Chega às livrarias nos próximos dias o romance “A velocidade da luz”, de Javier Cercas (Relume Dumará, tradução de Antonio Fernando Borges, 208 páginas, R$ 34,90), mais uma oportunidade que o leitor brasileiro tem de ser apresentado ao escritor mais interessante e festejado da “nova geração” (nasceu em 1962 e publica desde os anos 80) da literatura espanhola. Cercas é autor de uma proeza rara, um arrasa-quarteirão reverenciado pela crítica, o romance “Soldados de Salamina”, de 2001, em que lança um olhar original sobre a Guerra Civil Espanhola embaralhando realidade e ficção – a ponto de criar um narrador chamado Javier Cercas e um personagem secundário, também escritor, que atende pelo nome de Bolaño, como o chileno que era seu amigo e primo literário. (Para quem quiser se aprofundar na história, aqui vai uma breve resenha do Roberto Bolaño verdadeiro sobre o livro.) Lançado no Brasil em 2004 pela Editora Francis, “Soldados de Salamina” não teve por aqui nem uma migalha da repercussão internacional que mereceu, daí se poder dizer que “A velocidade da luz”, o romance com que Cercas respondeu à expectativa criada por seu maior sucesso, é uma nova chance. Nova chance para o público brasileiro, bem entendido,…

Rafael Cardoso: ‘Entre as mulheres’
Primeira mão / 26/05/2007

Se é um romance ou uma coleção de contos o livro “Entre as mulheres‘’ (Record, 256 páginas, R$ 35), de Rafael Cardoso, caberá ao leitor decidir. (Quem quiser pode aproveitar o momento interativo e decidir também se é de bom ou mau gosto essa capa que explica a piada, por assim dizer, praticamente abolindo a ambigüidade do título.) Aqui no meu canto, não acredito que seja importante chegar a uma definição sobre o gênero para ter prazer na leitura desses 16 perfis femininos traçados com sensibilidade – mas sem frescura – e uma sobriedade narrativa que evita toda pirotecnia, toda reinvenção da roda, para confiar apenas no poder das histórias que estão sendo contadas sob rubricas que mantêm o mesmo padrão: um nome de mulher, uma idade, um bairro carioca. Sim, além de uma declaração de amor às mulheres, Cardoso – que lançou pela mesma editora “A maneira negra” e “Controle remoto” – faz uma declaração de amor ao Rio de Janeiro. Os contos ameaçam se tornar um romance por meio de cruzamentos ocasionais entre as histórias, principalmente aqueles promovidos pelo personagem Rafael, homônimo do autor. Não me parece que isso seja o bastante para caracterizar um romance, mas não…

Roberto Bolaño: ‘A pista de gelo’
Primeira mão / 20/04/2007

“A pista de gelo” (Companhia das Letras, tradução de Eduardo Brandão, 200 páginas, R$ 37), que chega às livrarias semana que vem, é um livro do chileno Roberto Bolaño. Isso bastaria para torná-lo um destaque entre os lançamentos da temporada. Um dos nomes mais citados aqui no Todoprosa, personagem de diversas notas nos últimos meses, Bolaño (1953-2003) vem se firmando no juízo da crítica internacional como o maior nome da literatura latino-americana pós-boom. Acontece que, além de tudo isso, este é o primeiro romance que ele publicou, em 1993, bem no início da torrente vertiginosa de lançamentos – romances, contos e poesia – que marcaria seus últimos dez anos de vida como expatriado em Barcelona. Nessa posição, se fica distante da grandiosidade de “Os detetives selvagens”, “A pista de gelo” tem um interesse especial para o admirador de Bolaño por apresentar pela primeira vez vários elementos de sua obra “madura” – adjetivo meio inadequado mas inevitável para o que o sujeito escreveria poucos anos depois. Três narradores se alternam na condução da história, num prenúncio da megapolifonia que estava por vir. Um fundo de trama policial, mesmo passando longe de confinar o romance num gueto de gênero, fornece a eletricidade…

John Banville: “O mar”
Primeira mão / 13/04/2007

O escritor e crítico literário irlandês John Banville, 61 anos, é quase um desconhecido do público brasileiro. O que não chega a ser surpresa: ele também não goza lá de grande fama entre os leitores anglófonos. Considerado um autor “difícil” por sua prosa poeticamente trabalhada e pelo ritmo lento de suas narrativas, Banville nunca teve vendas além de uns poucos milhares de exemplares – tiragem de ficcionista brasileiro – até ganhar o Booker Prize de 2005, e com ele uma avalanche de manchetes, por este “O mar” (Nova Fronteira, tradução de Maria Helena Rouanet, 224 páginas, R$ 29,90). O romance é narrado de forma não linear por um crítico de arte de meia-idade que, tentando se recuperar da morte da mulher, retorna à cidadezinha praiana onde passava férias na infância e mergulha num mar de memórias dolorosas. A maior parte da crítica internacional saudou o livro como a obra-prima de Banville, e os elogios, embora eu ainda esteja no início da leitura, me parecem fundados. Do autor eu só tinha lido o interessante “O livro das provas”, lançado aqui pela Record em 2002. “O mar” promete mais. A beleza hipnótica de sua prosa, conservada pela tradução, brilha no trecho abaixo,…