Todos os contos de Clarice Lispector (Rocco, 656 páginas) é o livro-monumento que o país devia àquela que foi, ao lado de Guimarães Rosa, a voz mais original da ficção brasileira no século 20. De forma embaraçosa, a dívida foi paga com dinheiro emprestado: até na bela sobrecapa premiada de Paul Sahre, o volume de capa dura que chega ao leitor brasileiro é o que foi organizado pelo biógrafo e pesquisador americano Benjamin Moser e publicado ano passado nos EUA, com tradução de Katrina Dodson e notável sucesso de crítica. Até então a obra contística da autora estava dispersa em brochuras cheias de superposições, a maioria contendo – por decisão dela – histórias reaproveitadas de coletâneas anteriores. Limadas as redundâncias e incluídos os contos da juventude e do fim da vida que só postumamente saíram em livro, temos um total de 84 histórias e uma tentação irresistível: a de concluir que foi na narrativa curta, e não nos romances e novelas, que a arte de Clarice atingiu seu ponto mais alto. Não é dizer pouco. O embaraço da “importação” escapa de ser vexame porque Clarice nunca foi uma escritora negligenciada que o olhar estrangeiro tivesse nos ensinado a descobrir. Meio…
Advertência: o fôlego deste artigo é pouco compatível com a brevidade internética. Ele foi escrito para a edição de papel da revista Veja que está agora nas bancas, como parte do material especial sobre os 400 anos da morte de Cervantes – completados hoje – e de Shakespeare, e dividiu as páginas com um texto igualmente extenso sobre o bardo assinado por Jerônimo Teixeira. Como se diz na Espanha: Vale. * A imagem é mais velha e sábia do que todos nós: o cavaleiro esguio em seu cavalo magro, ao lado do escudeiro gordinho montado num burro, contra uma paisagem árida onde se veem, ao longe, moinhos de vento. Foi atualizada nos últimos quatro séculos por tantos pintores e ilustradores, dos mais renomados aos mais chinfrins, que ocupa lugar de honra na galeria de clichês culturais à qual praticamente todos os seres humanos – letrados e não letrados – têm acesso. Se essa galeria não se destaca pela quantidade de obras, o bom gosto também não é seu ponto forte: nos varais de feira hippie, a apropriação pop da alta cultura costuma exibir o pôster da dupla ao lado daquele em que o mendigo de chapéu-coco encara a câmera com…
Em Viagem ao redor da garrafa (Rocco, tradução de Hugo Langone, 320 páginas, R$ 44,50), a jornalista inglesa Olivia Laing promove uma curiosa – e nem sempre bem-sucedida – mistura de gêneros. Ensaio biográfico, crítica literária, memórias e relatos de viagem são jogados na coqueteleira para tentar revelar “por que os escritores bebem e que efeito essa mistura de bebidas teve sobre o corpo da própria literatura”. Se o objetivo parece por um lado ambicioso demais e por outro limitado em seu recorte – afinal, escritores bebem porque os seres humanos bebem –, Laing logo dobra a aposta da liberdade autoral ao reduzir a apenas seis os alcoólatras em que está interessada. Todos homens, todos americanos e grandes autores do século XX: os ficcionistas Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, John Cheever e Raymond Carver dividem o balcão do bar com o dramaturgo Tennessee Williams e o poeta John Berryman. A lista não se destaca pela originalidade e chega a flertar com o clichê ao exibir em posição de destaque a dupla de aliados e rivais Hemingway-Fitzgerald, sobre a qual seria justo dizer que já se escreveu demais. Ocorre que, se houver um único rótulo apto a nomear o coquetel que…
O novo lançamento do escritor português António Lobo Antunes no Brasil, o romance âNão é meia-noite quem querâ (Alfaguara, 480 páginas, R$ 59,90), publicado em Portugal em 2012, oferece munição tanto a seus fãs incondicionais quanto a seus detratores. Estamos falando de um velho embate da cultura lusitana, a polarização entre os que acreditam estar diante do único escritor genial em atividade na lÃngua portuguesa e os que julgam ter sido o autor lisboeta de 73 anos engolido pela própria vaidade de malabarista das palavras, terminando por sucumbir ao vazio do exibicionismo formal. Naturalmente, o leitor não precisa se alinhar com nenhum desses lados, mesmo porque há um pouco de verdade em ambos. Antes de se lançar à aventura do livro, contudo, deve saber que âNão é meia-noite…â é um romance exigente que demandará sua adesão incondicional, uma espécie de profissão de fé renovada a cada página (à s vezes penosamente) na recompensa proporcionada por uma história que gira sobre si mesma. Na primeira metade de sua carreira, Lobo Antunes, psiquiatra de formação, perseguia algum equilÃbrio entre a tessitura da prosa â que sempre foi caudalosa, musical e poética â e o enredo. Por exemplo: um romance como âAs nausâ (1988),…
Com mais de 80 milhões de exemplares vendidos e uma adaptação hollywoodiana de sucesso, a trilogia de suspense e ação Millennium, do escritor e jornalista sueco Stieg Larsson, ganha agora um quarto volume: “A garota na teia de aranha” (Companhia das Letras, tradução de Guilherme Braga e Fernanda Sarmatz Akesson, 472 páginas, RS 44,90). Se a notícia é boa ou má para sua legião de fãs, eis um mistério que, como nos bons thrillers, só a leitura atenta do livro pode resolver. Ocorre que Larsson não escreveu o quarto romance da série nem poderia tê-lo feito: morto aos 50 anos, vítima de um ataque cardíaco, não teve tempo sequer de ver o primeiro título, “Os homens que não amavam as mulheres”, ser publicado em 2005. A continuação da saga do jornalista investigativo Mikael Blomkvist e de sua aliada sociopata, a jovem hacker pós-punk Lisbeth Salander, é assinada por David Lagercrantz, também sueco e também dono de uma carreira equilibrada entre o jornalismo e a literatura. A fidelidade de Lagercrantz ao universo de Larsson é meticulosa. O idealista Blomkvist, sócio da revista Millennium, continua determinado a usar seus talentos de repórter para defender os oprimidos e atacar o que, às vezes…
É fácil reconhecer que “Nora Webster”, do irlandês Colm Tóibín (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 398 páginas, R$ 54,90), é um grande romance. Difícil é explicar por que é assim. Em outras palavras, a rendição do leitor às artes e artimanhas do autor é imediata, garantindo uma leitura imersiva e um interesse apaixonado pela protagonista e pelas pessoas que lhe são caras, mas o crítico tem tarefa mais cascuda: determinar o que, num texto que é um implacável exercício de contenção emocional e sobriedade narrativa, confere grandeza a uma história tão pequena, tão banal, e termina por desenhar na imaginação do leitor uma personagem feminina que parece viva como poucas na história da literatura. “Nora Webster” é um romance realista que cobre três anos na vida da personagem-título, entre o fim dos anos 1960 e o início dos 70. Dona de casa quarentona do interior da Irlanda, Nora acabou de ficar viúva quando o narrador em terceira pessoa começa a acompanhá-la com uma fidelidade que não vai esmorecer até o ponto final. Não há alternância de pontos de vista e a rigor, com exceção de algumas recordações esparsas de Nora, não há flashbacks. “Isso era passado, pensou Nora…
Um carro tem defeito no meio do nada, numa estrada deserta na província argentina do Chaco. A bordo dele vão um pastor evangélico itinerante e sua filha adolescente. Rebocados até a oficina de beira de estrada de um mecânico solitário e grosseirão, que vive ali na companhia de um garoto silencioso, também adolescente, e um número indefinido de cachorros, pai e filha terão que esperar que o carro seja consertado para seguir viagem. Com esses elementos escassos, a escritora argentina Selva Almada compôs a narrativa “O vento que arrasa”, publicada por lá em 2012 e agora lançada no Brasil (Cosac Naify, tradução de Samuel Titan Jr., 128 páginas, R$ 29,90). Recebido com entusiasmo crítico incomum em seu país, o livro foi eleito o melhor lançamento da ficção argentina naquele ano, em votação organizada pela referencial editora e livraria Eterna Cadencia, e sai aqui com orelha empolgada da crítica Beatriz Sarlo, que o chama de “romance surpreendente” de “uma narradora original”. Em primeiro lugar, será preciso corrigir a classificação de “O vento que arrasa” como romance. Trata-se sem dúvida alguma de uma novela, ainda que generosamente engordada pelo papel robusto (Pólen Bold 90) e pelas dimensões da mancha gráfica. Essa correção…
O mistério que envolve a festejada escritora italiana Elena Ferrante pode começar a ser desvendado pelo leitor brasileiro com a publicação de “A amiga genial” (Biblioteca Azul, tradução de Maurício Santana Dias, 331 páginas, R$ 44,90), o primeiro dos quatro volumes que compõem sua chamada “série napolitana”. Isto é, desde que se tome como autobiográfico o romance narrado por Elena Greco, que reconstrói sua infância e adolescência num bairro pobre de Nápoles nos anos 1950. Apesar da diferença de sobrenome, tal identificação entre autora e personagem tem sido feita pela maior parte de uma crítica internacional entusiasmada, que tornou Ferrante, ao lado do também prolífico norueguês Karl Ove Knausgård, a coqueluche literária do momento. O argumento é que os dois, chamados simplesmente de “titãs” pela prestigiosa revista americana The New Yorker, driblariam o que a ficção tem de falso ao se desnudar em suas memórias. “Seus romances são intensamente, violentamente pessoais”, escreveu sobre Ferrante o respeitado crítico inglês James Wood. O problema mais óbvio com tal ideia é que, enquanto Knausgård escreve de modo explícito sobre a própria vida e se multiplica em entrevistas sobre isso, Ferrante é um ponto de interrogação. “Acredito que os livros, uma vez escritos, já…
Por que alguém leria milhares de páginas autobiográficas de um escritor norueguês que levou e leva uma vida nada excepcional? Páginas centradas em experiências comuns como os problemas de relacionamento de um filho sensível com o pai fechadão e o medo que ele tem de repetir o modelo paterno desastroso quando se encontra por seu turno às voltas com fraldas e mamadeiras, enquanto se angustia por ver escorrer entre os dedos como areia (com clichê e tudo) o tempo que preferiria investir na produção de uma obra literária capaz de dar sentido a uma vida gratuita? Boa pergunta. Talvez porque o sujeito drible poeticamente a banalidade, transfigurando o cotidiano por meio de uma linguagem espetacularmente inventiva? Não, pista falsa: a banalidade pinga de cada página como o óleo esverdeado de um arenque em conserva. O fato é que com tudo isso – e ainda com os repulsivos ecos hitleristas do título – a série “Minha luta”, de Karl Ove Knausgård, tornou-se um fenômeno de popularidade na Noruega, onde vendeu perto de meio milhão de exemplares (número quase ofensivo se levamos em conta que o país tem pouco mais de cinco milhões de cabeças), e um modismo intelectual no restante da…
A memória é a matéria-prima do escritor francês Patrick Modiano, agraciado em outubro do ano passado com o prêmio Nobel de literatura. Isso pode sugerir um parentesco com Marcel Proust, o maior nome da literatura de seu país no século XX, autor dos sete volumes do caudaloso “Em busca do tempo perdido”. Mas é enganosa a semelhança. Enquanto Proust se dedica à recriação da vida mundana nos círculos aristocráticos franceses da virada do século em prosa suntuosa, inchada de minúcias psicológicas e sensoriais que esticam suas frases para além do fôlego convencional da leitura, Modiano faz tudo ao contrário. Em seus livros sempre magros, estranhamente inconclusivos, é em tom menor e prosa singela, às vezes tateante, que o escritor nascido em 1945 busca reconstruir a vida na capital francesa sob domínio nazista e no pós-guerra de sua infância, um tempo de vidas fraturadas, identidades fugidias e segredos tenebrosos. Onde Proust oferece um banquete, inventando um triunfo literário sobre o poder corrosivo do tempo, o autor de “Remissão da pena” (Record, tradução de Maria de Fátima Oliva do Coutto, 128 páginas, RS 29,00) serve pratos frugais, ainda que cheios de sabores inusitados, incorporando ao leque temático de uma obra marcada pela…
Ninguém pode acusar Cristovão Tezza de cair nas armadilhas populistas do sucesso. Com o romance autobiográfico “O filho eterno”, de 2007, o escritor paranaense nascido em Santa Catarina – até então considerado um nome “difícil”, do tipo que a crítica elogia e a grande massa leitora evita – explodiu. Relato sensível mas inclemente das agruras de um pai para aceitar seu filho com síndrome de Down, o livro pulou o cercadinho onde se reúnem em gueto os poucos milhares de consumidores da literatura brasileira dita séria: virou best-seller, mas sem abrir mão do prestígio crítico que o levou a ganhar todos os prêmios literários mais importantes do país, proeza rara numa sociedade precariamente letrada e que se habituou a ver a lista dos romances mais vendidos loteada por sobrenomes como Green e Brown. Quem passou a esperar de Tezza o golpe baixo do “novo ‘O filho eterno’”, porém, tem se decepcionado desde então. Ainda bem. “O professor” (Record; 240 páginas; 32 reais) eleva a aposta do autor em sua literatura realista, historicamente enraizada, mas antinaturalista e rigorosa. Consciente da insuficiência irremediável da própria linguagem que lhe dá corpo, a prosa do romance parece querer desdobrar uma frase de “O espírito…
O que é um personagem? Vamos aproveitar o espírito questionador para ir mais longe: o que é um romance? O leitor não precisa formular para si mesmo essas perguntas cabeçudas enquanto atravessa “Limonov”, do francês Emmanuel Carrère (Alfaguara, tradução de André Telles, 344 páginas, R$ 44,90). Dificilmente terá tempo para isso, aliás: o premiado livro que romanceia a biografia do escritor, aventureiro e político russo Eduard Limonov, lançado em 2011 por Carrère, um dos principais nomes da literatura francesa contemporânea, é daqueles em que as páginas parecem virar sozinhas, movidas pelo puro prazer da leitura. Mesmo assim, as perguntas ali de cima estarão à espreita por trás das palavras. Lançado no Brasil no fim do ano passado e recebido com frieza imperdoável, “Limonov” conta a história de um personagem que dificilmente caberia numa obra ficcional, um russo alucinado que é a melhor prova do acerto daquela tirada de Mark Twain: “Por que a verdade não seria mais estranha do que a ficção? A ficção, afinal, tem que fazer sentido”. Se um bom personagem fictício deve ser redondo, segundo uma imagem (do inglês E.M. Forster) que pegou, Limonov é um meteorito cambiante e cheio de arestas. Que machucam. Famoso em seu…
Aproveito a semana do sorteio dos grupos da Copa do Mundo para pagar uma dívida. Nas entrevistas de lançamento de meu romance “O drible” (Companhia das Letras), tenho cavado oportunidades para recomendar a leitura de “O negro no futebol brasileiro”, de Mario Filho (Mauad, 2003, 344 páginas, R$ 64,90). Trata-se de nosso mais importante título sobre o tema e, mais do que isso, um clássico sobre a formação da sociedade brasileira que – ainda que menos declaradamente ambicioso e muito menos conhecido – comunga do espírito de obras como “Raízes do Brasil” e “Casa grande & senzala”. Não se trata de um romance, mas de uma longa reportagem, com tintas ensaísticas, sobre os anos de formação do grande esporte nacional. Quem ler “O drible” vai entender desde a epígrafe o quanto Mario Filho – que me atrevi a escalar como personagem do romance – tem a ver com meu livro. Mas acredito que ele mereça elogios mais explícitos, menos cifrados, razão pela qual republico abaixo a resenha que escrevi em 2004, quando “O drible” ainda era um projeto vago, sobre a então recente reedição de “O negro…” que até hoje se encontra nas livrarias. * Algumas mentiras, de tão repetidas,…
Um homem que se mudou há quase duas décadas para o Canadá, mas acaba de voltar ao país natal para o enterro de sua mãe, reencontra um velho amigo dos tempos de estudante no bar de uma grande cidade terceiro-mundista. Bebem uísque e batem papo. Ou melhor, até onde nos é dado ouvir a conversa, apenas o recém-chegado fala, fala sem parar. O outro ouve com atenção (a julgar por sua capacidade de reproduzir depois, com riqueza de detalhes, o discurso do amigo, limitando-se a pontuá-lo aqui e ali com “disse fulano”), mas não emite opinião alguma. Não que se saiba. A questão de quem fala o quê – e quem reproduz o quê – é importante por mais de uma razão, como veremos. A primeira e mais evidente: o que aquele canadense adotivo despeja num bloco inteiriço do tamanho de uma novela curta é uma hiperbólica, obsessiva, ultrajante, engraçadíssima coleção de insultos ao país que deixou para trás. Como num catálogo turístico em negativo, nenhum aspecto da terra escapa de ser apresentado como asqueroso: povo, cultura, políticos de direita e esquerda, militares, grandes vultos históricos, clima, culinária, arquitetura, caráter, educação, inteligência, tudo ali representa, segundo ele, o ponto mais…
Em termos literários, Maria, a mãe de Jesus, aparece no Novo Testamento como uma personagem pouco desenvolvida: sem pecado, amorosa, silenciosa, discreta, está lá para criar um filho destinado à glória e ao martírio sem uma única queixa. Não demora a escorregar para a periferia da ação, mas volta no fim para acolher o cadáver destroçado do homem que gerou e representar a mater dolorosa. É o que se poderia chamar de um tipo, um estereótipo da mãe perfeita, não exatamente um personagem humano – o que, se é insatisfatório de um ponto de vista secular, literário ou mesmo histórico, funcionou divinamente na narrativa mitológica que fundou o cristianismo, como comprova o duradouro poder simbólico e imagético de sua figura. Na curta, concentrada novela “O testamento de Maria” (Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster, 88 páginas, R$ 29), o escritor irlandês Colm Tóibín encara um desafio que, pensando bem, acho curioso que só seja encarado agora, após tantas décadas de feminismo: reivindicar Maria para a literatura e transformá-la numa mulher de três dimensões, narradora de sua triste história. O resultado é um livro belo e estranho, ao mesmo tempo previsivelmente herético e surpreendentemente respeitoso. A princípio concebida como um…
Reconheço que o alerta pode afugentar leitores deste texto que mal começa, mas paciência: muitas vezes, ler demais sobre um escritor atrapalha a leitura do próprio escritor. Veja-se o caso do irlandês John Banville, que acaba de vir à Flip a bordo de seu último romance, “Luz antiga” (Biblioteca Azul, tradução de Sergio Flaksman, 336 páginas, R$ 39,90). Quando se sabe que o próprio Banville se considera um raro – talvez até único, embora isso não fique claro – artista verdadeiro das letras num cenário internacional povoado de artesãos no máximo competentes e outros fornecedores de conteúdo para o mercado editorial, um representante implacável da literatura highbrow num mundo definitivamente middlebrow, é tentador transformar a leitura num teste e adotar, após meia dúzia de páginas, uma de duas posturas: ficar a favor de tal juízo presunçoso, encontrando a cada linha a confirmação de seu acerto, ou ficar contra o mesmo juízo e descobrir em cada linha seu desmentido categórico. Em outras palavras: ou Banville é um gênio ou é uma besta. Não por acaso, encontram-se por aí as duas leituras. Ambas são desculpáveis, pois é o personagem arrogante construído pelo próprio romancista, sobretudo a partir de sua premiação com o…
A reedição de “Como aprendi o português e outras aventuras” (Casa da Palavra e Fundação Biblioteca Nacional, 264 páginas, R$ 34,00), coletânea de artigos, crônicas e breves ensaios escritos nos anos 1940-50 por Paulo Rónai (1907-1992), é uma excelente notícia. A edição em formato de bolso traz de volta à circulação um livro tão espirituoso quanto comovente. Vamos direto ao ponto: a paixão pelo português salvou a vida de Rónai. Literalmente. Judeu húngaro, o erudito naturalizou-se brasileiro em 1945 e, em décadas de atividade incessante como professor de línguas, tradutor e crítico literário, retribuiu o favor tornando nosso país mais inteligente e sintonizado com a melhor tradição humanista europeia que ele representava tão bem. Dito assim, o resumo da ópera pode sugerir um livro de tom épico, mas parte de sua graça é ser o oposto disso – bem-humorado, despretensioso e autoirônico como o próprio autor. Grandiloquente é apenas o pano de fundo histórico em que se deu a aventura linguística que mudou a vida de Rónai: quando, aos 32 anos, já poliglota, ele começou a estudar português em Budapeste como um dos desdobramentos naturais de seu interesse por latim, corria o ano de 1939 e a Segunda Guerra Mundial…