Clique para visitar a página do escritor.
Culposo?
Sobrescritos / 19/07/2007

O problema de Demóstenes Bastião era que ele escrevia em preto-e-branco. Não num preto-e-branco estiloso ou expressionista. Num preto-e-branco cinza, cinza-e-branco, cinza-e-cinza. Chiadeira das mais invernosas, sua prosa era mais cacete que a palavra “cacete” usada como adjetivo, mais morrinha que um daqueles lençóis de vapor que uma vez por década envelopam o mundo por semanas, meses, sem chover nem sair de cima, até os canários virarem limo e os orgasmos, perebas. Desprovida de quaisquer efeitos poéticos, dramáticos ou cômicos que soassem minimamente autênticos, a prosa de Demóstenes Bastião era sem lustro, sem lastro, sem risco, sem gosto, sem gusto. Nada iluminava, nada movia. Movia-se, só, e penosamente. Era como se desafiasse o leitor a cada advérbio preciosista, a cada contorno de frase corretíssimo e vão: se você não desistir, não espere que desista eu. Renitente, isso não dá para negar que a escrita de Demóstenes Bastião fosse. Feito um vírus combalido que, de uma hora para a outra, ao descuido mais bobo, pode ser mortal. E aqui não se trata de metáfora, infelizmente. Consta que houve mesmo seis ou sete casos funestos. Está certo que o sujeito acabar de ler um livro de Demóstenes Bastião e morrer ali mesmo,…

Bog
Sobrescritos / 27/05/2007

The Bogus Writer inspeciona as fotos sobre sua mesa de trabalho, imagens de um preto-e-branco granulado e vagamente difuso, como se tivesse baixado uma neblina diante da lente do fotógrafo no momento em que ele, The Bogus Writer, posava contra o muro pichado do centro da cidade com seu ar de tédio, sua gola rulê, seu Gauloise camusiano. As imagens são bonitas, claro. Mas não seriam, o horror, o horror – bonitinhas? No relevo de sua testa alta, billboard semifamoso de uma inteligência superior, franzida neste momento em ondinhas ligeiramente trêmulas, percebe-se que Bog (para os íntimos) não está feliz. Uma dúvida o tortura: e se aquele visual pós-existencialista estiver ficando out-of-date? Solta um suspiro impaciente, atira as fotos sobre a mesa com violência e acende um Marlboro. Na megatela de sua imaginação prodigiosa se vê, imagem difusa, suspirando impaciente e atirando as fotos sobre a mesa com violência, para em seguida acender um – bom, um Gauloise, claro. Pequenas correções desse tipo são a alma do negócio. O cérebro de Bog trabalha atarefado e stacatto, como uma fábrica art déco num poema futurista. Uma nova sessão de fotos com Mika encareceria demais os custos de produção do livro? Atrasaria…

Virtual
Sobrescritos / 25/04/2007

O escritor imagina um personagem, também escritor, que à deriva diante de seu tablete de cristal líquido, em algum momento entre 1h15 e 4h30 de uma madrugada insone, descobre-se de repente num blog sem nome onde refulge um texto límpido e profundo como o mar em certos trechos mágicos do litoral, blocos de uma prosa poética que se encrespa, corcoveia, muda de forma enquanto o escritor, fazendo rolar a tela sob a ação de suas pálpebras estateladas, sente lhe subir uma excitação nada menos que sexual por ter desentocado tamanho tesouro, cuja obscuridade naquele endereço longo e cheio de barras só pode ser explicada pelo caos que a internet é, pandemônio capaz de abrigar lado a lado cordilheiras de bobagem e essa estranha jóia em que se fundem o sumo de vinte e cinco séculos e a última novidade petulante, veneno e antídoto, pedra e vento, como se não, de modo algum fosse apenas um sonho infantil o poder de destilar numa combinação de caracteres alfabéticos o ácido que dissolveria a desilusão do escritor, e por trás dela também a do escritor, desilusão com sua arte eunuca, seu talento nauseado, seus colegas oligofrênicos, angústia que explica a insônia desta noite…

A volta de Nareba, perdão, Naarebah
Sobrescritos / 10/04/2007

Algo estranho está acontecendo com Lúcio Nareba na cadeia. Os últimos e-mails que me chegaram de seu moderno notebook (alugado do carcereiro) com conexão wi-fi (cortesia das autoridades penitenciárias) vinham assinados por “Luuk Naarebah”. Acostumado às ousadias formais do atormentado escritor, a princípio não dei muita importância à grafia esdrúxula. Nareba sempre se orgulhou de ser “tradicionalmente vanguardista”. Gaba-se de ter sido alimentado com sopa de letrinhas concretas na primeira infância. “Claro que eu jogava bola com os outros meninos, mas só porque isso me dava a oportunidade de estudar o violento esporte Breton”, ele me segredou certa vez. Já estava no fim da sua cota diária de dois engradados e meio de cerveja quando disse isso. Até hoje não sei se falava sério. “Minha babá se chamava Marinetti”, prosseguiu. “Minha primeira professorinha foi a Pagu. Perdi a virgindade com a Laurie Anderson. A Isadora Duncan deu pro meu bisavô.” E mais não disse, porque nesse momento a baba fechou um fio-terra entre seu queixo e a mesa do botequim e tudo ficou dadá. Recordando essas coisas, não achei que o “Luuk Naarebah” fosse motivo de alarme. O que me assustou foi descobrir, no pé da sua última mensagem, em…

A epígrafe
Sobrescritos / 16/03/2007

Foram as poucas linhas daquela carta de recusa que fizeram Lúcio Nareba, lenda da blogosfera literária nacional, perder a cabeça. Não fosse o veneno destilado – gratuitamente, gratuitamente! – pela famosa editora Bia Escarpin, o adorável Nareba estaria entre nós até hoje, esvaziando dois engradados e meio de cerveja por dia às custas de seus admiradores mais jovens, fumando pelos ouvidos, coçando a bunda agressivamente como lhe parecia apropriado aos gênios irascíveis e rabiscando nanocontos em guardanapos com nódoas de azeite. Mas aquela carta de recusa… Prezado Nareba, Abri seu manuscrito com grande interesse e, já na primeira página, fui ao delírio com a epígrafe. Genial mesmo, parabéns. Infelizmente, não consegui passar da epígrafe, motivo pelo qual sou obrigada a recusar a publicação de “Sou phodão & outras modéstias”. Como sinal de boa vontade, uma crítica construtiva: a epígrafe é genial mas precisa ser aprimorada. Os versos “Astros! noite! tempestades!/ Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão!…” são do Castro Alves e não do Chacal. Isso posto, não desista jamais. Ou desista, phoda-se. Bia Escarpin Gratuito, não? Mais do que gratuito, humilhante. Típico dessa alta burguesia editorial insensível e decadente que aí está. Mesmo assim, o plano de estrangular Bia…

Parece um parecer
Sobrescritos / 01/02/2007

O livro, sem chegar a ser inteiramente ruim, não deve ser publicado. Padece de uma indefinição estético-político-existencial que, no fim das contas, boicota aquelas boas páginas de prosa poética às quais a narrativa chega, aqui e ali, como se topasse com inesperados mirantes adoráveis numa caminhada por montanhas de mata fechada, entre nuvens de borrachudos. A autora é notória e ativamente homosssexual, como sabem os leitores de colunas sociais. Isso poderia ser meio caminho andado. Infelizmente, seu romance sobre um grupo de vendedoras da Avon nos anos 70 não tem pegada – nem pegação – suficiente para ser literatura gay. Tampouco tem sensibilidade suficiente para ser literatura feminina. Terá, então, ódio suficiente para ser literatura feminista? Também não. Difícil saber o que pretendia a autora. (Fazer literatura com L maiúsculo? Essa é muito boa.) Sua indefinição de gênero – em diversos sentidos – se estende também à forma literária. Melodrama? Farsa? Sátira social? Alegoria? Tragédia? Prosa experimental? Nenhuma das alternativas acima? Todas? Definitivamente, o que “Tantas lindas campainhas esgoeladas” tem de melhor é o título. Pode valer a pena encomendar à autora um novo livro para acompanhá-lo. O texto acima teria sido encontrado na lata de lixo de uma grande…

Continho antigo
Sobrescritos / 13/12/2006

O vetusto e alquebrado escritor permanecia inédito, desprezado por casas editoriais grandes e pequenas, não obstante os tenazes esforços do espírito que lhe haviam consumido a saúde na lida com as exigências da criação, as quais, sendo artista consciente e de talento raro, equacionara de modo tão sutil e original que terminou por se distanciar irremediavelmente de seus contemporâneos. Na hipótese mais benevolente, seria compreendido pela geração de seus bisnetos. Bisnetos que, bem entendido, tinham na frase papel meramente retórico, pois entre os departamentos da vida que o artista mantivera lacrados para se entregar por inteiro à literatura, essa górgona voraz, avultava a paternidade. Tinha um sobrinho; isso tinha. Rapazola tresloucado, boêmio, compunha a figura de um perfeito doidivanas, mas um doidivanas de boa aparência e traquejo social incomum. Sapato bicolor e mecha rebelde desabada sobre os olhos, surgiu-lhe esse sobrinho certa noite, em sonhos, como peça-chave de um plano insensato. O escritor tentou escorraçar a extravagante idéia, decerto germinada no lado negro de sua alma ferida, mas o sonho se repetiu. Noite após noite o sonho se repetiu, até que o juízo combalido do homem lhe desse passagem e ele adentrasse, aos pinotes, a terra da vigília. Não devemos…

Fragmento (fictício, mas…) de um colunista lítero-social
Sobrescritos / 19/07/2006

…não sobe escada, mas lê. Ou nem lê, mas freqüenta noite de autógrafo. Ai!!! Ui!!! # O Coletivo Soco na Boca do Inferno abre esta noite seu flat a tout le pessoal da literaDura (natural & desviagrada, por supuesto) para lançar o primeiro zine brasileiro feito especialmente para iPod. Meninos (e meninas e tudo mais e coisa), eu ouvi! Tudo de bom diz pouco: poemas-que-rompem-com-tudo-o-que-está-aí na voz do cultuado Coral das Prostitutas Mirins, quer mais???? # A escritora performática Giga T., 1,97m, que se apresenta como “a primeira escritora inteiramente analfabeta do Brasil, mas que peitos”, lança amanhã na Livraria Fashion Week sua série de microcontos impressos em Garamond em camisinhas GG sabor tutti-frutti. Se eu vou? Read my lips!!! # Ah, o que eu não faço pelos meus darlinguíssimos leitores (e queridas leitoras e tudo mais e coisa)!!! A coluna teve que subornar três garotas de programa e um michê fortinho para ter acesso à primeira versão do novo romance do cultuado Rique Focker, cabeça do cultuado Movimento Trans-Agressivo com Bolinhas Roxas. Aconteceu então que, víxe, a coluna está totally overwhelmed até agora. Só posso adiantar que o livro, com o cultuado título de “Cataratas de catarro”, é composto…

Literatura brasileira com merchandising
Sobrescritos / 26/06/2006

“Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio, mas a impecável companhia aérea, além de não ter culpa pelo transtorno, ainda nos hospedou em um hotel de primeira qualidade no aeroporto aquela noite – grande Lufthansa.” *** “– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Mas só comecei a acertar mesmo quando troquei o velho trabuco por esta Taurus aqui, arma de grande maravilha. O senhor espie. Ahã.” *** “Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar… Viu uma lua no céu Viu outra lua no mar. O doutor que a atendeu Não tardou a receitar Óc’los da Ótica Fiel Pra vista dupla acabar.” *** “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Se os tivesse, não hesitaria em escolher o conforto e a segurança da Maternidade Nossa Senhora do Bom Parto, que tem convênio com todos os planos de saúde.”

Os melhores contos da semana passada
Sobrescritos / 08/06/2006

Depois dos melhores, dos menores, dos geracionais, dos transgressores, dos químicos, dos cruéis, dos escritos por mulheres, dos eróticos, dos menores eróticos, dos menores eróticos escritos por mulheres transgressoras, dos representantes da novíssima safra genial e dos que prenunciam a safra que virá depois da novíssima safra genial, pode-se imaginar que as editoras comecem a ficar sem assunto para novas coletâneas de contos. Antes que desanimem, o que poderia acarretar graves prejuízos à auto-estima literária nacional, aqui vão algumas modestas propostas: 1. “Terceira pessoa – Os melhores contos em que não aparece a palavra eu” – A ousadia do critério elimina a maioria dos escritores vivos. Por isso mesmo garante, paradoxalmente, uma abordagem mais pessoal do gênero. 2. “Contos de escritores promíscuos” – O fundamental é que os autores tenham tempo de se conhecer. Todos. Em esquema de duplas, mas também grupal. 3. “Os melhores contos de escritores baixinhos”, “Os melhores contos de escritores altos”, “Os melhores contos de escritores esqueléticos” e “Os melhores contos de escritores gordalhufos” – Coleção lúdica. A possibilidade de brincar com volumes de formatos e tamanhos diferentes deve garantir uma boa exposição em livrarias – o grande desafio editorial contemporâneo. 4. “Contos com diálogos indicados…