Irmãos humanos, permitam-me contar como tudo aconteceu. Não somos seus irmãos, vocês responderão, e não queremos saber. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto a vocês. Corre o risco de ser um pouco longa, afinal aconteceram muitas coisas, mas, se calhar de não estarem com muita pressa, com um pouco de sorte arranjarão tempo. Além do mais, isso lhes diz respeito: vocês verão efetivamente que lhes diz respeito. A voz metálica de Max Aue, o ex-nazista monstruoso – mas, ele tem razão, humano – que carrega uma história “um pouco longa” de 900 páginas e 6 milhões de mortos para contar, preenche o início de “As Benevolentes” (Alfaguara, 2007, tradução de André Telles), de Jonathan Littell, com uma ressonância sinistra que, entre modulações mais ou menos violentas, persiste até o fim. Quem se interessar em saber mais sobre o romance, um grande livro grande, pode ler a resenha que publiquei na época aqui.
Desconfio das palavras “pessimismo” e “otimismo” – diz Milan Kundera. – Um romance não afirma nada; ele busca e formula questões. Não sei se minha nação vai morrer e não sei qual dos meus personagens tem razão. Eu invento histórias, ponho uma em confronto com a outra, e dessa maneira faço perguntas. A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote saiu pelo mundo afora, esse mundo se transformou num mistério diante de seus olhos. É esse o legado que o primeiro romance europeu deixou para toda a história subseqüente do romance. O romancista ensina o leitor a compreender o mundo como uma pergunta. Nessa atitude há sabedoria e tolerância. Num mundo baseado em certezas sacrossantas, o romance morre. O mundo totalitário – seja ele baseado em Marx, no Islã ou em qualquer outra coisa – é um mundo de respostas e não de perguntas. Seja como for, creio que em todo o mundo as pessoas hoje em dia preferem julgar e não compreender, responder e não perguntar, de modo que a voz do romance é difícil de ouvir em meio a…
Presente de Natal do YouTube, esse Papai Noel moderno: Vladimir Nabokov falando longamente de literatura em seu inglês de forte sotaque russo num documentário narrado em francês (via Omnivoracious, o blog da Amazon). Além de ler as primeiras linhas de “Lolita” em seu idioma natal e naquele que adotou, o grande escritor despeja diante da câmera, com uma marra monumental que me pareceu temperada por uma leve mas inequívoca sugestão de molecagem, strong opinions mais devastadoras que as de qualquer personagem de Coetzee. Como estas: Fico perplexo e me divirto com as idéias fabricadas sobre supostos “grandes livros”. Que, por exemplo, o asinino “Morte em Veneza”, de Mann; o melodramático e pessimamente escrito “Doutor Jivago”, de Pasternak; ou as crônicas caipiras de Faulkner possam ser considerados obras-primas, ou pelo menos aquilo que os jornalistas chamam de “grandes livros”, é para mim o mesmo tipo de ilusão de quando uma pessoa hipnotizada faz amor com uma cadeira. Nunca é demais lembrar: ano que vem a Alfaguara brasileira participa do lançamento mundial de The original of Laura, um Nabokov inédito.
É bem bonitinha essa animação – uma cidade toda feita de livros, pela qual transitam personagens de papel – que o selo editorial americano Fourth Estate, da HarperCollins, lançou na internet para comemorar seus 25 anos. (Dica do blog de livros da “New Yorker”, que recomenda o filminho para quem anda cabisbaixo com a morte anunciada do livro de papel.)
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou para me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; (…) Nunca, na literatura brasileira, teve a velha quiromania, o onanismo, a punheta, o cinco-contra-um tratamento verbal tão suntuoso quanto no início – aqui em corte arbitrário, pois os pontos-e-vírgulas ainda vão longe – do romance “Lavoura arcaica” (Companhia das Letras, 3a. edição, 1989), obra-prima publicada em 1975 por Raduan Nassar.
Encerra-se aqui, pelo menos para este blog, o capítulo da Copa de Literatura Brasileira 2008. E se encerra com festa. Saiu hoje o resultado da final: “O filho eterno” 11 x 3 “O dia Mastroianni”. A festa fica por conta da orgia de opiniões que o formato da competição proporciona, com todos os juízes (bom, quase todos) entrando em campo ao mesmo tempo para justificar seus votos. Todas as atrações do circo estão lá, numa diversidade bonita de ver. Melhor ainda quando se constata que, no balanço final, o ambiente conserva uma sanidade básica, que também pode ser chamada de inteligência coletiva. Por mais que se deva – e se deve mesmo – desconfiar das consagrações unânimes, se o grande livro de Cristovão Tezza deixasse de levar mais esse “título”, perdendo para o livrinho apenas bom de João Paulo Cuenca, haveria motivo de preocupação. Houve até um bônus inesperado: Nelson de Oliveira compareceu mais sério, suando a camisa de árbitro, em contraste dramático com sua primeira atuação na Copa. Enfim, não sei se isso tem a ver com o efeito embriagante de toda festa, mas termino minha participação na CLB com vontade de retocar as críticas à edição deste ano…
A entrevista que fiz com Millôr Fernandes para a “Bravo!” deste mês – e que pode ser lida no site da revista – deixou de incluir, por razões de espaço, algumas histórias impagáveis do genial humorista-escritor-desenhista-dramaturgo-e-o-escambau. Felizmente, os cinco minutos e pouco de conversa que estão disponíveis em arquivo sonoro no site incluem, entre outras delícias, uma veemente defesa milloriana do trocadilho da qual consta esta frase que o crítico literário Agrippino Grieco endereçou a seu desafeto Menotti del Picchia: Menotti del Picchia, fecha a barguilha do teu nome!
Jamais a conheci em vida. Ela existe para mim através dos outros, como prova dos caminhos em que a sua morte os lançou. Voltando ao passado, buscando apenas fatos, eu a reconstruí como uma menina triste e uma prostituta, quando muito alguém-que-poderia-ter-sido, rótulo que também poderia se aplicar a mim. Gostaria de lhe ter concedido um final anônimo, de tê-la relegado a breves palavras de detetive, num relatório sumário de homicídio, com cópia carbono para o legista, e mais papelada para enterrá-la em vala comum. O único erro em relação a esse desejo é que ela não teria gostado que fosse assim. Por mais brutais que sejam os fatos, ela gostaria que fossem todos revelados. E como lhe devo muito e sou o único que sabe a história inteira, incumbi-me de escrever essas memórias. Dois começos em um: o de “Dália negra” (Record, 2006, tradução de Cláudia Sant’Ana Martins), romance lançado em 1987, e o da carreira brilhante de James Ellroy, um escritor que, embora a tentação seja grande, não dá para enfiar no escaninho “policial” – pelo menos não sem esquartejá-lo antes.
Nenhuma outra experiência de aliar imagem e texto foi tão contundente na literatura brasileira quanto a de Valêncio Xavier. O autor de O Mez da Grippe (1981) e de várias outras histórias morreu às 11h30 da manhã desta sexta-feira (5) devido a complicações ligadas a uma pneumonia. Ele tinha 75 anos e passou 82 dias internado no Hospital São Lucas, mais da metade deles na Unidade de Tratamento Intensivo. Notícia da “Gazeta do Povo”, de Curitiba, que pode ser lida na íntegra aqui. Curitibano nascido em São Paulo, Valêncio Xavier Niculitcheff era um desses escritores radicais para quem o texto linear seria uma camisa-de-força. Mais – ou menos – que um experimentalista, era um brincalhão, um Homo ludens atraído tanto pelo trágico quanto pelo cômico. Quando descobri aquelas charmosas fotos antigas que W.G. Sebald mistura à sua ficção, a primeira coisa que pensei foi: “Já vi isso em algum lugar, mas era diferente”. Sim, era diferente: as fotos vinham ao lado de reclames antigos de jornal e velhos postais na literatura fragmentada de Valêncio Xavier. Para quem ainda não o conhece, uma boa porta de entrada é a bela edição que reúne “Minha mãe morrendo” e “O menino mentido”, lançada…
Os leitores deste blog sabem que sou um fã de primeira hora de “O filho eterno”, de Cristovão Tezza. Nessa condição, é claro que me alegra o balaio de prêmios que ele angariou num desempenho que, em minha memória, não tem paralelo – o único que ameaçou chegar perto foi Milton Hatoum. Verdade que os prêmios, mesmo tendo acertado este ano, não são uma medida lá muito rigorosa de qualidade: erram à beça, freqüentemente traem motivações mais políticas que estéticas, isso todo mundo sabe. Mas não é menos verdade que dão aos livros uma exposição que eles não costumam ter. Aí vem a má notícia, que tem me deixado pensativo: nem com esse massacre, digamos, esportivo – e o resultado da Copa de Literatura, o menos importante mas talvez o mais divertido dos prêmios, ainda nem saiu –, nem assim “O filho eterno” aparece nas principais listas de mais vendidos da imprensa brasileira. Nem ganhando tudo que um livro pode ganhar. E o que me parece ainda mais espantoso – nem mesmo tendo, na relação do autor/protagonista com seu filho Down, um tema de fortíssimo apelo, do tipo que costuma arrastar às livrarias uma massa de leitores mais interessados em…
A notícia do “Guardian” podia tanto estar na seção de literatura – como está – quanto na editoria que mais cresce em nossos tempos internéticos, a de esquisitices. Uma biblioteca pública de Bournemouth, cidade turística no sul da Inglaterra, está em campanha (em inglês, acesso gratuito) para que seus freqüentadores peguem emprestados “livros vivos”, isto é, pessoas com quem podem conversar. Entre as atrações atuais estão uma jovem muçulmana, uma mulher cega e uma pregadora batista, todas voluntárias. Com objetivos restritos à troca de idéias (ler na banheira ou fazer anotações nas margens, nem pensar), elas podem ficar à disposição do “leitor” por até uma hora. Trata-se da apoteose daquela velha crença popular: “Minha vida daria um livro”. Na quase totalidade das vezes, não daria nem um conto, quando muito um haicai. Por outro lado, chamar os conversadores de Bournemouth de “livros vivos” é obviamente usar uma metáfora – ainda que a metáfora seja bastante esticada pelo fato de tudo se passar numa biblioteca. Bater papo não é o mesmo que ler, mas bater papo, especialmente com pessoas imersas em culturas e experiências diferentes das nossas, é muito bom, pois não? Nada errado com a idéia. Descubro também que a…
Ele – pois não havia a menor dúvida a respeito de seu sexo, embora a moda da época contribuísse para dissimulá-lo – empenhava-se em desferir golpes de espada numa cabeça de mouro que pendia das vigas do teto. Faltava Virginia Woolf nesta seção. Não mais: eis a primeira frase do magnífico “Orlando”, romance publicado em 1928 (Grafton Press, 1986, tradução caseira). O gancho de suspense plantado ali entre os travessões só vai se explicar lá pelo meio do livro, quando Orlando acorda de um sono mórbido de dias: Ele se espreguiçou. Levantou-se. Ficou de pé diante de nós, inteiramente nu, e enquanto as trombetas ressoavam, Verdade! Verdade! Verdade!, não nos resta outra saída senão confessar – era uma mulher.
O Bad Sex Award, aquele prêmio britânico de gozação para o livro que contém a pior cena de sexo do ano, é um evento literário que o Todoprosa acompanha com atenção. A última edição foi das mais, digamos, excitantes, com a honraria conferida postumamente ao americano Norman Mailer por “O castelo na floresta”. Para quem não leu aqui na época ou não se lembra, o último romance de Mailer contém uma inacreditável descrição de trepada em que o narrador diz a certa altura, referindo-se ao membro (pouco) viril do personagem, que “titio estava tão mole quanto um rolo de excremento”. Um trecho maior da cena pode ser encontrado aqui. A má notícia é que o BSA 2008, divulgado esta semana em Londres, não teve o mesmo apelo: a vencedora, Rachel Johnson, é um nome de pouco peso por lá e inteiramente desconhecido entre nós. A boa é que, certamente cientes disso, os organizadores resolveram fugir do script e atribuir também um prêmio especial – pelo conjunto da obra, lifetime achievement – a John Updike. Fiquei pensando se haverá suficiente material em nosso mercado para sustentar uma versão brasileira do BSA. Suponho que sim, mas não tenho certeza. Conto com a…
Mas, para além de suas preocupações teológicas, Wood nunca demonstra muito interesse naquilo que os romances querem dizer. Sua crítica oscila entre o plano mais aberto e o mais fechado, o desenvolvimento da técnica ficcional ao longo da história do romance e as particularidades miúdas do estilo autoral. Seu brilhantismo ao descrever ambos os quadros é inigualável, mas ele ignora praticamente tudo o que existe no meio do caminho. Ignora o amplo meio-campo da forma romanesca – estruturas narrativas, padrões de personagem e imagem, símbolos que conectam diferentes momentos e níveis de leitura num texto – e ignora os sentidos que os romancistas propõem por meio desses recursos. (Isso explica seus erros factuais e deslizes interpretativos; ele simplesmente não presta a devida atenção ao que está num determinado plano.) Wood pode discorrer sobre um narrador de Flaubert ou o estilo de Bellow, mas não se mostra muito curioso a respeito do que esses escritores têm a dizer sobre o mundo: sobre tédio, dor, morte ou qualquer outra coisa no vasto e estrelado universo da experiência humana. Agora que está na moda – e com algum fundamento, não se pode negar – considerar James Wood, da “New Yorker”, uma espécie de…
Clique aqui para ler minha resenha na Copa de Literatura Brasileira, que aponta o primeiro finalista deste ano. Publicada agora há pouco, envolve “O dia Mastroianni”, de João Paulo Cuenca, e o repescado “Cão de cabelo”, de Mauro Sta. Cecília.
Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo esteja na lembrança de todos e que não seja necessário dar maiores explicações sobre minha pessoa. E assim, violentamente, entramos no túnel, ou melhor, em “O túnel” (Ballantine Books, edição bilíngüe, espanhol-inglês, 1988 – aqui em tradução da casa), romance lançado em 1948 pelo argentino Ernesto Sabato. Festejada por Albert Camus e geralmente classificada como “existencialista”, a narrativa seca e muitíssimo bem escrita do amor infeliz do misantropo Juan Pablo por María – “só existiu um ser que entendia minha pintura” – ainda conserva uma força sinistra. Luz no fim do túnel? Não tem nenhuma. A última frase, não menos inesquecível que a primeira, é prova disso: E os muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos.
O Oxford Book of Death reúne “últimas palavras” famosas. Não sei muito bem por quê, mas achei as do escritor francês André Gide (1869-1951), aparentemente banais, de cortar o coração: Temo que minhas frases estejam ficando gramaticalmente incorretas.